Sumário: Introdução. 1 Aspectos gerais do testamento vital. 2 Desdobramentos da autonomia privada diante do testamento. 3 Conflito aparente de normas: resoluções nº 1.805/06 e 1.995/12 do CFM, art. 121, 122, 135, CP e art. 5º, CF e demais previsões legais. Conclusão. Referências Bibliográficas.

 RESUMO

O presente paper fará um estudo sobre o testamento vital, em face das resoluções editadas pelo CFM acerca da possibilidade de o paciente pode manifestar expressamente se deseja ou não receber cuidados e tratamentos no momento em que não puder mais expressar livre e autonomamente sua vontade. Em que pese examinar ainda se há conflito com preceitos constitucionais e legais, como: vida, dignidade da pessoa humana, omissão de socorro.

Palavras-chave: Testamento vital. Ortotanásia. Omissão de socorro.

INTRODUÇÃO

Atualmente, os avanços da medicina e tecnologia que permitem o prolongamento indeterminado da vida de pacientes terminais, como doentes em estado vegetativo ou acometidos de males degenerativos, têm levantado discuss~es acalorados sobre o tema. E, ainda, à luz dos princípios resguardados pela Constituição Federal de respeito à dignidade e autonomia do paciente, é que se deve analisar a adoção do testamento vital feito por pacientes em estado terminal, no bojo do ordenamento jurídico brasileiro.

O caminho a ser trilhado colocará em cheque a possibilidade de um indivíduo, gozando de suas plenas faculdades mentais, dispor antecipadamente acerca das escolhas terapêuticas adotadas na fase terminal de sua vida, por meio do testamento vital, podendo, inclusive, recusar-se a receber tratamento que prolongue inútil e

indefinidamente a sua existência.

1. ASPECTOS GERAIS DO TESTAMENTO VITAL

Os avanços medicinais delineados a partir de meados do século XX possibilitaram significativa melhoria nos tratamentos para doenças antes consideradas os grandes males da humanidade, as quais, seguramente, levariam o indivíduo à morte. Nesse sentido, o médico ganhou papel quase que heroico frente a doenças como câncer, aids, dentre outras moléstias, devendo a todo custo permitir ao paciente terminal, no mínimo, uma sobrevida.

Com perspectiva de vida maior, os doentes terminais por vezes se viam diante de uma situação deplorável, em que prolonga-se a vida com o sentimento de adiamento artificialmente da morte. Necesse cenário, surgiu o instituto legal chamado testamento vital ou testamento biológico, que é

o documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não-tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade” (BORGES, professora da UFBA, apud Flávio Tartuce, 2011).

A professora Maria Celeste Cordeiro aponta-se como seu fundamento legal o chamado direito à intimidade. A autonomia (do grego = faculdade para se auto-governar) como direito moral e legal, como dever. “A capacidade de auto-governo é a capacidade para pensar, sentir e emitir juízos sobre o que considera bom”.

Com a edição da  Resolução 1.8054 do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em 2006, um sem número de questionamentos surgiram em torno do da continuidade do tratamento se o paciente estiver inconsciente. Quem tem legitimidade para definir se haverá prolongamento do tratamento: A família ou os médicos? Preleciona o médico Cláudio Sakurada, do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP) que “o ideal é que o paciente seja abordado sobre essas decisões quando ainda tem autonomia e plena capacidade de decisão, ou seja, sem depressão e sem sintomas que causem sofrimento, como dor, falta de ar, náuseas etc” (apud Fernando Borges Vieira, 2012).

