OS MODELOS TRADICIONAIS DE ENSINO E A SOCIOLINGUÍSTICA


Em muitos momentos, seja durante a fase acadêmica, ou em meio ao exercício da profissão, os educadores se deparam com diversos enigmas quanto à melhor forma de se aplicar a disciplina de Língua Portuguesa. A partir dessas dúvidas alguns partem para a observação dos fenômenos presentes no seu cotidiano, utilizando-se de informações empíricas ou embasando-se em alguma teoria.
Seja qual for à inquietação e o meio, o terreno se torna movediço, as certezas tênues, visto que trabalhar com algo vivo, portanto mutável e heterogêneo, como é o caso da linguagem humana, acaba por tornar o estudo extremamente complexo.
Refletir sobre o uso da linguagem constitui o primeiro passo para que preconceitos sejam derrubados e para que se forme a consciência crítica dos alunos, e porque não a do próprio educador, que tem a chance de revisitar o próprio pensamento.
Essa concepção, que consiste na observação prévia da linguagem para melhor compreende-la e só assim aplicar a sistemática com os alunos já vem de longa data, o que constitui um valor fundamental, no que diz respeito ao patrimônio sociocultural dos educandos, colocando o educador na posição de mediador, que busca em seu trabalho, desenvolver outras possibilidades de utilização da língua, não como algo destinado a castrar a liberdade dos indivíduos, mas sim, dar-lhes liberdade de abstrair da linguagem o necessário para os diferentes usos.


Ele não se encontre em face de uma tabula rasa, sôbre (sic) a qual poderia edificar o que quisesse, mas diante de realidades que não podem ser criadas, destruídas ou transformadas à vontade. Não podemos agir sôbre (sic) ela senão na medida em que aprendemos a conhecê-las, em que sabemos qual é a sua natureza e quais as condições de que dependem; e não poderemos chegar a conhecê-las, se não nos pusermos a estudá-las, pela observação, como o físico estuda a matéria inanimada, e o biologista, os corpos vivos. (DURKHEIM, 1967, p. 37)


Ao se deparar com as adversidades, é necessidade fundamental do professor consciente, criar meios para extinguir dúvidas e dificuldades, mas não somente transmitindo ao seus alunos uma lista de regras gramaticais, é necessário valorizar o conhecimento prévio, para que se viabilize o ensino e a relação aluno/professor, tornando o convívio e o aprendizado, partes integrantes do seu cotidiano e não algo distante de sua realidade é preciso agir quando se é necessário e às vezes na incerteza. Dúvidas e desafios são uma constante no plano educacional, o que se faz necessário é um grande empenho em concretizar o ideal de que se aprende com as diferenças e se podem colher muitos frutos dessa árvore diversa que é a Linguagem.
Segundo as atuais propostas do MEC, expostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para que se alcance um ensino eficiente e de qualidade, existe a necessidade de modificações no modelo fragmentário do ensino que vem sendo aplicado, em especial, a aplicação de projetos interdisciplinares e como complemento, atividades extracurriculares. Tais práticas evidenciam outro ponto, a reformulação das práticas pedagógicas e das estruturas educacionais, o que hão de recorrer à iniciativa tanto do corpo docente, quanto das esferas governamentais.
O papel das atividades extracurriculares, como concursos de música e poesia, formação de grêmios estudantis, é fundamentar iniciativas de inclusão, pois estas envolvem todo o grupo escolar, podendo alcançar até mesmo a comunidade em geral.
Embora em alguns momentos essa iniciativa pareça distante do modelo tradicional das práticas pedagógicas tradicionais, ela representa o suporte ideal para que seja inserida, de forma interessante, parte dos conteúdos. Em se tratando do ensino de língua materna, o resultado pode ser muito positivo, visto que certas atividades valorizam os diferentes usos da língua, além de nosso patrimônio cultural.
A escola, a começar pelo material didático, reproduz o arquétipo de uma língua homogênea e perfeita e esse conceito passa a ser difundido no seio da sociedade. A gramática normativa consolida ainda mais a idéia da necessidade de uma norma padrão. Assim, a sociedade reproduz, desde a escola, uma idéia de língua engessada e se alimenta disso, fortalecendo o circulo vicioso do preconceito.
Podemos então concluir que tais atividades representam um diferencial no ensino de língua portuguesa, tendo em vista a possibilidade da não vinculação do aluno ao paradigma língua/gramática, voltando-se para a diversidade que a linguagem humana proporciona.
