*Valdirene de Jesus Alves

RESUMO
O presente artigo aborda as relações entre os estudos da lingüística e o ensino da língua materna no Brasil. Enfatiza também as contribuições das teorias lingüísticas contemporâneas para as mudanças que vem ocorrendo no processo de ensino e aprendizagem da língua materna.

PALAVRAS-CHAVE: Estudos da linguística, língua materna, ensino, aprendizagem.

1. Introdução
O ensino da língua materna tem sido alvo de discussões dos especialistas em lingüística que criticam o modo como a escola trata o ensino da linguagem. Tais críticas recaem principalmente ao ensino tradicional e sobre seu caráter excessivamente normativo no trabalho com a linguagem. Segundo as críticas, conforme aponta FARACO & CASTRO (2008), as nossas escolas, além de desconsiderarem a realidade multifacetada da língua, colocaram de forma desproporcional a transmissão de regras e conceitos presentes nas gramáticas tradicionais como objeto nuclear de estudo, confundindo, em consequência, ensino de língua com o ensino de gramática. Enquanto isso, aspectos relevantes de ensino da língua materna, como a leitura e produção de textos, acabaram sendo deixados de lado.
Frente a essas críticas, surgem algumas indagações em torno do ensino da língua materna: o que e como ensinar. Antes de responder a esses questionamentos, precisa-se ter claro que toda e qualquer prática ou teoria ____________________________________________
*Pedagoga e pós-graduanda em Leitura e Produção Textual na Escola pela UESC-Ba.
envolvida no ensino da língua materna traz em seu cerne uma concepção de linguagem e de língua a qual direciona e faz emergir um fazer educativo. Tal premissa encontra respaldo nas colocações de Geraldi (2002:45) quando afirma que "uma diferente concepção de linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas principalmente um ?novo conteúdo? de ensino". E acrescenta ainda que


antes de qualquer consideração especifica sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política ? que envolve uma teoria da compreensão e interpretação da realidade ? com os mecanismos utilizados em sala de aula.



Partindo dessa premissa é que pretende-se refletir; no escopo das teorias linguísticas que descortinaram ao longo da história, as questões relativas ao ensino da língua materna e possibilitar o entendimento da realidade instituída em sala de aula e dos novos caminhos a serem tomados.

2. Descortinando um cenário: um retrospecto
No Brasil, o ensino da língua materna descortina em meados do século XIX com as reformas Pombalinas que introduzem nas escolas o ensino do português, o estudo da gramática portuguesa e a retórica, afinal neste momento linguagem era entendida como expressão do pensamento. Inicialmente, o ensino da gramática da língua portuguesa tinha como objetivo o aprendizado da gramática latina. Entretanto, à medida que o latim foi perdendo o seu valor, já no século XX, a gramática portuguesa foi ganhando autonomia e fortalecendo como área de conhecimento, mas desconsiderando a "língua brasileira".
Assim, subsidiada por uma concepção de língua saussuriana ? exterior ao indivíduo ? desenvolveu um modelo de ensino dirigido às camadas privilegiadas cujo objetivo era conhecer o sistema linguístico.
Vale ressaltar que os estudos de Saussure editados pelos seus alunos em 1916 contemplam a língua como um fato social e trata o sistema lingüístico como um sistema estruturado; a estrutura lingüística é uma representação coletiva que tem poder coercitivo sobre o falante (Matencio, 1994).
Em meados do século XX, o aumento das possibilidades de acesso à escola altera o perfil da clientela e tornaram-se necessárias mudanças no currículo e nos objetivos de ensino. Um novo panorama se institui no ensino da língua: gramática e texto se apresentam como estudos integrados num mesmo livro, porém separados ? uma parte voltava-se para o estudo do texto (comunicação e expressão) e a outra tratava do estuda da gramática normativa.
Na Linguística, a gramática gerativa transformacional surge alterando a visão de objeto de estudo da linguística ? não mais a língua, mas a competência linguística. Nesse momento, trava-se um extenso debate entre estruturalistas e gerativistas contribuindo para o surgimento de outros campos de estudos atrelados à lingüística: a Psicolinguística (estuda a relação entre escrita e oralidade) e a Sociolinguística que estuda a linguagem como atividade social.
Embora surjam essas novas teorias e novas concepções de linguagem, no Brasil, o ensino ainda mantém as atividades de leitura, interpretação e compreensão como secundárias em relação aos estudos gramaticais, influenciados por teorias mecanicistas e estruturalistas.
Essa persistente primazia da gramática começa a ser ameaçada no início dos anos 70 devido à instituição da lei 5692/71 que, influenciada pelas concepções piagetianas, pelos estudos da pragmática e da análise do discurso, impõe mudanças não só na disciplina de língua portuguesa, mas a todas as demais disciplinas. Nesse contexto ideológico (militarismo), aflora uma nova concepção de linguagem como instrumento de comunicação e os objetivos de ensino são pragmáticos e utilitários não se tratando mais de promover o conhecimento do sistema lingüístico, mas do desenvolvimento das habilidades de expressão de compreensão de mensagens. Entretanto, o ensino pautava em práticas mnemônicas e repetitivas, refletindo os ideais da Escola Técnica, de modo que prevaleceu o caráter estrutural do pensamento lingüístico.
Na década de 70, fez-se sentir também com maior força a democratização da escola pública, junto a isso um elevado índice de evasão e repetência e, na busca das causas desse fracasso, segundo Matencio (1994:79) surge "a ideologia da deficiência cultural e do déficit linguístico" que trata o aluno como ser passivo cuja habilidade principal encontra-se em receber, processar o conhecimento e expressá-lo corretamente. Matencio afirma ainda que