Com fulcro nos ordenamentos jurídicos estrangeiros é possível pontuar a necessidade de alguns requisitos básicos para feitura do testamento vital, elencados pela pesquisadora Luciana Dadalto (2013, web):

4 Dispõe sobre as diretiva antecipadas de vontade dos pacientes.

1) Capacidade: é necessário que o indivíduo seja capaz, segundo os critérios da lei civil. Ou seja, tenha mais de 18 (dezoito) anos e se enquadre em nenhuma situação de incapacidade a posteriori. Contudo, entendemos que uma pessoa que seja menor de 18 anos pode fazer o testamento vital, desde que haja autorização judicial, baseada no discernimento desta pessoa. Ou seja, na prova de que, ainda que seja incapaz pelo critério etário escolhido pelo legislador brasileiro, possui discernimento para praticar tal ato; 2) Registro: apesar de não haver nenhuma lei impondo o registro do testamento vital, entendemos que a lavratura de uma escritura pública, perante os tabeliães de notas, é de extrema importância para garantir a efetividade deste, uma vez que os tabeliães possuem fé pública. Ademais, entendemos ainda que o testamento vital deve ser anexado ao prontuário médico do paciente; 3)Prazo de validade: o testamento vital vale até que o paciente o revogue.

Não se pode olvidar a consulta a dois profissionais que tem participação fundamental nesse processo: um médico de confiança, para que possa ombrear-se junto ao paciente no transcurso do estado terminal em que se encontra. Visto que, antes que se proceda à confecção do testamento vital, há a fase clínica terminal – pressuposto elementar desse tipo de testamento – em que é necessário o acompanhamento do profissional da área médica para

promoção de cuidados paliativos ao paciente, até o momento de sua morte. Estes são definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como o controle da dor e de outros sintomas, e o cuidado dos problemas de ordem psicológica, social e espiritual; atingindo a melhor qualidade de vida possível para os pacientes e suas famílias. Dessa forma, os cuidados visando o bem-estar da pessoa passam a ser a prioridade, e não a luta contra algo que, inevitavelmente, não tem como se combater – no caso, a doença e o fim da vida (ARAGUAIA, 2012, web).

A seguir, é mister que seja constituído um advogado especialista no tema que, não necessariamente é especialista em direito sussessória, a exemplo do testamento patrimonial.

O testamento vital que a ser estipulado pelo paciente, no tocate aos tramentos, ocorre no bojo dos serviços de cuidados paleativos. Aponta a ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) que “ainda são poucos os serviços de Cuidados Paliativos no Brasil. Menor ainda é o número daqueles que oferecem atenção baseada em critérios científicos e de qualidade. Está provado que Cuidados Paliativos diminuem os custos dos serviços de saúde e traz (2009, web).”

Sob o prisma jurídico, o testamento vital enquanto negócio jurídico, tem um conteúdo, o qual versa sobre disposições de recusa e/ou aceitação de tratamentos que prolonguem a vida artificialmente, disposição sobre doação de órgãos e a nomeação de um representante.

Conforme acentua Luciana Dadalto (2013)

quanto às disposições de recusa e/ou aceitação de tratamentos,  para serem válidas frente ao ordenamento jurídico brasileiro, o paciente não poderá dispor acerca da recusa dos cuidados paliativos, vez que estes são garantidores do princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e, por conseguinte, do direito à morte digna bem como por afrontarem a própria filosofia dos cuidados paliativos, que orienta a prática médica no tratamento de pacientes terminais no Brasil.

Em termos práticos, o que se deve recusar é não entubação, não realização de traqueostomia, suspensão de hemodiálise, ordem de não reanimação. O que for essencial ao mínimo existencial não pode ser suprimido, em que pese o pedido de suspensão de hidratação e alimentação artificial. Em sendo requeridos, serão de plano, nulos de pleno direito.

O testamento vital,antes de tudo, surge com o intuito tanto de evitar tratamentos desmedidos contra a vontade real do paciente, ou seja, evitar a distanásia, como para evitar que os médicos sejam processados por respeitarem a vontade daqueles.

2. DESDOBRAMENTOS DA AUTONOMIA PRIVADA DIANTE DO TESTAMENTO VITAL

A autonomia da vontade, principio basilar do ordenamento jurídico brasileiro, constitui um dos componentes essenciais da proteção à liberdade tutelada constitucionalmente aos indivíduos, especialmente, na esfera atribuída pelo Direito para auto-regulação das relações privadas.