A partir do material didático e das práticas pedagógicas vigentes, a possibilidade de aprimoramento das aquisições lingüísticas tornam-se menores, ao passo de que a língua provém de uma relação dialética, criada a partir do desenvolvimento e da interação entre as diversas culturas. Adequar a linguagem para os diversos usos deveria ser a meta dos professores de língua portuguesa. O objetivo da escola deve se voltar para a socialização do conhecimento. A língua é uma ferramenta e deve desenvolver e não castrar o indivíduo, principalmente no ambiente criador da escola. Além disso, o preconceito lingüístico afeta toda a sociedade, pois estando arraigado, não fica restrito à linguagem, passa também a gerar o desprezo pelo nosso próprio patrimônio lingüístico e cultural.
Em termos práticos, atividades transdisciplinares, interdisciplinares e transversais favorecem o aumento do léxico, a interpretação textual, aguçando a sensibilidade devido à semioticidade contida nestes ambientes, além de favorecer a comunicação entre os indivíduos envolvidos nos projetos.
A linguagem conseqüentemente ganha um papel fundamental nesses movimentos culturais, pois é através dela que se adquire o aprimoramento das relações humanas e vice-versa, o que transmite um referencial quanto à identidade dos indivíduos, causando a integração ao meio em que vivem e assim tornando-os capazes de modificá-lo, assim como a linguagem.Nesse processo, o livro didático torna-se uma ferramenta, um meio e não um fim para o aprendizado. O fato é que, quando o aluno insere o livro em detrimento de algo que ele deseja, este se torna integrante do seu cotidiano, colocando os conteúdos a favor do desenvolvimento de suas aquisições lingüísticas, favorecendo a comunicação e a convivência social.
Nós educadores temos consciência das dificuldades enfrentadas na prática docente, na tentativa de inserir os conteúdos no dia a dia dos alunos. Isso se dá primeiramente por conta do distanciamento entre a vida escolar e fora dela. Realmente a escola é uma instituição diferente de qualquer outra forma de organização humana, além de constituir o primeiro contado do indivíduo com uma organização social extrafamiliar, carregada de ideologias e fortemente manipuladora e transformadora da realidade dos que dela fazem parte. É justamente por isso que ela deve constituir o diferencial, o local da concretização de saberes e realizações, e não representar uma prisão, em que a permanência é sinônimo de castigo. Segundo Durkheim (1967, p. 12), "A educação é um processo social; isto é, esse processo põe em contato a criança com uma sociedade determinada, e não com a sociedade in genere."
É necessário que o educador enfrente a concorrência entre a escola e a cultura de massa, uma vez que esta está presente na vida comum e é impossível ignorá-la. Porém, há a possibilidade de utilizá-la a seu favor, vinculando os conteúdos curriculares aos meios de comunicação.
O primeiro passo é acreditar que existem meios de realizar, no âmbito escolar, projetos que seduzam os alunos, que valorizem sua linguagem e os envolvam naturalmente nas práticas de ensino/aprendizagem, seja por qual meio for, o fundamental é que se atinja de uma vez por todas, o desenvolvimento das competências básicas para um uso eficiente da língua, que são a representação, a comunicação, a investigação, a compreensão e a contextualização.
Para que haja uma mudança significativa no ensino de íngua materna é necessário antes de tudo, observarmos por meio de uma perspectiva histórica, os caminhos que a língua percorreu, em detrimento do meio social em que as relações humanas se desenvolvem e as diferentes abordagens.
O foco deste trabalho está na perspectiva de língua como atividade social, considerando os diversos fatores que influenciaram o ensino/aprendizagem em língua portuguesa.
Um aspecto importante a ser considerado é o processo de urbanização e como esse fator influenciou o ambiente escolar e as metodologias de ensino. A crescente migração dos indivíduos da zona rural para os centros urbanos em pleno desenvolvimento industrial e demográfico implicou em uma mudança de valores socioculturais da população em geral. Essas mudanças alteram também as relações dos indivíduos com a linguagem, tendo em vista que as instituições de ensino deixaram de ser direcionadas especificamente aos alunos da classe média urbana e passaram a receber alunos procedentes do meio rural, em geral vindos de famílias de baixa ou nenhuma escolaridade.
Sabemos, por meio de dados, como os do IBGE que o analfabetismo é um fator desigual, atingindo em maior número a população rural do país, o que se relaciona ainda com o nível de desenvolvimento de certas regiões. É fato que os estados em que se concentravam os maiores índices de desenvolvimento contemplam um maior grau de analfabetismo.