No trabalho realizado em sala de aula, nas abordagens oriundas dessas concepções, parte-se da premissa de que a aprendizagem de LM deve ser realizada linear e prescritivamente, visto que acredita-se na existência de um conteúdo a ser "transmitido" pelo professor,. E não em um objeto de estudo a ser (re)construído por meio da interação professor-aluno.


Nessa análise comparativa entre os avanços científicos na área da linguagem e o instituído na educação brasileira no que se refere ao ensino da língua materna atribui-se o fracasso em grande medida à não incorporação desses avanços como referencial na escola e na formação de professores.
Nessa fase, ultrapassado o período da ditadura, verifica-se o fortalecimento dos meios de comunicação de massa como o rádio e a televisão, as novas teorias da lingüística e a obrigatoriedade da prova do vestibular contribuem para clarificar a crise na linguagem imposta, evidenciando ser o conhecimento da gramática não mais suficiente para que o aluno produza uma redação adequada e use a língua com proficiência. Surge assim, na década de 80, a partir de inúmeras críticas e reflexões, um novo perfil de professor e de ensino da língua materna.
Os anos 80 representam um marco decisivo no ensino da língua materna, haja vista que ensinar e aprender passam a ser entendidas como atividades concomitantes, pois como afirma Freire (1996:23) "quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender". Frente a essa nova abordagem de ensino e aprendizagem, os estudos da Linguística chegam às escolas desdobradas em Psicolinguística, Sociolinguística, Pragmática, Linguística da Enunciação, Linguística Textual, Análise do Discurso, todas direcionadas ao ensino da língua materna. Instaura-se uma concepção que vê a língua como enunciação, discurso, incluindo as relações da língua com aqueles que a utilizam, bem como o contexto em que é utilizada e as condições sociais e históricas de sua utilização, resultado de uma nova concepção de gramática, de seu papel e função no ensino de português. Linguagem é entendida como lugar da interação.
O texto passa a ser concebido como o objeto de ensino da língua, tendo em vista que tudo o que se escreve e o que se fala é realizado por intermédio de textos. Cabe ressaltar que, nesse novo panorama do processo de ensino e aprendizagem, o aluno é considerado como sujeito ativo que constrói suas habilidades e conhecimentos da linguagem oral e escrita em interação com outros e com a própria língua, objeto de conhecimento, em determinadas circunstancias de enunciação e no contexto de práticas discursivas do tempo e espaço em que vive (Soares, in: FARACO, 2008:04).
Tais concepções e idéias são fortalecidas pela implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96, pela proposta de ensino da língua materna emanada dos Parâmetros Curriculares Nacionais que defendem o ensino da língua portuguesa como meio de instrumentalizar o educando no domínio pleno e efetivo do uso da linguagem oral e escrita desenvolvendo, assim, a competência comunicativa, discursiva a capacidade de utilizar a língua de modo variado e adequado ao contexto e às diferentes situações e práticas sociais.
Tudo isso, passa a ser referencial na escola e também nos cursos de formação de professores e os estudos da Linguística permeiam os centros universitários, os grupos de estudo nas escolas espalhadas pelo país, seminários e meios de comunicação especializados, abrindo um leque de reflexões sobre a prática de ensino e aprendizagem da língua materna.
A verdade é que ainda não se tem uma prática efetivamente constituída, pois muitas inquietações, dúvidas e incertezas permeiam o fazer educativo de muito educador. Entretanto, é notório que mudanças e inquietações estão acontecendo e embates estão sendo travados no seio das aulas de língua portuguesa, anunciando que os fundamentos epistemológicos das orientações teóricas que norteiam o ensino da língua materna serão a mola propulsora para o desvelar de um fazer educativo moldado na concepção de uma língua viva.