Nesta perspectiva, assevera Lindajara Ostjen Couto (2012): “a constitucionalização do Direito de Família abre enorme espaço ao indivíduo e as suas escolhas, sendo um espaço de não intervenção do Estado, em fenômeno às avessas do contrato e da propriedade, onde o Direito avançou sobre o espaço da escolha individual”.

Aduz o professor Ronald Dworkin (2003, p. 315): “há um consenso geral de que os cidadãos adultos dotados de capacidade têm direito à autonomia, isto é, direito a tomar por si próprios decisões importantes para a definição de suas vidas”.

Segundo Bruno Torquato de Oliveira Naves e Maria de Fátima Freire de Sá (apud Aluisio Santos de Oliveira, 2007), “o direito se utiliza dos termos autonomia da vontade ou autonomia privada por serem mais abrangentes que a expressão

‘Consentimento informado’ que, no campo biológico, sintetiza o poder de autodeterminação do paciente”.

A tarefa de estabelecer o que é discricionário ao paciente muitas vezes se mostra difícil, dada a ingerência estatal no Direito de Família. Os riscos à vida de uma pessoa transitam em uma zona que ainda é de penumbra dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse cenário, uma das controvérsias mais perturbadoras diz respeito ao consentimento para aceitar ou rejeitar tratamentos médicos, vinculada intimamente à autonomia da vontade.

Questiona-se, inicialmente, se poderia uma pessoa declarar, válida e antecipadamente, a quais intervenções médicas pretendem se submeter, caso futuramente se encontre em situação que a impossibilite de prestar seu consentimento. Como corolário disso, interroga-se se esta declaração for admitida, quais os seus requisitos e limites.

No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e pacientes, o consentimento informado – expressão que se cunhou para identificar que a declaração de vontade do paciente é externada de forma livre e devidamente esclarecida – é a expressão da autonomia que se lhes confere para aceitar ou recusar determinados tratamentos ou intervenções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos procedimentos que serão seguidos (GODINHO, 2012, 948). 

O respeito à autonomia pessoal do paciente dá azo ao consentimento informado para a realização de um procedimento médico e as diretivas antecipadas não se confundem, pois enquanto naquele ato há a aceitação ou rejeição a determinado tratamento proposto para a cura de um mal presente, nestas ocorre uma projeção que se reporta a casos futuros.

Nesse particular, o consentimento informado é consubstanciado na assinatura do Termo de Consentimento Informado, documento que deve especificar, em linguagem acessível ao paciente, as informações indispensáveis à formação da sua livre convicção.

Por sua vez, o senhorio dos médicos em face das decisões tocantes à vida e saúde dos pacientes é um dos grandes entraves ao pleno desenvolvimento da autonomia dos pacientes, neste domínio. A leiguice do paciente quanto aos mandamentos do médico e os tratamentos a serem ministrados não podem ser levados a cabo no sentido de tolher quaisquer manifestações contraria ao que determinou o medico. Isto porque o tratamento deve almejar um sistema dialético. 

Daí segue ensinando Godinho, “o sentido do consentimento informado, expressão maior da autonomia para aceitar ou recusar determinados procedimentos, com base nos esclarecimentos, prestados pelo médico, sobre a natureza da intervenção, os riscos, as contraindicações e as vantagens esperadas”.

Em fins práticos, saber quem delibera sobre a continuidade do tratamento se o paciente estiver inconsciente, se a família ou os médicos é o ponto alto da discussão que envolve a autonomia da vontade do paciente. Realça o médico Cláudio Sakurada, do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP): “O ideal é que o paciente seja abordado sobre essas decisões quando ainda tem autonomia e plena capacidade de decisão, ou seja, sem depressão e sem sintomas que causem sofrimento, como dor, falta de ar, náuseas etc.” (apud HEBMÜLLER, 2013 Nº 409, JAN./FEV.).

