AUTORAS:

ANA MARINA SOEIRO PEREIRA

FRANCYANE SOUZA FERNANDES DOS SANTOS

  

OS LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO JUNTO AO CONTROLE DE DISCURSOS DO ÓDIO NO MUNDO VIRTUAL

 

INTRODUÇÃO

As questões envolvendo os direitos e garantias fundamentais sustentados na Constituição da República Federativa do Brasil são sempre complexas. Em tese, a proteção a estes direitos se estende a todos os indivíduos, devendo estes ser garantidos da melhor maneira possível. Apesar desta faceta generalista, alguns outros parâmetros permeiam a abordagem dos direitos fundamentais, como a questão das possibilidades de limitação e restrição aos mesmos (MENDES; BRANCO, 2011).

A conquista do direito à liberdade de expressão tornou-se um marco histórico-evolutivo celebrado até os dias atuais. Porém, as dificuldades surgem quando se tenta mensurar até que ponto o uso desta liberdade não excede os limites do seu exercício regular e mantém o respeito à dignidade humana do outro. A incitação ao discutido ‘discurso do ódio’ é questionado por muitos como um exemplo deste abuso (MEIRA, 2011).

Para Costa (2011), o discurso do ódio, pleiteado como o ato de externalizar ideias vexatórias, chama a atenção de forma extremamente relevante por promover o ódio, a discriminação e até mesmo a violência entre as pessoas. A situação se agrava quando a disseminação destas manifestações se dá através da internet, a maior rede de computadores do mundo, já que o meio cibernético possui a capacidade de transferir quaisquer tipos de informação rapidamente e a um grande número de indivíduos.

As questões envolvendo o uso da internet para a disseminação do discurso do ódio estão cada vez mais presentes no dia a dia dos juristas, que se veem obrigados a estabelecer limitações reais à liberdade de expressão. Observando a importância jurídica e social deste assunto, vê-se a necessidade de um estudo que relacione tais especificações, no sentido de se analisar as características do exercício legítimo do direito à liberdade de expressão e as limitações adequadas para impedir a sua utilização de maneira abusiva e prejudicial.

1 CONTEXTO HISTÓRICO DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA DOUTRINA BRASILEIRA

Apesar das cartas constitucionais brasileiras sempre se interessarem em expressar, ainda que apenas teoricamente, a proteção à liberdade de expressão, apenas com as inovações da Constituição da República de 1988 é que esta garantia ganhou notória importância, passando a ter maior destaque, com vários dispositivos que a resguardam de uma forma mais ampla (LORENZO, 2011). Historicamente, a liberdade de expressão, dentro desta Constituição, passou a ser entendida como uma forma de reação direta à censura política, cultural e ideológica transbordante no contexto sociopolítico da época (BARROSO, 2001).

Dentre as normas constitucionais que fazem referência, direta ou não, à liberdade de expressão na Carta Magna de 1988, pode-se citar: artigo 5º, incisos IV, V, VI e IX; artigo 5º, incisos XIV e XXXIII; artigo 206, incisos II e III; artigo 215; artigo 220, caput, parágrafos 1º, 2º e 5º (FARIAS, 2004).

Segundo Miranda (2000), a liberdade de expressão relaciona-se a toda e qualquer exteriorização de aspectos que tratem da vida pessoal de cada um, podendo apresentar-se de diversas maneiras, como com a utilização de imagens, com palavras escritas e orais e até mesmo em gestos.  A liberdade de expressão é, intrinsecamente, a própria liberdade de pensamento, podendo estar correlacionada às liberdades de informação e também de comunicação social.

Extrinsecamente, a liberdade de expressão pode ser garantida por certos direitos, como o direito à palavra, a inviolabilidade da correspondência e outros meios de comunicação privada. Neste sentido, parece também estar associada a uma série de outras liberdades, podendo-se citar a liberdade de consciência, de criação cultural, de religião e de culto, de profissão, de manifestação, liberdade de aprendizado e de ensino, dentre muitos outros direitos de liberdades resguardados pela Constituição Federal (MIRANDA, 2000).

Complementando quanto às características, Mendes e Branco (2011, p. 297) relatam que a liberdade de expressão tutela “toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não”. Os autores indicam que, ainda assim, faz parte também desta liberdade o direito de não se expressar ou até mesmo de não se informar sobre determinado assunto ou fato.

