Os mortos não fazem amigos

                                                                       Léa Mattar Leister

Em 1981 muitos estudantes do Curso de Magistério do Colégio Estadual Valle Porto, localizado em Antonina, participaram do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), sob a coordenação da professora Isa Maria Azim.

O número de inscritos foi grande, porém, apenas pouco mais da metade chegou ao término do curso. Uma das exigências para a sua conclusão era a pesquisa de campo, ou seja, sair pela cidade em equipes formadas por duas ou três pessoas para levantar dados comprobatórios sobre o nível de escolaridade dos habitantes da periferia daquela cidade.

A minha equipe era formada por mim, Amara Pedroso e Ellen Cecyn.
De certa forma foi um trabalho muito divertido. A pesquisa nos deu a oportunidade de conhecer lugares que nem imaginávamos que existissem por aquelas redondezas.

Em virtude de a pesquisa ter sido desenvolvida na periferia da cidade, o padrão de educação era bem diversificado. Em algumas casas a recepção foi feita com muita cortesia, com direito a cafés, sucos, polvilhos, pão caseiro ou frutas da época do próprio quintal. Em outras, o pessoal era desconfiado, eles não sabiam o que era o Mobral e não demonstravam nenhum interesse em saber.

Um senhor sem entender o que falamos, achou que éramos vendedoras e gritou lá do interior de sua casa: "Não quero comprar "mobral" nenhum, já comprei de outro vendedor". Sem chances de explicações, fomos embora rindo pelo caminho e, de tanto rir, mal conseguíamos andar. Por uma coisa tão boba, Ellen Cecyn e Amara Pedroso chegaram a chorar. Nossa, que saudades!

Em um daqueles caminhos nos deparamos com uma casinha que mais parecia saída de um conto de fadas. O quintal era muito limpo, a casa era toda ladeada de beijos de diversas cores, que eram plantados na própria areia, pois não se viam vestígios de terra, apenas areia solta e fofa. Embaixo de uma goiabeira encontrava-se uma vassoura confeccionada de galhos de árvore. A casa tinha uma varandinha com o assoalho brilhando de cera vermelhão. Na janela lateral esquerda, havia um aparador de madeira e sobre ele uma bacia de alumínio cheia de louças limpas que reluziam ao sol.

A casa tinha duas janelas na frente, onde suas cortinas de crochê completamente alvas balançavam com a brisa fresca da primavera. Da chaminé saia fumaça, era sinal que seus moradores estavam por perto. Batemos palmas e aguardamos, ficando ali paradas. Não tínhamos coragem de avançar nem tão pouco recuar. A sensação causada por aquela visão de paz e quietude era realmente deslumbrante. De repente, uma senhorinha veio dos fundos da casa enxugando as mãos no avental. Ela nos sorriu e perguntou o que queríamos.

Apresentamos-nos e perguntamos o seu nome. Alice, respondeu ela. Falamos de nosso trabalho. Ela achou muito interessante e nos convidou a entrar.

Ficamos encantadas com a limpeza da casa. Na sala tinha um jogo de sofá bem simples, com almofadas, tapete e toalhinha da mesinha de centro, tudo em crochê que combinavam com as cortinas. Era tudo muito limpo e, podíamos sentir o cheirinho de cera.

O quarto estava com a porta entreaberta e vimos os pés de alguém na cama. Perguntamos se não estávamos atrapalhando o descanso da pessoa que lá se encontrava. Ela então nos disse que se tratava de seu marido com derrame há uns três anos, e que ele estava acordado.

Começamos com aquelas perguntas formais: qual sua idade? E ela disse ter 62 anos, porém, aparentava muito mais. Disse também ser mais nova que seu marido uns dois ou três anos. Que ali também morava seu filho caçula com 19 anos, mas que naquele momento ele trabalhava no carvão. Os outros eram casados e moravam longe.

Perguntamos se seu filho ainda estudava. E ela nos respondeu que igualmente ao seu marido, só havia estudado até a 4ª série e não quis mais ir para a escola. E a senhora, estudou? Ela foi bem direta. Nunca estudei. No sítio não se fazia útil. Respondeu com uma voz de tristeza.

Querendo ser solícita, uma das meninas perguntou se ela gostaria de ter a oportunidade de estudar. Ela fez uma pausa, respirou fundo, enrolou as pontas do avental e respondeu - "Acho que não devo mais pensar em oportunidade, só em poder cuidar de meu marido; ele mais parece morto e, morta também tô".

Ficamos ali, sem saber o que dizer. Mas, dona Alice nos aliviou o fardo nos convidando para conhecer seu marido.

Disse ela ao entrar no quarto - "Olhe Zé, você tem visita. As meninas são da escola da Isa Maria".

Seu Zé era um homem forte, pele esticada e rosada. Usava camiseta bem branquinha e tinha vestígio de talco em seu pescoço. Era uma prova de que estava sendo muito bem cuidado.

Uma das meninas falou alguma coisa para ele e, ele agitou-se.

Saí do quarto, as meninas vieram atrás. Agradecemos à atenção de dona Alice e fomos embora. Naquele momento nosso trabalho, ali, não tinha mais sentido. Não havia mais o quê conversar. Fomos em silêncio, envolvidas em nossos próprios pensamentos.

Voltei lá sozinha outras vezes. Levei revistas de artistas famosos, um terço, um jogo de agulhas de crochê e uma revista que ensinava diversos pontos de crochê e tricô. Mesmo não sabendo ler seria interessante ela folhear esse material.

A figura daquela mulher mexeu comigo. Mesmo sabendo que eu não poderia tirá-la daquela situação, quis mostrar que ela ainda estava viva, pois os mortos não fazem amigos.