Cumpre lembrar as palavras de Clemente e Pimenta:

As decisões médicas passaram a considerar as preferências do paciente. O fundamento ético dessa nova forma de agir está no novo modelo autonomista que gerou o direito ao consentimento informado e o fundamento lógico está nas novas teorias causais e nos novos modelos probabilistas(2006, p.8).  O princípio da autonomia é o respeito à vontade do paciente, considerando seus valores morais e crenças religiosas. É o reconhecimento do domínio do paciente sobre sua própria vida, sobre seu corpo e sua mente, o respeito à intimidade. (MAGNO apud GUERRA, 2005, p.338)

A resolução 1.805 do Conselho Federal de Medicina que, ao liberar a prática ortotanásica aos médicos, causou grande celeuma no Judiciário. Parece interessante analisar outros termos acessórios, como morte encefálica e morte cerebral, cujo exame é relevante para esse estudo.

Segundo o Neurocirurgião do Hospital das Clínicas da UFMG Eric Grossi Morato, “morte encefálica representa o estado clínico irreversível em que as funções cerebrais (telencéfalo e diencéfalo) e do tronco encefálico estão irremediavelmente comprometidas” (2009, p. 227). Ao passo que “a morte cerebral, que é uma lesão dos hemisférios cerebrais, significa o estado vegetativo persistente (MANREZA, 2009 apud

Jimmy Matias Nunes, Lorena Sales Araújo, )”.

Consoante o médico e advogado Sergio Pittelli, tanto as famílias quanto muitos profissionais de saúde estão imersos numa cultura em que a ideia de vida continua

atrelada às batidas do coração – e não ao conceito de morte encefálica –, e é daí que se originam as resistências a uma eventual recusa de tratamento.

O paciente em  estado terminal, bem como sua família, devem estar a par das condições clínicas em que se encontra, a fim de permitir, em havendo consentimento do paciente, que o que fora averbado no testamento vital seja cumprido em seus termos, em decorrência da impossibilidade de a consciência ser restaurada, por força da irreversibilidade da morte cerebral.

A ortotanásia, procedimento conignado pelo CFM na resolução nº1.805/2006, deriva dos vocábulos orto: certo e thanatos: morte, traduzindo-se como morte correta. Ela visa não prolongar artificialmente o processo de morte, para além do que se processaria naturalmente, consiste em uma omissão, sem com isso, interferir. Assim,

“Na situação em que ocorre a ortotanásia, o doente já se encontra em processo natural de morte, que consiste na morte encefálica, processo este que recebe uma contribuição do médico no sentido de deixar que esse estado se desenvolva no seu curso natural” (BORGES, 2001, P.287).

Por sua vez, a eutanásia é um procedimento que visa a morte provocada por cônjuge, companheiro, ascendentes, descendentes ou pessoas ligadas por estreitos laços de afeição que interferem, assim, no processo de morte.

para que se configure a eutanásia são indispensáveis a coexistência de três elementos: o estado de sofrimento agudo do enfermo; o consentimento deste doente; e a antecipação da morte fundamentada em sentimento de piedade (NUNES, ARAÚJO, 2012).

A expressão distanásia consiste  na  obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, traduzindo-se, segundo Borges (2001, p. 286), como “o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente”. Em outras palavras, o paciente tem seu sofrimento dilatado.

Outro binômio que merece destaque é o direito à morte digna e direito de morrer. O primeiro, direito à morte digna pode ser definido como: “a reivindicação por vários direitos, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, refere-se ao desejo de se ter uma morte humana, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil” (BORGES, 2001, p. 284).

A escolha feita pelo paciente de nao ser obrigado a se submeter a tratamentos excessivos e ineficazes que, tão somente, prolongarão o seu processo de morte e,

conseguintemente, aumentarão a sua agonia, compreende o direito de morrer dignamente. Ou seja, direito do doente em não se submeter à chamada obstinação terapêutica.