3. Palavras finais
No cenário educacional brasileiro, durante muito tempo, o objetivo do ensino de língua materna esteve centrado na codificação e decodificação da língua, já que língua era vista como um sistema a serviço da comunicação. Alterações e novas concepções foram surgindo frente aos avanços científicos da lingüística, os quais em todo esse percurso histórico tardaram a chegar às salas de aula.
Entretanto, chega um momento na história educacional brasileira em que no ensino da língua materna o pressuposto de uma língua pronta e acaba não é mais aceitável, assim como não é admitido que a aprendizagem da competência lingüística ocorra pelo domínio de regras gramaticais advindo do ensino de uma gramática normativa.
A linguagem é, nesse novo contexto, entendida como lugar de "inter-ação" entre sujeitos sociais. Essa visão resulta de concepções importantes como as Teorias da Enunciação, da Teoria dos Atos de Fala, da Teoria da Atividade Verbal e da Pragmática Conversacional. É a partir desses fundamentos que a unidade básica de estudo da língua passa a ser o texto, já que o sujeito social comunica-se não por intermédio de frases isoladas, mas apoiados em textos. Dessa forma, o conceito de texto, os processos de construção textual, os gêneros textuais e a coerência e coesão textual são aspectos basais que alicerçam o processo de ensino e aprendizagem da língua. Além disso, a gramática, agora gramática do texto/discurso serve como suporte do texto, a qual deve auxiliar o desenvolvimento da capacidade comunicativa do aluno, por meio da reflexão sobre o uso da linguagem, não podendo mais fundamentar na cobrança da regra pela regra.
Segundo Faraco (2003), o quadro pedagógico tem mudado pouco, porque ainda não se conseguiu disseminar a crítica radical ao que denomina de normativismo e gramatiquice (Faraco 2003:22). Pelo fato de o ensino de língua materna não estar dissociado da sociedade que o justifica e o sustenta, uma atitude de mudança nesse contexto requer uma transformação social. O autor (2003:11) defende a idéia que:


O desfio maior está, portanto, na reconstrução do nosso imaginário sobre a língua, promovendo, nessa área, um reencontro do país consigo mesmo. Nesse sentido, deverá por em pauta, por exemplo a superação crítica do fosso linguístico que o século XIX criou artificial e arbitrariamente entre nós como parte de um anacrônico projeto de sociedade apenas branca e europeizada.


A verdade é que o papel da escola e dos professores é prioritário na fecundação do exercício de ensino-aprendizagem da língua materna, visto ser imprescindível a esse processo uma visão sem preconceitos da diversidade do português que aqui se fala e a consciência de que a norma padrão também precisa ser cultivada e difundida como mais um fator de inclusão sociocultural.
Nessa perspectiva, corrobora-se a posição de Raupp (2004:53): "a aula de Língua Portuguesa é ? ou deveria ser ? espaço da palavra". Espaço esse em que o educando utilize a linguagem como possibilidade de leitura e escrita do outro e de si mesmo, marcando verbalmente sua história através da palavra sendo capaz de usar a língua, de maneira proficiente, nas diferentes situações comunicativas que a requerem.

4. REFERÊNCIAS
FARACO, Carlos Alberto; CASTRO, Gilberto de. Por uma Teoria que fundamente o ensino de língua materna (ou de como apenas um pouquinho de gramática nem sempre é bom). Disponível em: http:WWW.educaremrevista.ufpr.br/arquivos> acessado em fevereiro de 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura)
GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2000. (Coleção na Sala de Aula)
MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Leitura, produção de textos e a escola. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 1994.
RAUPP, Eliane Santos. Ensino de Língua Portuguesa: uma perspectiva lingüística, 2005. Disponível em: <http:www.uepg.br/prospesp/publicatio/hum/2005> acessado em fevereiro de 2009.