Anamarija Marinović

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europaias 

Resumo:

Este trabalho tem como base a análise da ideia dos estereótipos culturais e a sua influência na identidade nacional. Também o nosso objectivo é termos também em consideração dos conceitos da diferença e do outro,  de suma importância para o multiculturalismo e para a vida numa comunidade. É observado também se os estereótipos implicam preconceitos, quer positivos, quer negativos, sobre si e os outros e dá-se a visão destes símbolos nacionais desde a perspectiva de um português, que é o Professor Doutor João Medina, e desde uma perspectiva estrangeira, desde a perspectiva da autora deste trabalho, que neste caso é “o outro” em relação a Portugal. Finalmente, são observados o peso e as consequências que os estereótipos portugueses têm hoje em dia na cultura nacional.

 

 

Palavras-chave: Portuguesismo(s), identidade, estereótipos, preconceitos, o mito o outro, a diferença, a cultura,  Portugal e os outros, a visão de Portugal da perspectiva estrangeira

 

 

Cada homem é uma raça. Mia Couto, o livro homónimo

A viagem não começa quando se percorrem as distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. Mia Couto, O outro pé da sereia

A identidade não se compartimenta, não se divide em metades. Amin Maalouf As Identidades Assassinas

Em cada homem se reencontram pertenças múltiplas que por vezes se opõem entre si e o obrigam a escolhas dolorosas. Idem

A minha identidade é aquilo com que eu não seja idêntico a qualquer outra pessoa. Idem

Uma pátria perdida é como os despojos de um parente próximo: enterrai-a com respeito e acreditai na vida eterna. Amin Maalouf Leão, o Africano

Instituições fortes, incorruptíveis. Resistirão sempre. Porque são a essência do povo, a alma do povo. Através delas há um povo que se afirma perante o mundo e mostra que quer viver ao seu jeito, Paula Chiziane, Niketche - Uma História de Poligamia

 

 

Introdução:

            Na página introdutória foram traçadas algumas linhas de investigação deste trabalho, e as citações literárias foram usadas como ponto de partida para o desenvolvimento de algumas ideias e para a “polémica” com o autor acerca da sua visão da problemática exposta na obra que aqui será analisada. Não nos restringiremos pura e simplesmente a mais uma de muitas recensões críticas do mencionado livro, e tentaremos observar mais profundamente um dos possíveis significados dos símbolos nacionais e por que motivo todas as nações do mundo precisam de uma identidade, de um conjunto de valores únicos e autênticos e de pessoas que as representem da melhor forma possível aos olhos delas próprias e dos outros. Tendo em conta que o próprio título aparece em singular com tendência para plural, o que nos é sugerido com a terminação do plural entre parêntesis, o primeiro pensamento que se nos ocorre é a possibilidade de interpretarmos a identidade portuguesa não apenas como única e unida, mas também, como um conjunto de camadas, níveis e facetas múltiplas, como um grupo de heróis e anti-heróis, como vários nuances de cinzento que existem entre o puramente branco e absolutamente preto, mas que do mesmo modo fazem parte da complexa determinação do que é ou não é tipicamente português. Desta forma, seria possível falar do(s) italianismo(s), mexicanismo(s), moçambicanismo(s), japonesismo(s), sabendo que cada cultura é infinitamente rica e que é a diferença justamente o elemento tão indispensável que faz observar melhor a beleza e a especificidade de cada uma delas. Mesmo que a diferença possa causar conflitos e maus entendidos, é necessário compreendê-la e saber vê-la para poder respeitá-la e incentivá-la.