Este não, senão o maior, um dos grandes desafios da bioética, respeitando a vontade daquele que se encontra já sem qualidade de vida e “nas mãos” de seus familiares / cuidadores.

Em sentido contrário, o direito de morrer é o direito de o indivíduo, que esteja em estado terminal ou até mesmo saudável, a interromper o tratamento ao qual está submetido ou vai se submeter, dando causa ou anecipanso dua morte. Esta expressão está atrelada ao significado de eutanásia e auxílio ao suicídio.

O professor Ronald Dworkin (2003), ao tratar sobre as decisões sobre a  própria morte, indicou  três tipos principais de situações que lhes dão ensejo, quais sejam: a) consciente e capaz; b) inconsciente e, c) consciente mas incapaz. Para cada uma, ilustrou um caso verídico.

Consciente e capaz, Lillian Boyes, “uma inglesa de setenta anos agonizava devido a uma forma terrível de artrite reumatóide, com dores tão lancinantes que nem mesmo os analgésicos mais poderosos conseguiam mitigar” (DWORKIN, 2003, p. 251). O médico de Lillian, imbuído de extrema compaixão, aplicou, a pedido da paciente uma dose letal de cloreto de potássio, provocando sua morte em poucos minutos.

Inconsciente, Antony Bland entrou em estado vegetativo permanente, por ter sido atropelado por uma multidão em fuga num estádio de futebol na Inglaterra. Teve os pulmões comprimidos e seu cérebro foi privado de oxigênio por muito tempo. A solicitação para que os médicos pudessem retirar o suporte vital e deixá-lo morrer partiu de seus pais. 

Na terceira hipótese, caracterizada pela demência, afeta, atualmente, cerca de um quarto à metade das pessoas acima de oitenta e cinco anos, “e que a causa principal do problema é o Mal de Alzheimer”. Dworkin (2003, p. 267) ainda completa: “nos estágios avançados dessa doença progressiva, as vítimas já perderam toda memória e

todo sentido de continuidade do eu e são incapazes de atender a suas próprias necessidades ou funções”.

Protagonizando, Janet Adkins, que estava nos estágios iniciais do Mal de Alzheimer e sabia o que lhe iria acontecer dali por diante, procurou o Dr. Jack Kevorkian, que possuía uma máquina de injetar veneno na parte de traz de sua perua. Os pacientes que desejassem morrer deveriam apertar um botão que injetava o veneno através de uma agulha que o médico introduzia na veia.

No primeiro e terceiro casos, o que se afigurou foi a eutanásia,  facilitadando o médico o processo de morte por meio do controle da dor. Em outra medida, o segundo caso caracteriza a ortotanásia, processo natural de morte, que consistiu na morte encefálica, processo este que recebeu uma contribuição do médico.

A autonomia do paciente deve sobremaneira vincular o médico, não esquecendo-se da irrenunciabilidade e da indisponibilidade do direito à vida. Por isso, não é possível que uma pessoa solicite que outra a mate ou lhe auxilie a suicidar. Isto, porém, não justifica o prolongamento exagerado de um tratamento, haja vista a irreversibilidade do estado do paciente e o prolongamento de seu sofrimento.

3. CONFLITO APARENTE DE NORMAS: RESOLUÇÃO Nº N.

1.805/06 DO CFM, ART. 121, 122, 135, CP E ART. 5º, CF E DEMAIS PREVISÕES LEGAIS

Estatui a Constituição Federal no artigo 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida. O inciso III do mesmo artigo dispõe que “ ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Em virtude da proteção ao  Estado Democrático de Direito, a Carta Magna foi além, alçando a dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional desse Estado (art. 1º, III). 

Analisando o conceito de supra exposto, tem-se que o direito de morrer dignamente está resguardado pela Constituição Federal, uma vez que o que se busca, em última instância é viver com qualidade.

Dentre os direitos sociais, a saúde se destaca, recebendo do Constituinte originário cuidado maior, em que pese a destinação de verbas em seu favor.

