CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
"A história é um carro alegre, cheio de um povo contente
Que atropela indiferente todo aquele que a negue.
É um trem riscando trilhos, abrindo novos espaços
Acenando muitos braços, balançando nossos filhos"
(Chico Buarque/Pablo Milanés)


Em sua obra A história ou a leitura do tempo, Autêntica, 2009, Roger Chartier, papa da Nova História Cultural, discorre acerca da produção historiográfica e os problemas que perpassam a escrita da história. A forma retórica e narrativa da história vai sendo mostrada concomitantemente com seu local de produção ? antes os mosteiros e palácios, hoje as academias universitárias - e também suas formas de divulgação ? editorial e através da Internet.
São citadas as formas de produzir a história e suas divisões entre diversas correntes historiográficas além de suas temporalidades e formas de escrita compartilhada com a ficção ou dentro de seu arcabouço conceptual científico. Há também a concorrência com as artes cênicas e a literatura na arte de reconstruir os fatos com verossimilhança.

Roger Chartier, frances de Lyon, pesquisador e professor universitário é diretor de pesquisas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e também membro do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. A história ou a leitura do tempo é sua décima obra publicada no Brasil, país que Le visitou por várias vezes e onde é considerado um dos intelectuais franceses contemporâneos mais influentes entre os estudantes das ciências sociais. Seu livro a história cultural entre práticas e representações, publicado no Brasil em 1988, ajudou a criar um novo conceito para a pesquisa em história cultural: o conceito de "representações e práticas".

Em seu primeiro capítulo, A história, entre relato e conhecimento, Chartier cita historiadores como Paul Veyne, Michel de Certeau, Hayden White, Carlo Ginzburg entre outros para falar acerca das formas de narrativa e retórica da história. A história não reconstrói o passado e sim reconstitui os fatos de forma verossímil. Michel de Certeau ? em citação de Chartier
Demonstrou como a escritura da história, que supõe a ordem cronológica, o fechamento do texto e o recheio dos interstícios, inverte o procedimento da investigação, que parte do presente, que poderia não ter fim e que se confronta sem cessar com as lacunas da documentação. (p. 15)

Chartier cita o paradigma indiciário de Ginzburg e que a história, segundo Certeau, produz enunciados "científicos" e que convoca o passado, mostra a competência do historiador com as fontes e tenta convencer o leitor. O discurso histórico parte do presente, onde seu objeto já não se encontra, e vai construindo teias de informações para contextualizar os fatos.

Em A instituição histórica, Chartier procura mostrar como a história funciona em seus meandros. Diz que a instituição histórica permite apenas um tipo de produção e proíbe outros. O loccus de produção historiográfica que antes eram os palácios e mosteiros, hoje encontra-se nas universidades onde muito é produzido ? em alguns casos só em busca de titulação do historiador ? e fica essa produção ainda encastelada nas academias.
Chartier cita o caso de Philippe Áries que era visto com desconfiança por não ser um acadêmico de história e fala também dos preconceitos e das subjetividades do historiador. Citando Ricoer o autor fala da articulação das três fases da operação historiográfica e da reconstrução do passado tal como presente na memória.
Há as relações no passado entre história e memória e as relações no presente entre história e ficção. Não devemos tergiversar os registros literários e de outras formas de arte ? em especial as cênicas ? mas devemos extrair o que de verossímil tais obras apresentam sem tomá-las como registros realmente científicos.
Existe o lado editorial da história e seu financiamento ? tanto para publicação, quanto para pesquisa ? e a questão do discurso, por ser uma narrativa, ficar em uma linha tênue entre o real e a ficção, entre o historiador e o escritor, entre literatura e história.
A capacidade crítica da história não se limita, efetivamente, à negação das falsificações ou das imposturas; ela pode e deve submeter às construções interpretativas a critérios objetivos de validação ou de negação. (p. 30)

No terceiro capítulo, intitulado do social ao cultural, Chartier começa dizendo que toda história, independente de sua corrente de pesquisa, é cultural e cita alguns conceitos e definições para cultura ? sob uma visão antropológica ? do qual o mais abrangente e também complexo é o de Clifford Geertz cuja cultura
Denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. (p. 34)

Há uma necessidade de se lidar com disciplinas que recuperam e estudam as linguagens e que as obras lidas, ouvidas ou vistas tem participação na construção do significado do discurso histórico. É preciso observar a sociologia dos textos e suas leituras em diferentes níveis de leitores. É citada uma contradição entre o platonismo e o pragmatismo no discurso histórico. E é de fundamental importância valorizar e analisar as relações que as comunidades mantém com a cultura escrita.

No capítulo Discursos eruditos e práticas populares, Chartier cita que as relações entre cultura letrada e cultura popular povoaram apaixonadas discussões na história cultural. A cultura morre e renasce com a mesma intensidade e força e nunca está dissociada do homem. É impossível "(...) pretender identificar a cultura, a religião ou a literatura" popular" a partir de práticas, crenças ou textos que seriam específicos delas." (p. 47).
Nos dias coevos não há como distinguir o que é popular do que é erudito e até o que é cultura "negra", cultura "branca". Há todo um processo de hibridação e de hibridização cultural onde tudo é absorvido e ressignificado num processo chamado por Carlo Ginzburg de circularidade cultural. Neste capítulo Chartier usa e dá exemplo do seu método de representações e práticas.
Conduzir a historiada cultura escrita dando-lhe como pedra fundamental a história das representações é, pois, vincular o poder dos escritos ao das imagens que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los, com as categorias mentais, socialmente diferenciadas, que são as matrizes das classificações e dos julgamentos. (p. 52)

No capítulo Micro-história e globalidade, fala-se da história totalizante e de sua rejeição pelos micro-historiadores e que agora há um movimento por uma história global mas usando um jogo de escalas, nem só o "micro" e nem só o "macro". A união do global com o local gerando um híbrido o glocal que na teoria corrigiria as distorções no uso de escalas micro e macro.

Ao discorrer sobre A história na era digital, Chartier defende que toda inovação tecnológica não causa uma mudança repentina no que diz respeito à produção e consumo de obras historiográficas e que muitos esperavam que o advento da Internet, e por conseqüência o lançamento dos livros eletrônicos, seria uma revolução na divulgação e distribuição historiográfica, o que ainda não acontece.
Um problema na divulgação de livros eletrônicos é que no livro impresso as notas remetem a textos que o leitor, em geral, não lerá, mas no livro eletrônico o leitor talvez faça o processo inverso, deixando de ler a obra, para procurar as referencias do autor expostas nas notas. O desaparecimento de editores especializados em livros eletrônicos mostra que ainda não é uma realidade o sucesso deste novo mercado editorial.

Em sua conclusão Chartier usa Os tempos da História desde a longa duração braudeliana à micro-história de Ginzburg, Levi e outros, além da discussão se as temporalidades são externas ou não aos indivíduos e conclui afirmando que
(...) a leitura das diferentes temporalidades que fazem que o presente seja o que é, herança e ruptura, invenção e inércia ao mesmo tempo, continua sendo a tarefa singular dos historiadores e sua responsabilidade principal para com seus contemporâneos. (68)

Em seu ensaio Chartier, de forma até certo ponto didática, vai discorrendo sobre as questões que pululam o dia-a-dia da produção historiográfica ? principalmente após a chamada crise da história, vivida nos anos 80 e 90 ? e vai assim passando em revista vários aspectos da historiografia, inclusive a sua obra, em um livro de leitura fluida e não cansativa que prende o leitor até o fim.