 

Portuguesismo(s) determinações do(s) conceito(s) e uma atitude crítica

 

            A primeira ideia que temos sobre a palavra “portuguesismo” é uma palavra da origem portuguesa que se incorporou nas línguas estrangeiras (nomeadamente fado). Os linguistas, porém, preferem a denominação de “lusitanismo” para esses casos. Porém, como a língua é dinâmica e criativa, este é só um dos possíveis significados que preenchem este termo. Veremos agora, como é que este conceito é visto nos dicionários da língua portuguesa:

           

O Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea (Malaca Casteleiro, 2001, 2917) define este termo como: “1. Locução, expressão ou modo de falar característico de língua portuguesa = LUSITANISMO” Uso, costume, maneira de ser ou de pensar própria dos portugueses”. Como já foi referido a primeira interpretação é puramente filológica e refere-se a um aspecto de língua portuguesa, e o que nos interessa na segunda determinação deste conceito é a parte que aborda a maneira de ser o de pensar própria dos portugueses. Seguindo esta linha de pensamento, pode-se levantar uma série de questões: Será que existe uma forma de ser tipicamente portuguesa? Em que elementos ela é diferente das outras formas de pensar ou de ser? Quais são os factores que influenciam a formação do carácter nacional? Por quê é necessário ter um modo específico de ver as coisas, a si próprio e os outros? O número de perguntas poderia ser infinito e tentaremos responder apenas a algumas, e apenas em parte, devido à sua complexidade e à preocupação de não nos afastarmos do tema que estamos a abordar ou de não chegarmos a conclusões precipitadas que prejudicariam o rigor académico deste trabalho.

Servir-nos-emos de outros dicionários de língua e cultura para podermos comparar as visões que os autores de língua portuguesa como materna têm do assunto. O Dicionário Aurélio (Dos Anjos, Ferreira, 1989, 1614). Como terceiro e quarto significado cita seguintes determinações: Carácter distintivo de português e /ou de Portugal e Sentimento de amor a Portugal, ao seu povo e/ou às coisas portuguesas. Neste outro dicionário já não vemos uma atitude neutra, mencionam-se elementos como “carácter distintivo”, sentimento ou amor, que nos conduz a pensarmos na introdução do outro em comparação com os portugueses. Temos de sublinhar que o amor pela pátria, neste caso por Portugal, não significa ódio pelos outros, nacionalismo ou qualquer tipo de discriminação. O facto de sermos diferentes dos outros pode causar-nos um orgulho especial e isso é correcto e positivo, desde que não se transforme num sentimento de vaidade ou superioridade em relação aos outros povos, porque esse tipo de ideias geralmente não tem fundamento nenhum e provoca associações negativas ou discriminações. A divisão em “nós” e “eles”, ou “nós” e “os outros” é inevitável, tendo em conta que as diferenças entre as nações existem e sempre existirão, embora sejam mais ou menos evidentes. Finalmente, tomámos em consideração a definição do termo “portuguesismo” no Dicionário Houaiss, (Houaiss, 2003, 2938). sabendo que é um dicionário publicado no Brasil, de forma a vermos se existem semelhanças ou diferenças entre a visão europeia e brasileira deste conceito A determinação proposta pelo autor do dito dicionário é a seguinte: Aquilo que distingue os portugueses dos outros povos. 2. Amor a Portugal e às coisas portuguesas.

Embora as nossas expectativas fossem diferentes, outra vez salienta-se o traço que distingue o que é tipicamente português de todos os outros, e o sentimento de amor. A questão de amor por Portugal pode tornar-se complexa, porque as pessoas de outras etnias e origens também podem gostar de Portugal. Será que este sentimento as torna um pouco aportuguesadas já à partida? Ou é um outro tipo de amor?

Tal vez o “defeito” ou “problema” destes dicionários seja o facto de serem dicionários de Língua Portuguesa, porque por ventura um dicionário mais especializado no âmbito da cultura ou ciências sociais poderia definir estes termos tendo em conta uma outra perspectiva. Para todas estas definições talvez o termo ”portugalidade” seria mais apropriado do que a palavra usada, porque na nossa opinião, a portugalidade seria um conjunto de características típicas, valores e sentimentos que fazem parte da identidade nacional e cultural portuguesa. Curiosamente, nenhum dicionário dos que consultámos considera necessário mencionar a palavra portugalidade, porque os autores ou organizadores provavelmente julgaram ter abordado este significado com o termo “portuguesismo”.