As teorias substantiva e instrumental endossam as discussões sobre a essencialidade do direito à liberdade de expressão, complementando-se mutuamente. Para a primeira, a liberdade de expressão possui um conteúdo valorativo, isto é, é um direito subjetivo que os indivíduos possuem em ouvir e dizer o que quiserem, fazendo uso, por assim dizer, do princípio da dignidade da pessoa humana. Já a segunda contesta que a liberdade de expressão é capaz de promover tantos outros direitos e valores especiais para a coletividade (como a democracia), influenciando no caminhar das sociedades (LORENZO, 2011).

No fim do século XIX, Jellinek elaborou uma disposição de direitos fundamentais em relação a quatro posições juridicamente protegidas diante do Estado, denominando-a de ‘teoria dos status’. Os direitos de liberdades encontram-se, nas relações públicas verticais, em um status negativo predominantemente, onde o indivíduo possui o direito de agir diante da inércia do Estado. Neste sentido, o Estado tem o dever de se abster a fim de manter resguardada a liberdade dos cidadãos (LENZA, 2011).  O fato das premissas sobre o gozo da liberdade de expressão ocorrerem imperativamente nas relações públicas não exclui a possibilidade da sua invocação nas relações privativas (MENDES; BRANCO, 2011).

Faticamente, a ideia de que o Estado deve resguardar o direito à livre expressão gerando um acesso equitativo e igualitário aos indivíduos, é tão notória que já vem até mesmo ganhando forte respaldo no âmbito do Judiciário brasileiro. A noção de liberdade, para ser concreta dentro de uma sociedade e existir de fato, precisa englobar as liberdades coletivas e individuais simultaneamente, sem separações e de forma solidária.  Entretanto, este mesmo entendimento leva à tona a possibilidade de limites e restrição deste direito (LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL, 2009).

O fato da liberdade de expressão ser enxergada como uma ponte para a proteção e efetivação das outras liberdades e tantos outros direitos, não faz dela uma garantia absoluta. Trata-se de um direito totalmente passível de ser ponderado, especialmente quando em conflito com outros direitos que podem, em alguma medida, sofrer prejuízo em determinada situação concreta. Assim, certamente casos de abusos justificados pelo uso da liberdade de expressão não são mais aceitos com tranquilidade, e já se tornaram exemplarmente questionáveis e até legalmente puníveis na sociedade contemporânea (BOCCHI, 2010).

Bocchi (2010) adiciona que ultrapassar as esferas do bom senso, exceder os limites da liberdade ou cometer arbitrariedades afetando a dignidade humana de outrem, já não condiz com o que é vislumbrado pelo constituinte ao tratar sobre liberdade de expressão. Perceber esta relação tão íntima entre o que é abusivo e o que é uso devido do direito à liberdade é fundamental para o exercício desta garantia da melhor forma possível.

2 A INSERÇÃO E INFLUÊNCIA DA INTERNET NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Os diversos modelos de comunicação foram se transformando com a evolução dos contextos sociais. Até meados do século XX, a comunicação baseava-se em veículos centralizados. Após este período, os meios de comunicação tinham, não apenas o poder informacional, mas também o poder sobre quem comunicava. A partir da década de 60, o sentido de comunicação foi modificado, tendo prevalecido um modelo ‘de esfera pública’. Apesar de todo este trâmite, apenas com o fim da Guerra Fria, a rede mundial de computadores tornou a comunicação um processo globalizado (BORGES, 2009).

Com este marco, possibilidades outras de sociabilidade e expressão passaram a ser notórias, especialmente com o surgimento dos ambientes tecnológicos. A vida social passa a se mostrar, neste momento, também nas relações entre a realidade e a virtualidade. Bill Gates, personagem importante na revolução da era digital (criador da Microsoft e Windows), batizou essa inserção social ao mundo informatizado como um ‘estilo de vida web’. Para Gattes, a sociedade contemporânea é demasiadamente marcada por esse processo, marcado pela convergência entre transformações políticas e possibilidades tecnológicas (COSTA, 2011).

As interações humanas, que se ao longo do tempo se formaram sob o âmbito do público e do privado, ganham outras roupagens temporais e territoriais geradas pelas tecnologias de informação e também de comunicação, que conseguem conectar indivíduos de todos os segmentos sociais. Estas interações acontecem não somente as referências materiais clássicas, mas também as dimensões simbólicas, a relação homem e computador e as trocas virtuais entre as diferentes culturas (tecnocultura), anseios e valores (VELLOSO, 2008).