O direito a uma morte digna abriga vários outros direitos como a liberdade e a autonomia da vontade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana, pois este direito pressupõe que não é o ser humano que deve estar subordinado a tecnologia, mas o contrário, de modo que os procedimentos tecnológicos devem propiciar benefícios ao paciente e não prolongar a sua agonia. É assim que defende Borges (2001, p. 284): “é um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana [...] não objeto da ciência, mas sujeito da existência”.

No entendimento de Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2012), é assegurado o direito à vida (não o dever), mas não se admite que o paciente seja obrigado a ser submeter a tratamento. O paciente tem o direito de interromper o tratamento com base do direito constitucional de liberdade (inclusive liberdade de consciência), de inviolabilidade de sua intimidade e honra, e além disso de respeito à sua dignidade humana.

Sob viés diametralmente oposto, se posiona Fernando Borges Vieira, recorrendo ao que dispõe a resolução nº 1.995 do CFM e o art. 135 do Código Penal, para apontar a inconstitucionalidade – e portanto ilegalidade – das orientações do Conselho Federal de Medicina in verbis:

O paciente pode manifestar expressamente se deseja ou não receber cuidados e tratamentos no momento em que não puder mais expressar livre e autonomamente sua vontade; o médico responsável levará em consideração as diretrizes antecipadas de vontade e o paciente poderá designar um representante para que manifeste sua vontade e o desejo manifestado por intermédio deste será considerado.

Omissão de socorro – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.

Com o que não se concorda. Explica-se. Ao permitir que o paciente faça o testamento vital na iminência de piora em sua saúde, a resolução buscou resguardar a autonomia do paciente. Importante ressaltar que o momento em que o testamento vital será feito será anterior à que inabilita o paciente de exprimir seu consentimento, sob pena de nulidade do instrumento por ausência de um dos pressupostos inerentes aos negócios jurídicos. Logo, os métodos a serem aplicados pelos profissionais da saúde devem vislumbrar a melhoria do paciente, senão uma morte digna, sem sofrimento, prolongamento da dor.

O conflito entre as normas é tão somente aparente. Isso porque a resolução do CFM sequer força de lei conserva e, mesmo que conservasse, estaria conflitando com o Código Penal aparentemente, vez que o médico não se omitiria em realizar s procedimentos adequados à sobrevivência do médico, mas daria efeito aos que, a depender das circusntâncias fáticas, não prolongassem artificialmente o processo de morte, para além do que se processaria naturalmente (ortotanásia) ou facilitassem o processo de morte por meio do controle da dor, de acompanhamento psicológico, entre outros cuidados paliativos, além de evitar procedimentos inúteis ou que de alguma maneira prolongassem a dor, sem, no entanto, interferir no tempo de vida restante (eutanásia).

Ainda de acordo com a resolução, o médico deixará de considerar a manifestação de vontade se contrária aos preceitos do Código de Ética Médica.

 Não impor ao paciente nenhum tratamento ou procedimento contra sua vontade é uma assertiva que traz consigo algumas polêmicas ao seu redor. Segundo a resolução 1.805 do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em 2006, é permitido ao médico “limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal” (HEBMÜLLER, 2012).

Finca o artigo 2º da Resolução: 

o doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

A partir de uma rápida interpretação, é possível perceber que o que se pretende difundir são os cuidados paliativos e a ortotanásia.

O Código de Ética Médica nacional veda ao médico: efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal; o desrespeito ao direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, ressalvadas as situações em que houver iminente perigo de vida; e, ainda, que a autoridade do médico seja exposta a tal ponto que limite a liberdade da pessoa sobre o que considera relevante à sua pessoa ou seu bem estar. Previsto, respectivamente, em seus artigos 46, 56 e 48. (BRASIL, 1988, p.6-

7).