Neste momento poderemos fazer a pergunta sobre a medida em que o amor pela pátria nos permite termos uma atitude crítica em relação aos lados negativos que cada país e cada povo têm sem dúvida nenhuma. Isto é o que João Medina tentou descobrir no livro Portuguesismo(s), pondo muito frequentemente de lado qualquer sentimento patriótico. Após a primeira leitura, pareceu-nos que detrás das palavras do autor existia uma atitude muito negativa e pessimista no que diz respeito a todos os pilares da cultura portuguesa, começando pelas origens dos portugueses, lendas e tradições populares, heróis, mártires, santos, escritores, políticos, marcadas comerciais etc. A atitude de Medina como historiador deveria, talvez, ser um pouco mais objectiva, devido a que nem todas as coisas em Portugal merecem uma crítica áspera e negativa, já que como português não consegue esconder a sua desilusão com o estado em que a cultura do país se encontra na actualidade.

É positivo ter uma atitude crítica em relação ao nosso país de origem ou de nascimento para podermos propor as possíveis soluções dos problemas ou para tentarmos melhorar a situação em que o país se encontra, mas a postura muito irónica sem respostas às questões levantadas na obra parece um pouco exagerada. Implica a mensagem: “Aqui nada é bom e nada funciona, é tudo deveria se melhor e não assim como actualmente está”. O autor não se preocupa nem com os próprios portugueses, que possam valorizar ou apreciar algumas das personagens importantes da sua cultura, nem com a imagem que os estrangeiros podem criar na mente a partir do livro de um historiador eminente. O que é que pode pensar um leitor estrangeiro quando o autor, referindo-se a Antero de Quental, diz que ele provém do “povo de suicidas”? Obviamente, entre os “heróis do mar, nobre povo” e o “Zé Povinho” há muitos níveis, muitas perspectivas e modos de olhar para si próprios e para os outros e isto será um dos vários objectivos deste trabalho, limitado em muitos aspectos. Tentaremos ver e rever qual é o papel da identidade nacional numa sociedade cada vez mais globalizada e demonstrar que o respeito dos valores culturais específicos para cada povo não exclui o multiculturalismo. Como é que vamos respeitar o(s) outros sem valorizarmos o que é nosso e autêntico?

 

 

 

A identidade (nacional e cultural). Os estereótipos e preconceitos. A diferença e o(s) outro(s)

         Embora as identidades, como afirma Amin Maalouf, na sua obra homónima por vezes se tornem “assassinas”, é indispensável ter-se uma. Por quê? Porque a identidade representa um conjunto de elementos: valores, ideias, crenças, características com as que nos podemos identificar ou que, pelo menos servem para nos identificarmos a nós próprios e para nos diferenciarmos aos outros, Alguns destes elementos pura e simplesmente não dependem de nós (o lugar e a data de nascimento, a origem nacional, a cor da pele, o género, a língua materna etc.) enquanto existem pertenças e valores que nós escolhemos mais ou menos conscientemente e mais ou menos condicionadamente (a simpatia por um determinado clube desportivo, o partido político que votamos, o regime alimentar, as preferências por um determinado tipo de música, filmes, livros etc.). Como já vemos, o conceito vasto da “identidade” pode-se preencher com vários significados, partindo das categorias frequentemente discutidas como a nacionalidade, a religião, os costumes e tradições, a orientação sexual, raça, ou género, mas não se pode separar das pequenas caracterizações que distinguem cada indivíduo do outro semelhante a ele. Para confirmar este ponto de vista, servir-me-ei de um pensamento parafraseado de Amin Maalouf que se refere às diferenças identitárias entre dois povos ou entre duas pessoas únicas no mundo: um sérvio é diferente de um croata, mas é também diferente de todos os outros sérvios, como o outro é diferente de todos os outros croatas. Sendo assim, vale a pena falar sobre uma identidade comum? Esta regra poder-se-ia aplicar tanto aos portugueses, como aos espanhóis ou qualquer outra nação. Veremos agora como é que pode ser considerado ou observado o conceito da identidade:  De acordo com Guiles e Middleton (2001;34)[1] “Although the cultural forms and practices that are produced in a society are shaped by the structures of that society, they are also shaped by the subjectivities of the individual women and men in our roles as social actors.”[2]