Tratando-se de internet, não há como deixar de discutir sobre a formação das redes sociais. Costa (2011, p. 97) conceitua as redes sociais como

(...) redes especialmente criadas para a sociabilidade, para a interação entre pessoas nelas conectadas. De maneira geral, são programas de comunicação por computadores em que cada usuário se conecta a partir de um convite pessoal, preenchendo cadastro individual pelo qual traça um perfil de gostos, tendências, hábitos e informações pessoais; imagens, parentescos, participação institucional e interesses, que vão de relacionamentos afetivos a jogos e entretenimento.

Seriam estas estratégias de interações sociais, espaços dinâmicos e de ampla movimentação, que proporcionam intercâmbios sociais flexíveis. As redes manifestam uma maneira de conexão entre os indivíduos, uma forma de estar junto e criar laços. Ao mesmo passo, podem implicar relações sociais que gerem, ou não, mudanças concretas na vida das pessoas ou das organizações coletivas (COGO; BRIGNOL, 2010).

A informação disseminada na internet é a denominada ‘informação commodity’. Trata-se de uma comunicação acessível, rápida, concisa, clara e relevante. Para ser válida no campo cibernético, uma informação jamais poderá ser inacessível e lenta para chegar aos destinatários. Da mesma forma, não poderá ser rasa e irrelevante, pois as informações geradas na rede são reguladas automaticamente pelo seu grau de relevância. Todos as pessoas que acessam a internet são consumidores e produtores, e os que faziam papel de intermediários já estão sendo eliminados (SOUZA, 2009).

Segundo Roberto (2009), a internet, no ano de 2009, alcançou o número de um bilhão de usuários. Até alguns anos, esta era uma rede sem dono, onde cada um era responsável pelo que transmitia, sem quaisquer padrões ou normas legais que especificassem seu uso, sendo os usuários criadores de suas próprias regras. A sociedade passou também a exercer um novo comportamento, pois com a chegada da internet se não precisa ir ao banco para pagar contas ou ir a uma loja para fazer compras, por exemplo. As pessoas passaram a ser movidas pela tecnologia, tornando-se dependentes dela.

O autor supracitado ainda revela dados sobre a popularização das redes sociais no Brasil. Roberto (2009) enfatiza uma pesquisa realizada pelo Ibope, em 2009, que identificou mais de 20 milhões de pessoas usuárias de alguma rede social. Conforme o estudo, 45% das pessoas entrevistadas afirmaram que as redes sociais já se tornaram parte de sua vida. Segundo o autor, outra pesquisa realizada pelo Instituto Nielsen no mesmo ano indicou que 27 milhões de pessoas usaram o e-mail, enquanto que 301 milhões de pessoas usaram redes sociais.

Apesar das influências positivas e inegáveis da internet e o advento das redes sociais, estas mídias digitais e da comunicação geram certo incômodo e a perspectiva de alguns pontos negativos. Uma parcela dos estudiosos indica que as redes de comunicação contribuem para a opacidade do real, pois encobrem e alienam os indivíduos em relação àquilo que buscam ter acesso ou conhecer, mascarando, muitas vezes, a dimensão concreta dos acontecimentos. Além disso, o mundo cibernético parece provocar uma ‘vertigem metafísica’, uma sensação de diminuição diante desta nova dimensão social (COSTA, 2011).

As informações transmitidas por meio da internet e da utilização cada vez maior das redes sociais (orkut, twitter, facebook, youtube, dentre outros) contribuem para a formação dos mais diversos juízos de  valor,  geralmente assimilados inconscientemente pelas pessoas. Outro ponto é que, os indivíduos, fazendo uso de sua liberdade de expressão, utilizam tais meios como válvulas de escape para a exteriorização das suas mais diversas opiniões e das formas mais variadas, produzindo discursos político e socialmente ‘aceitos’, ou discursos totalmente rebaixados pela sociedade (ZANARDI, 2010).

Nessa perspectiva, é necessário pensar a internet nas suas múltiplas dimensões e nas possibilidades que gera de serem estabelecidas conexões e transformações nas interações sociais entre os sujeitos que a utilizam. É uma ferramenta que promove a produção e circulação de informações, além da interação interpessoal e do diálogo. Porém, não se pode esquecer que a internet se forma a partir dos seus usos, que não são, em qualquer hipótese, livres.  A ‘medida’ da liberdade de expressão neste contexto se dá, exatamente, a partir da existência de práticas subvertidas que possam derivar do mau uso desta ferramenta tecnológica (COGO; BRIGNOL, 2010).