Depreende-se desses dispositivos que o direito à vida prevalece ao direito à liberdade, pois à autonomia só será exercida plenamente nos casos em que não houver iminência de morte. “O argumento utilizado é de que a vida é um bem maior,

sobrepujando-se à autonomia e tornando a realização do ato médico um dever prima facie” (MOTA apud GUERRA, 2005, p.362).

A preponderância do direito à vida não implica em negativa dos métodos aplicáveis ao paciente em estado terminal, com seu consentimento, bem como cuidados paleativos. Adriano Marteleto Godinho, professor de direito civil na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), afirma que “se a vida, de um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, de outro, impor às pessoas um ‘dever de viver’ a todo custo. Morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana” (apud HEBMÜLLER).

A bioética ao aliar os conhecimentos e avanços médicos ao ordenamento jurídico pátrio delineia o que se convencionou denominar sua

tríplice função, reconhecida acadêmica e socialmente: (1) descritiva, consistente em descrever e analisar os conflitos em pauta; (2) normativa com relação a tais conflitos, no duplo sentido de proscrever os comportamentos que podem ser considerados reprováveis e de prescrever aqueles considerados corretos; e (3) protetora, no sentido, bastante intuitivo, de amparar, na medida do possível, todos os envolvidos em alguma disputa de interesses e valores, priorizando, quando isso for necessário, os mais “fracos” (Schramm, F.R. 2002. Bioética para quê? Revista Camiliana da Saúde, ano 1, vol. 1, n. 2 –jul/dez de 2002 – ISSN 1677-9029, pp. 14-21).

Desse modo, o que se vislumbra nesse instituto é enfrentar novas demandas à luz dos direitos e garantias fundamentais, sem negligenciar, contudo, as demais previsões legais dispostas no ordenamento jurídico brasileiro.

É pertinente explicitar que prática atentatórias à vida e autonomia de vontade do paciente, sem qualquer motivo que as justifiquem, constitui ilícito penal, como o auxílio ao suicídio (art. 122, CP).  

Ajudar a vítima a suicidar-se, oferecendo-lhe meios idôneos para tal, com o intuito de causar a morte da vítima por meio do suicídio ou pelo menos assumindo o risco da vítima consumar o fato. Nesta infração penal, quem executa o ato que vai causar a morte é a própria vítima e o fato dela ter solicitado ajuda não descaracteriza o crime.

Jimmy Matias Nunes e Lorena Sales Araújo explicam, com propriedade, a distinção que há entre o auxílio ao suicídio e a eutanásia, o que, primariamente poderia gerar confusão, senão se veja:

O conceito de eutanásia diferencia-se da ideia de auxilio a suicídio pelas seguintes razões: na eutanásia quem pratica o ato que vai causar a morte pode ser tanto o autor com a própria vítima; essa vítima deve estar sofrendo devido à doença e às fortes dores; e a conduta é praticada por motivos humanísticos. No auxílio ao suicídio não se exige que a pessoa esteja doente e em sofrimento, nem que haja sentimento de pena ou compaixão pela pessoa que vai cometer suicídio. O auxilio a suicídio afasta-se do conceito de ortotanásia, por esta traduz-se como uma forma de respeitar o curso natural de morte do doente, sem que haja interferência no tempo de vida desta pessoa, seja para aumentá-la ou diminuí-la. Já no auxílio ao suicídio o autor do crime possui a intenção, ou pelo menos, assume o risco de interferir no tempo de vida da pessoa para diminuí-la. Além disso, neste último caso a

pessoa não necessariamente está doente ou sofrendo (2012).

Desarte, a obstinação terapêutica deve ser coibida, por ser “uma prática médica excessiva decorrente diretamente das possibilidades oferecidas pela tecnociência e como o fruto de uma teimosia de estender os efeitos desmedidamente, em respeito à condição da pessoa doente” (1993 apud BORGES, 2001, p. 284).