O que é importante e que nos chama a atenção nesta citação aqui podem ser as ditas especificidades individuais, mas também devemos reparar a parte que se refere às estruturas da sociedade que influenciam as formas e práticas sociais e culturais Quais são essas entidades que têm direito de encaixar a nossa identidade dentro de um certo conjunto de características “correctas” ou desejáveis? O Estado, a Igreja, o Exército, a Televisão ou outros meios de comunicação, as autoridades políticas, a censura, a Escola etc. Agora não colocaremos questões sobre a correcção da influência de cada uma delas, apenas vamos constatar a sua existência, importância e poder na formação da identidade. Uma identidade cultural e nacional varia muito de acordo com o regime político em vigor. Desta forma, a Sérvia durante a Idade Média, que é a época do seu apogeu cultural é diferente da Sérvia ocupada pelos turcos ou da Sérvia que fazia parte da Jugoslávia do Tito. Do mesmo modo, o Portugal de D. Afonso Henriques e a noção da portugalidade da época não são os mesmos que na altura da Primeira República, ou durante o estado Novo ou no período das integrações europeias. Outro elemento importante desta observação é a forma de salientar o nosso próprio papel como actores sociais. Isto é, alguns valores, crenças e ideias nos são propostos e /ou impostos, mas somos nós que os aceitamos ou rejeitamos, somos nós que nos identificamos ou não com estas características.

Nesta linha de investigação os mesmos autores acima rferidos continuam a desenvolver as suas ideias sobre a identidade e o papel dos indivíduos na construção desta categoria:

 

Equally, the identities that the individuals adopt in order to define themselves are produced at least in part, from the cultural and social contexts with which we find ourselves and from which we draw certain assumptions about  nature”, “individuality” and the self[3]

(Guiles e Middleton, op.cit.p.34).

 

 

Com esta afirmação é nos dado a saber que existe uma forte interdependência entre o ambiente em que nascemos, crescemos e somos educados, os valores que nos são ensinados e a nossa própria habilidade de reconhecermos e assumirmos e integrarmos na nossa personalidade aqueles elementos que considerarmos bons, úteis, inseparáveis de nós mesmos.

Para a construção da identidade nacional é muito importante ter em conta a forma em que se representa aquilo que é desejável ou recomendável para ser aceite como um valor cultural ou como um elemento indispensável do nosso ser. Na hora de representar não nos devemos esquecer do poder das imagens e a linguagem. A imagem tem uma influência forte nos espectadores, lembra-se facilmente e pode interpretar-se de várias formas, igualmente como a linguagem, A linguagem com os seus sentidos ambíguos, figurados, irónicos e com os seus inúmeros significados, níveis de expressão pode servir perfeitamente como um meio de propaganda ou como um veículo importante que nos ajuda a construirmos a identidade nacional. A linguagem e os termos que usamos para qualificarmos a nós mesmos, introduz logo a noção da nossa relação com os outros. Se as palavras com que descrevemos a nós são um reflexo de orgulho da nossa história, grandes descobertas na área da ciência, célebres poetas etc., isso pode significar que simplesmente valorizamos o que é belo, positivo e eterno na nossa cultura, mas detrás disso, frequentemente sem nos apercebermos, pode esconder-se um ar de superioridade em relação ao que é “nosso” ou um tom de desprezo ou inferioridade quando nos referimos aos outros. Tendo isto em conta, devemos também saber que (idem.) “Identity and difference are about the inclusion and exclusion”[4]  