3 CARACTERIZAÇÃO DA INCITAÇÃO AO DISCURSO DO ÓDIO NO CAMPO CIBERNÉTICO

A internet é o meio de comunicação com capacidade de mais rapidamente se desenvolver, revolucionar e criar novas possibilidades de acesso superando barreiras. Para Castells (2003, p. 13) “a história e desenvolvimento da internet é a história de uma aventura humana extraordinária”, pois ela demonstra a capacidade que o homem detém de romper barreiras, concepções e valores tornando-se capaz de criar um novo mundo. Contudo, Schaff adverte que a evolução tecnológica traz consequências nos diversos campos das relações sociais quer seja econômico, político e principalmente social, alterando-se valores e concepções (SCHAFF, 1995).

Essa evolução tecnológica tomou proporções vertiginosas, e a cada dia surgem novos meios de comunicação no campo cibernético, ampliando e possibilitando a livre expressão dos indivíduos que lançam mão à utilização desses instrumentos como: blogs, facebook, twiter, fóruns, salas de bate papo proporcionando rápida e eficiente comunicação, fazendo com que hoje o campo cibernético seja considerado um dos grandes instrumentos para o exercício de ampla liberdade de expressão (MEIRA, 2011).

Contudo, essa ampla liberdade que permite ao indivíduo expressar suas emoções, ideias, opiniões e juízos de valor podem conter concepções pejorativas e injuriosas em relação a determinados grupos étnicos, religiosos, políticos, dentre outros. Esses ataques passaram a ser reconhecidos pela doutrina como discurso do ódio (hate speech), que para Meyer-Pflug (2009, p. 92) “é este um dos complexos problemas do direito constitucional contemporâneo da liberdade de expressão”.

Para Meyer-Pflug (2009, p. 97) o discurso do ódio “consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias”. Esse comportamento tem por principal objetivo discriminar e desprezar, havendo a segregação de grupos que se julgam superiores sob as minorias que geralmente são tidas como inferiores, afrontando a ideia de igualdade e justiça (MEYER-PFLUG, 2009).

Destaca-se a concepção de Brugger (p. 118, 2007), ao dizer que este discurso

Refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que tem a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas.

Esse discurso se instaura a partir do momento em que é proferido, detendo nesse instante a capacidade de atingir um indivíduo ou grupos violando os direitos fundamentais. Assim, somente a partir do momento em que é externalizado, é que se dá a sua real existência, pois permite que outro indivíduo conheça tal sentimento ou opinião que são capazes de discriminar, inferiorizar. Fundamentando esse entendimento, Silva et al. (2011, p. 447) afirmam que a existência do discurso do ódio exige:

A transposição de ideias do plano mental (abstrato) para o plano fático (concreto). Discurso não externado é pensamento, emoção, ódio sem discurso; e não causa dano algum a quem porventura possa ser seu alvo, já que a ideia permanece na mente do autor. Para esse caso, é inconcebível a intervenção jurídica, pois a todos é livre o pensar.

Alguns países como a Alemanha e a França também adotam o princípio da liberdade de expressão em sua Constituição, mas não aceitam a formação destes discursos, ainda que sob a alegação de estarem apenas no mundo das palavras e das ideias, pois, apesar de estarem nesse espaço, são capazes de preparar e incitar os indivíduos a cometerem ações racistas (BRUGGER, 2007).

Esse discurso também é utilizado sob a perspectiva revisionista que tem por objetivo questionar a existência do holocausto, percebendo-se o perigo que esta e outras afirmações são capazes de gerar na sociedade, principalmente quando são defendidos no mundo virtual disseminando-se por todo o mundo. Visualiza-se ainda que grupos antes discriminados passam a utilizar-se desses discursos contra os discriminadores com o objetivo de retaliar a discriminação sofrida (MEYER- PFLUG, 2009).

Observando-se o crescente aumento dos casos de discurso odiento, acrescenta-se que em virtude de as relações sociais terem sofrido modificações, alguns conceitos que antes eram tidos como essenciais para a manutenção do bom convívio estão perdendo sentido, sendo criado um espaço fértil para a disseminação de tal conteúdo. Neste sentido, o avanço tecnológico é apontado como um dos maiores causadores da perda de respeito e compromisso com a manutenção dessas relações (BORDIGNON; FREITAS, 2012).

Em adequação à realidade social o discurso do ódio também tem evoluído em suas formas de manifestação, sendo escolhidos para sua propagação os meios que mais se adequam ao momento vivido, lançando-se mão ao uso de tecnologias para propagar as ideias ao maior número possível de indivíduos através de instrumentos de rápida e eficiente propagação, como os já citados: email, redes sociais, dentre outros (SILVA et al., 2011).