Outro fator a ser analisado é a mudança no olhar sobre a linguagem e conseqüentemente, na abordagem ou metodologias para o ensino de língua materna.
As primeiras concepções de linguagem partem de uma perspectiva de homogeneidade da língua, sendo observadas e classificadas como atividade mental e estrutural, independentes do contexto em que são produzidas. Com a evolução dos estudos lingüísticos, a língua passa a ser considerada como atividade social, o que implica a observação de diversos fatores situacionais antes desconsiderados, como por exemplo, o momento histórico, a relação entre diferentes usuários, ou seja, a língua passa a ser considerada heterogênea, além de veículo de interação no meio social em que os indivíduos atuam.
Até o desenvolvimento dessa última abordagem, os estudos eram fundamentalmente pautados na Fonologia, na Morfologia e na Sintaxe. Considerando que estas não mais apresentavam uma análise ampla e real dos fenômenos lingüísticos, novos campos foram formulados para permear tais relações, são elas a Sociolingüística, a Psicolingüística, a Análise da conversação, a Pragmática, a Análise do discurso e a Lingüística textual (CASTILHO, 2004, p. 12).
A partir dessas considerações podemos observar uma mudança profunda e mais ampla no olhar que se desenvolveu em torno dos estudos da linguagem.
Embora isso seja um fato positivo e um avanço considerável, não devemos esquecer que toda idéia necessita de um veículo para que se estabeleça substancialmente. Nos deparamos neste momento com um fator crucial para o desenvolvimento prático dessas novas abordagens, a formação dos professores vigentes.
Uma grande parcela do professorado atual tem uma formação anterior à difusão dessa perspectiva de língua, sendo sua formação acadêmica fortemente pautada em uma cultura gramatical que reverencia o conceito de homogeneidade ou padronização.
Podemos concluir que há uma defasagem no ensino de língua materna, havendo a necessidade de uma reformulação de tais conceitos na formação desses profissionais, relativo à forma de se voltar para a língua, pois isso implica não somente no âmbito educacional, mas em toda a sociedade que vive em constante estado de transitoriedade. Dessa forma, surge a necessidade de abordagem mais ampla dos fenômenos lingüísticos que são responsáveis por definir parte das relações humanas. (CASTILHO, 2004, p. 12)
A formação desses educadores, até meados de 1970/80 era direcionada ao desenvolvimento de um padrão de rigidez, o que se refletia tanto no comportamento, quanto na forma de entendimento e transmissão dos conteúdos.
Tendo em vista o preceito de homogeneidade, os materiais didáticos disponíveis contavam com uma metodologia que se pautava na aplicação de exercícios repetitivos que privilegiavam uma concepção desfragmentada de língua, ou seja, não considerava o real valor lingüístico do uso. Esse conceito se perpetua com a abordagem da língua escrita, sem que se faça perceber que esta, nada mais é que um produto do sistema lingüístico que parte da língua em uso na fala dos indivíduos.
A fala é a principal responsável pela interação entre os indivíduos e o estabelecimento de suas relações mais importantes, portanto, valorizar o desenvolvimento das aquisições lingüísticas voltada para a oralidade é antes de tudo, um determinante social. Isso por que, é no desenvolvimento do discurso que surgem outras características como a criticidade, o respeito e a sociabilização. Percebemos então que o ensino de língua portuguesa passa a exercer maior importância e maior amplitude, dentro das relações humanas, o que transcende os muros das escolas.
Migração da zona rural para os centros urbanos, evolução nas ciências da linguagem e defasagem nas metodologias para o ensino de língua materna. Esses são alguns dos fatores mais relevantes que ajudam a fortalecer e veicular o preconceito lingüístico, dentro e fora da escola.
Como nossas relações são todas firmadas sobre contratos sociais pré-estabelecidos socioculturalmente, a linguagem, como veículo de interação está fortemente ligado a essas relações de poder. Imaginemos assim, que as bases da sociedade em nosso país deveriam ser mediadas pela educação. Os índices do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - SAEB demonstra que o número de alunos, tidos como "adequados", são uma minoria distante, se relacionados aos outros critérios da pesquisa. Essa minoria se beneficiará com a possibilidade de seguir um curso superior e renovar assim a relação desigual de poder em nossa sociedade. O restante, que apenas acumulou deficiências na aprendizagem, continuará alimentando o ciclo de perpetuação da exclusão, vinculado a outros tipos de preconceitos, que não somente o lingüístico.


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