O conceito da identidade não pode ser tido em consideração isoladamente e sem ter que recorrer à explicação dos termos o outro e a diferença. No século XIX, em toda a Europa notou-se uma grande importância da consciência nacional, isto é, houve uma tendência de valorizar as origens, os valores nacionais e de criar símbolos identitários, o que não significa que esta tendência queira inspirar e incentivar o nacionalismo e o ódio pelos outros. Esses símbolos identitários podem ou não ser ultrapassados, mas do mesmo modo são importantes, porque implicam uma relação connosco e com os demais. Nesta linha do nosso interesse, podem colocar-se várias questões sobre o multiculturalismo, o espaço público e privado, a convivência de duas ou mais culturas e identidades, as discriminações, as maiorias e as minorias, o que será tratado com mais detalhes ao longo deste trabalho. Na formação desta identidade nacional quase sempre existe um papel e um peso grande do que se costuma chamar “a memória histórica”. Embora se suponha que todos ou a maioria dos intelectuais portugueses e dos estudantes de língua e cultura portuguesa tenham lido A Mensagem de Fernando Pessoa e embora rpossam recordar lembremos do seu célebre verso “O mito é tudo e é nada”,parece incrível qual é a importância dos mitos, lendas  e tradições populares na modelação da consciência nacional.  

Segundo Afirma Buescu ( in: Bethencourt, Ramada Curto, 1991):  “Entre a verdade e a história existe um largo espaço” Por quê é assim? A história é escrita pelos vencedores e eles aproveitam-se da linguagem e das imagens lendárias e (semi) históricas para atingirem um determinado objectivo: para levantarem a moral do povo, para desenvolverem o sentimento do patriotismo, para salientar as características únicas e específicas de cada nação. Muito poucas vezes o objectivo principal das imagens e palavras que preenchem o espaço entre a história e a verdade é humilhar e discriminar os outros, mas qualquer tipo de exagero ou linguagem “inflamável” pode causar conflitos e sentimentos opostos entre si tanto em “nós” e “os outros”. Para designarmos aquilo que nós somos, é quase impossível deixar de falar daquilo que não somos ou daquilo que são ou não são os outros. Todas as ideias que surgem sobre nós e os outros devem ter algum fundamento baseado naquilo que aprendemos e ouvimos ao longo da nossa vida.Todas as culturas, e nações têm a sua beleza e a sua singularidade, mas, porquê é que a nossa é tão especial? Será apenas e só por ser a nossa? Podemos ser muito objectivos quando designamos o que é nosso daquilo que é alheio. A importância da palavra e do seu poder simbólico foi frequentemente salientada como uma das características principais que diferenciam os seres humanos e os animais porque os seres humanos utilizam a palavra e a linguagem para comunicarem entre si e exprimirem ideias e pensamentos mais profundos e não apenas para falarem sobre as suas necessidades básicas. De acordo com Lages (in: Povos e Culturas, 2005-2006). “E no duplo aspecto da palavra simbólica – ideacional e accional- esta inscrita a possibilidade de entender e refazer a existência, o entendimento sendo feito sobretudo pelo mito e pelo conto e a transformação do real pelas várias formas da operação simbólica.” Percebemos bem que a palavra tem as suas duas dimensões: a simbólica, a que está carregada de ideias e valores, de elementos que muitas vezes estimulam e incentivam a acção: imaginemos agora o efeito que uma palavra assim tem na mente de uma nação. Sem dúvida alguma o impacto dos significados das palavras deve ser muito forte, e pode criar uma distância ou uma aproximação de maior ou menor grau entre os povos, entre uma entidade ou outra e pode ajudar a criar ou romper os estereótipos e preconceitos, que nem sempre são necessariamente ideias negativas e prejudiciais. Além de sabermos definir os conceitos do outro/dos outros, da diferença, do preconceito e do estereótipo, devemos saber compreendê-los, e agir de acordo com a nossa consciência. em relação a estes conceitos e os seus significados. Nesta altura e que começam as verdadeiras dificuldades: porque muitas vezes é fácil estar de acordo só com as ideias ditas, mês é realmente difícil passar das palavras para a acção. Aqui se calhar seria o lugar mais adequado para começarmos a tratar os termos da diferença, do outro e dos aspectos da identidade e dos estereótipos. Muitos são os autores que escreveram livros e estudos sobre o conceito da diferença e cada um deles contribuiu até certo ponto para o seu esclarecimento e, quando a diferença se põe no contexto da diversidade cultural, uma das afirmações mais impactantes e mais claras que estará escrita sobre o tema é a seguinte (Oliveira Gonçalves, Gonçalves e Silva, 2002: 25).: “A diversidade cultural se constitui em um problema, ali onde a convivência humana é marcada por conflitos dramáticos, motivados por preconceitos e discriminações étnicas, de género e de preferências sexuais, de gerações e outros. (Esta frase tem tanto significado porque em muitas sociedades, por multiculturais que pareçam, há e haverá sempre vários tipos de discriminações. É também verdade, que todas as ideias negativas que temos sobre algo ou alguém provêm da ignorância, falta de conhecimentos necessários o por causa dos preconceitos. Agora poderíamos discutir o significado da palavra “preconceito”.