 Assim, o campo cibernético tem possibilitado que esses discursos de forma muito rápida se propaguem mundialmente ferindo instantaneamente os grupos discriminados, tendo como agravante para a investigação e punição dos seus autores a exposição destes conteúdos e convicções de forma camuflada, pois são criados ‘perfis fake’ como garantia do anonimato. Além disso, há o argumento de que estão no livre exercício da liberdade de expressão, direito este firmado constitucionalmente (SILVA et al., 2011).

Notadamente, este tipo discurso tem ultrapassado os limites da liberdade de expressão atingindo direitos fundamentais diversos, estando o Estado e a sociedade diante de um dos seus maiores desafios, pois é imperioso que se permita o exercício à liberdade de expressão, porém, de forma que não venha a causar danos a outros direitos e nem produza intolerância (MEYER- PFLUG, 2009).

4 LIMITES E CONTROLE POSSÍVEIS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, ESPECIALMENTE À LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO ESPAÇO VIRTUAL

Os direitos fundamentais estão intrinsecamente ligados à concepção de Estado democrático de direito, sendo considerada conditio sine qua non e a base para o exercício do poder estatal. Por esta razão é que somente no Estado democrático se pode verificar a proteção e garantia a esses direitos que servem de alicerce ao ordenamento jurídico, posto que a ideia de justiça liga-se diretamente a eles (SARLET, 2012).

Estes direitos detêm uma estrutura principiológica, sendo dotados de alto grau de abstração. Tal fator possibilita as mais diversas concepções e gera a necessidade de que seja buscada a sua utilização de forma adequada, realizando a adequação para a sua devida aplicação (TAVARES, 2012). Para Alexy (2011), por serem princípios, podem ser satisfeitos em graus diversos, sendo imperioso, porém, que sejam concretizados na maior medida possível.

Portanto, não sendo os direitos fundamentais absolutos, podem sofrer limitações advindas de disposição no próprio texto constitucional, por norma infraconstitucional fundamentada na Constituição e ainda em consequência de colisão entre direitos fundamentais (SARLET, 2012). Assim, a liberdade de expressão como direito fundamental garantido na Carta Magna e que detém inegável importância para a manutenção do Estado constitucional, não é absoluto, sendo passível de ponderação (SILVA et al., 2011).

Lorenzo (2011), em defesa do exercício desse direito, afirma que toda e qualquer mensagem, quando externalizada, tem garantia de proteção na Constituição e complementa enfatizando que devem ser protegidas ainda que sejam ideias minoritárias. Porém, o autor alerta que discursos ofensivos podem sim, ser restringidos para a proteção e promoção de outros valores constitucionais, e adverte que essa restrição deve ser excepcional, onde os parâmetros utilizados devem ser rígidos para evitar que a decisão venha a representar censura.

Meyer-Pflug diz que, além da proteção devida e prevista em Constituição Federal Brasileira à liberdade de expressão, é indispensável que se observem todos os outros direitos fundamentais lá estabelecidos e que igualmente são dignos de proteção, em especial a dignidade da pessoa humana (MEYER- PFLUG, 2009).

Complementando esse entendimento, Sarmento afirma que é necessário o estabelecimento de equilíbrio entre os direitos colidentes precisando-se estabelecer limites à liberdade de expressão, pois é necessário proteger outros direitos como a igualdade, privacidade, honra e devido processo legal. Ressalta que o assunto é de grande importância, pois não há como ser feita uma interpretação simplista, pois estão envolvidos valores importantes para o Estado democrático, quais sejam: a liberdade e igualdade (SARMENTO, 2012).

Gilmar Mendes salienta que há diversas possibilidades de colisão entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, e dentre eles, chama a atenção ao discurso de ódio visto que este tem levantado frequentes questionamentos sobre os limites a essa garantia constitucional em razão de discursos intolerantes considerados como disseminadores “do ódio em sociedades democráticas” (MENDES, 2008).

Compreendendo-se que o uso do espaço virtual é um dos maiores facilitadores para a livre expressão desse discurso em razão do menor controle que espaço tem, é fácil encontrar diversos sites, fóruns e blog’s com conteúdo discriminador, como por exemplo o site Write Power, Resistance88 e os fóruns  Stormfont muito utilizados por brasileiros (SILVA et al., 2011).