Permitir que o paciente padeça até os últimos suspiros de vida é contrário à dignidade da pessoa humana pois a obstinação terapêutica constitui um fim em si mesmo, onde o ser humano é desprezado ao plano das coisas, ou simplesmente ignorado. Sobre o assunto, Santos (1999, p. 266), tomando por base a argumentação kantiana, defende que deve ser previamente condenada “toda instrumentação biomédica do homem, que ‘não pode ser utilizado por nenhum outro homem como simples meio’”.

Dentro do sistema penal brasileiro, a eutanásia é considerada como um homicídio privilegiado (artigo 121, parágrafo primeiro, CP). Este, segundo Bitencourt (2011, p. 57), “é o homicídio cometido “por motivos de natureza social ou moral”, os quais privilegiam a ação de matar alguém, cuja consequência é a diminuição da pena a ser aplicada ao sujeito ativo”.

A doutrina penalista ajoritária tem considerado que a ortotanásia é lícita. Embora o médico seja omissivo no tocante ao não prolongamento do processo de morte do enfermo, tal conduta não é penalmente relevante, pois este médico, mesmo que procedesse com alguma assistência ao paciente, a morte deste seria inevitável, ou seja, o resultado seria irremediável. 

É assim o entendimento de Santos (1999, p. 272), que esclarece o seguinte:

“Nestes casos não existe propriamente uma omissão de socorro no sentido penal: o

enfermo não necessita de socorro. Uma assistência extremada seria ineficaz para impedir a morte que se acerca. Nestes casos se fez tudo o que era possível fazer”.

Atualmente, existe um Anteprojeto de Lei do novo Código Penal, o qual prevê expressamente, apesar de ainda incluídas no tipo penal do homicídio, hipóteses legais para a eutanásia e para a ortotanásia, abordando a eutanásia como uma qualificadora do crime de homicídio, e a ortotanásia com uma excludente de ilicitude.

A falta de regulamentação do testamento vital, no Brasil, como se expôs, gera uma série de indefinições, agredindo  segurança jurídica que tanta se busca dentro do Estdo Demorático de Direito. Assim, é premente que se implante o testamento vital no Brasil.

Essa previsão beneficiaria a ambos os lados: médicos e pacientes/familiares. Uma vez que o médico, que não seria processado por familiares por ter atendido a vontade do paciente, e ao próprio doente que conquistaria o direito a uma morte digna. Além disso, o testamento vital reforçaria princípios constitucionais como o da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a pretensão de impor uma resposta definitiva ao problema, que a ortotanásia ao lado dos cuidados paleativos, seria a melhor forma de atender aos anseios do paciente, posto que, por meio de tal conduta omissiva, não há interrupção de vida – como ocorre na eutanásia e no suicídio assistido – nem prolongamento indevido do tratamento – como ocorre na distanásia. 

A Professora Maria Celeste acrescenta que o direito à vida constitucionalmente, não é um direito sobre a vida. Constitui-se “direito de caráter negativo, impondo-se pelo respeito que a todos os componentes da coletividade se exige. O direito à vida, no âmbito privatístico, confere o direito de personalidade as características de indisponibilidade e não interferência de terceiros” (SANTOS, 2001).

A sociedade brasileira precisa participar do debate. Os preceitos constitucionais que brindam o cidadão com dignidade e bem-estar não podem ser letra morta. Com isso, a tomada de decisões é participativa. As decisões são tomadas em conjunto, entre o

médico e o paciente. Em caso de conflito, concede-se maior peso às preferências do paciente, ainda que não de modo absoluto, ou seja, é possível haver restrições.

A condição do homem deve ser tomada de modo a garantir direitos e não como um simples objeto. Assim, é inconsistente o entendimento sobre a ilicitude da ortotanásia, de modo que é totalmente desarrazoada, ilegítima, e até mesmo incompatível com a ordem constitucional a criminalização desta prática.

REFERÊNCIAS

ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paleativos). O que são cuidados paleativos? Disponível em <http://www.paliativo.org.br/ancp.php?p=oqueecuidados>. Acesso em 10 mai 2013.

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