Este vocábulo, tal e como a palavra crítica e muitas outras que utilizamos no dia-a-dia, sofreu uma transformação ao longo do tempo e ficou conhecido só pela sua conotação negativa. Mas, analisando-a, vemos que se compõe do prefixo pré- e o substantivo conceito, isto é, uma ideia preconcebida baseada numa opinião superficial e geralmente sem grandes fundamentos científicos ou quaisquer outros argumentos e não necessariamente tem de levar dentro de si um matiz negativo ou discriminatória. Para confirmarmos a interpretação deste termo, verificámos o seu significado no Dicionário Aurélio (Aurélio, 1999) Como o primeiro dos significados cita-se o seguinte: Preconceito: Conceito ou opinião formados antecipadamente sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, ideia preconcebida. Só como quarta designação aparece a conotação da palavra que nos é conhecida a todos e que este dicionário define como: suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões etc. Será um preconceito, usado no seu significado básico, igual ou semelhante ao termo “estereótipo”? Poderia entender-se assim, visto que o estereótipo é um lugar comum, uma ideia baseada na opinião geral e sem uma consideração mais profunda do tema e pode ser também uma ideia preconcebida. De onde provêm os estereótipos e preconceitos?

Na perspectiva de Semprini, trata-se da (1999) “dificuldade básica de aceitar a diferença”, e da “superioridade civil e moral” de uma nação em relação à outra. Esta superioridade não é uma categoria real e é sempre difícil ser objectivo quando se trata daqueles traços específicos que fazem parte da nossa cultura, identidade e os mitos, estereótipos e preconceitos desempenham um papel muito importante neste processo. Quando Carl Gustav Jung definiu o termo do “inconsciente colectivo”, referiu-se principalmente aos mitos como pilares e portadores dos traços que esboçam a nossa identidade como nação. Tendo, então  em conta que muitas vezes o mítico e o simbólico predominam na mente das pessoas em relação ao real e ao histórico, é possível compreender que daí pode nascer um sentimento de superioridade. De que forma podem conviver as culturas uma ao lado da outra se todas elas têm algum elemento superior em comparação com as outras? É  aqui que devemos reflectir sobre o espaço público e privado e a possibilidade de existir um espaço multicultural público. Em teoria, um espaço público não se deveria reduzir a uma única cultura e deve haver um lugar para tudo e para todos. Porém, na prática, nem sempre acontece assim, porque a maioria das pessoas continua a dividir a esfera do privado em que cada indivíduo, grupo ou minoria tem os seus direitos e pode exercer as suas práticas e crenças sem problemas e restrições, e o espaço público, onde se podem e devem respeitar determinadas regras do civismo, das liberdades e direitos do racionalismo, do poder e do dever ser. No espaço público levantam-se com muita frequência as questões da diferença e igualdade, respeito e discriminação. Até que ponto num mundo globalizado, onde os meios de comunicação têm um poder cada vez maior, onde as informações são cada vez mais variadas e abundantes podemos e devemos conservar a nossa identidade e os nossos valores? E de que forma? Se nos integrarmos por completo em todas as novas tendências e modas, estamos no caminho de perder todos os traços únicos e específicos da nossa identidade. Se, porém, resistirmos a qualquer mudança e novidade, iremos ao outro extremo, terminando o nosso caminho na xenofobia, ódio aos outros e isolamento. Semprini propõe o modelo do multiculturalismo liberal como a forma mais razoável de responder às exigências do mundo moderno, porque este modelo “propõe o reconhecimento do papel central das dimensões étnicas e culturais na formação do indivíduo, enquanto ser moral e cidadão”.  