Destaca-se no Brasil, dentre os conteúdos discriminadores que tiveram maior repúdio pela população e que foi levado aos tribunais, o caso da estudante de direito Mayara Petruso que, estando inconformada com o resultado da eleição para Presidência da República, postou em rede social: “Nordestino [sic] não é gente, faça um favor a São Paulo: mate um nordestino afogado!”. Este caso gerou grande repercussão nacional, vindo à autora em sentença judicial a ser condenada por crime de racismo (ESTUDANTE É CONDENADA POR OFENSA A NORDESTINOS NO TWITTER, 2012).

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (2009) descreve outro caso que foi levado à justiça e teve como autor Marcelo Valle, que, por não aceitar o sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília (UNB), dispõe em sua página em dias diversos palavras discriminatórias, como no dia 14 de junho quando diz:

(...) e vocês, ficam aí, pagando pau da África, aquele bando de macacos subdesenvolvidos, querendo atribuir valor a essa cultura negra que só tem músicas sem sentido e toscas que não fazem mais que promover orgias sexuais... preto no céu é urubu, preto correndo é ladrão, preto parado é bosta. Qual a diferença entre o preto e o câncer: o câncer evolui!... já não basta preto roubando dinheiro. Agora ele também rouba vaga nas universidades... o que mais vai roubar depois? (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS, 2009).

O Ministério Público denunciou o estudante, sendo em primeira instância absolvido do crime alegado. Porém, o Ministério Público inconformado com a sentença, interpõe apelação criminal, vindo neste julgado a ter-se sentença por condenação do réu aplicando-se a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direito, destacando-se no voto para condenação o argumento do Desembargador Roberval Casemiro Belinati (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS, 2009), que dispõe:

Marcelo tem, constitucionalmente, o direito de se manifestar contrariamente a um sistema de cotas que utiliza como critério para o acesso a vagas em universidades públicas a raça do indivíduo. No entanto, em que pese a Constituição Federal assegurar o direito à livre manifestação do pensamento, esse direito não pode ser utilizado para acobertar a prática de conduta criminosa. Com efeito, está estabelecido no próprio art. 5º da Constituição Federal, inciso XLII, que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. Dessa forma, caso uma manifestação seja racista, não há que se falar em liberdade de expressão, uma vez que esta conduta é criminosa, apta, portanto, a ensejar a responsabilização criminal de seu autor (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS, 2009).

CONCLUSÃO

A liberdade de expressão hoje é garantida na Constituição Brasileira através de vários dispositivos. Esta tem por objetivo resguardar e proteger o livre exercício desse direito, que é considerado uma das maiores conquistas dos cidadãos em razão do período de censura exercido pelo corpo estatal, principalmente no período ditatorial quando eram controladas todas as formas e meios de comunicação.

Contudo, diante do avanço tecnológico este direito tem sido exercido das mais variadas formas no seio social, pois foram surgindo possibilidades diversas de comunicação e expressão através do acesso a novos instrumentos que de forma rápida e eficiente se propagam por todas as nações, tendo o poder de romper fronteiras e diminuir distâncias. Este fator possibilitou ao indivíduo a expressão de seus ideais, convicções, comentários, julgamentos através de palavras, imagens e até gestos, bastando para isso estarem conectados à rede mundial de computadores.

Todo esse avanço tecnológico, entretanto, não proporcionou apenas benesses à sociedade. Alguns estudiosos advertem que este instrumento tem alienado e escondido os indivíduos de relações e interações com a ‘vida real’, além de possibilitar a propagação do discurso do ódio que disseminam informações injuriosas, agressivas e preconceituosas, que tem ganhado força em razão de não existir ainda um controle estatal e tecnológico efetivo dentro destes meios de comunicação.

Neste sentido, vê-se que essa liberdade não é absoluta, podendo sofrer limitações quando em conflito com outros direitos fundamentais. Sendo assim, já são verificados alguns casos de decisões judiciais que apontam um caminho a ser seguido para uso deste direito fundamental de forma que não venha a lesionar outros direitos tão importantes à proteção e garantia da democracia. 

Portanto, é fundamental que a liberdade de expressão tida como conquista seja exercida de forma livre e consciente em respeito aos demais princípios fundamentais, a fim de que a sociedade exercite a sua livre opinião e possa conviver respeitando as diversidades sociais existentes. É ainda fundamental que o Estado garanta e exerça o seu poder de restrição de forma consciente e excepcional para que não venha a oprimir e censurar tal direito.

 

REFERÊNCIAS

 

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