As diferenças existem, mas não as devemos idealizar nem colocá-las num lugar superior ao que elas têm. As particularidades que distinguem um fenómeno ou indivíduo do Outro representam um caminho de reconhecermos e encontrarmos o outro e não para o combatermos ou eliminarmos. Finalmente, depois de discutirmos tanto a problemática do outro, convém definir quem ou que é Outro. Basta dizer que o outro é aquilo que nós não somos ou devemos qualificá-lo de alguma outra forma, mais completa e mais correcta? Será o Outro só a minoria discriminada que reivindica os seus direitos? Ou o outro também pode ser a maioria que impõe a sua cultura a uma determinada comunidade? A visão do outro depende muito da nossa própria perspectiva. Nós também podemos ser qualificados como “nós” e como “os outros”, dependendo do contexto sociocultural em que vivemos, da forma de ser e de olhar para o mundo e assim por diante. Ser determinado como o Outro nem sempre significa ser discriminado ou desprezado por causa da diferença, nem sempre implica consequências negativas ou trágicas. Ser o outro pode se interpretar de várias formas, simplesmente como ser diferente, como ser alguém que contribui de certa forma para a multiculturalidade, para a riqueza do mundo etc. Entre o polo da intolerância em relação ao outro e o ponto de o idealizarmos m existir ou glorificarmos, puramente por ser o outro, podem e devem existir muitas visões e determinações muitos enquadramentos e ideias que podemos ou não aceitar e incorporar no nosso sistema de valores e de perspectivas que nos podem facilitar ou dificultar a convivência com os outros. Os Outros podem e devem pedir os seus direitos, e devem ser respeitados, mas nunca nos podemos esquecer de que nós também temos os nossos direitos e liberdades. Se exagerarmos no momento de pensar no Outro e darmos-lhe demasiados direitos, nós terminaremos por ser prejudicados, porque temos sempre de ter presente que a nossa liberdade e os nossos direitos começam ali onde os direitos do outro acabam e ao contrário.

De que forma, então, será possível o diálogo intercultural? Defendemos o ponto de vista que em primeiro lugar devemos saber em que consistem as características indispensáveis que definem a nossa cultura e os nossos valores, para, a partir dali podermos respeitar e aceitar aquilo que é diferente e que pertence aos demais. Sem esses conhecimentos, será difícil, se não completamente impossível criar uma sociedade rica em pluralidade de crenças, ideias e identidades e (com) viver nela? Um destes elementos distintivos em relação a todos os outros povos no mundo, sem dúvida alguma, são os nossos mitos, que fazem parte do nosso ser, definem algumas características colectivas da nação, determina a nossa relação com a história, com o passado, o presente e o futuro, connosco próprios e com os outros. O mito, construído por palavras e imagens pode chegar a simbolizar toda uma nação, devido ao significado múltiplo dos seus constituintes. Isto é, como refere Carl Gustav Jung, (1979) “Una palabra o imagen es simbólica cuando representa algo más  que su significado inmediato y óbvio.”[5]

Para a criação da nossa identidade nacional, devemos ter em conta também o papel do onírico, do arquetípico, do inconsciente colectivo, das associações que são feitas na nossa mente e de muitas outras ideias e categorias que pouco ou nada têm a ver com as explicações científicas ou racionais, mas que são precisas e frequentemente são os portadores principais dos valores culturais de um povo. Na opinião de Jung (op.cit.) “La mision de los símbols religiosos es dar sentido a la vida del hombre”[6]. Nesta afirmação junguiana o assunto principal que há que ter em conta são pura e simplesmente os símbolos religiosos, mas a função principal de todos os símbolos é preencher um vazio, dar algum sentido, traçar algumas características específicas de uma determinada comunidade ou cultura, tal e como eles são inevitáveis na determinação de cada indivíduo.

Esta poderia ser uma das numerosas razões pelas quais todas as pessoas ou nações precisam de grandes heróis e personagens positivas na sua história, poesia, mitologia, arte ou política, porque é muito mais fácil identificar-se com uma figura de personalidade forte, que contribuiu para o desenvolvimento ou glorificação dum povo, que com uma personagem medíocre que em nada se destaca e em nada brilha. Na história de todos os povos existe a divisão em “heróis” e “traidores”, em figuras gloriosas e “as ovelhas negras”. A partir desta dicotomia é que começam todas as discussões sobre a identidade nacional, o tesouro cultural, começam também os estereótipos e ideias preconcebidas. Neste momento a questão que se levanta poderia ser quem são os heróis e quem são  as pessoas que representam as páginas vergonhosas da história e quem é que decide como  vão ser qualificadas as figuras importantes numa cultura.

Os pilares importantes da cultura portuguesa : o lusitanismo e os “heróis do mar”

 

Todas as pessoas, portuguesas ou estrangeiras, já muitas vezes ouviram falar da “alma do povo”, das expressões típicas que usamos para nos referirmos aos grupos de determinadas regiões, dos provérbios e piadas em que se vê o carácter da nação, o sentido de humor, as tradições populares etc. Quem é que, ao falar de Portugal não se recorda da época dos Descobrimentos, do fado e da saudade, esta palavra “misteriosa” que aparentemente não tem tradução para nenhuma língua? Quem não sabe o que é que são os “Heróis do mar”? Quem não conhece a paixão dos portugueses pelo vinho, bacalhau e doces? Quem não admira o estilo manuelino e os azulejos?

            Em que medida isso tudo é verdadeiro ou é mais uma forma de fazer imagens estereotipadas, não é fácil distinguir nem explicar, mas é um facto que cada cultura tem os seus momentos gloriosos, que incentivam os povos a sentirem orgulho de si próprios, e momentos que ajudam a criação de uma imagem negativa aos nossos olhos e perante os que nos vêem de fora. Em Portugal pode falar-se de várias “camadas” e tipos de imagens que fazem parte da sua herança cultural, começando pelos santos, mártires, reis e rainhas, lendas, canções, poemas, personagens históricas etc. Justamente de alguns aspectos da portugalidade acima citados foram abordados no estudo de João Medina, que é o objecto desta análise. Tanto ele como muitos outros autores tentaram descobrir se existe algo que se pode denominar como a “típica alma portuguesa”, quais são os adjectivos com os que se poderia qualificar um autêntico português, como reage em determinadas situações, o que sente, quais são as marcas comerciais que provêm de Portugal e que se poderiam vender aos turistas como produto típico do país e assim por diante. Nas lojas portuguesas de recordações não é possível deixar de encontrar os discos de Amália Rodrigues, cachecóis do Benfica e do Sporting, objectos de cortiça, terços de Fátima, figuras de Santo António, galos de Barcelos, canetas verdes e vermelhas, mas, serão só estes os traços identitários portugueses? Alguns até são de carácter muito local (nomeadamente o galo de Barcelos), no entanto, não concordamos com a ideia de que a respectiva lenda seja uma (Medina, 2006) “pobre lendazinha do norte” como a qualifica o próprio autor dos Portuguesismo(s).

Pode não ser um dos símbolos nacionais mais fortes, mas esta lenda pode revelar-nos um traço da caracterologia dos portugueses: acreditam na justiça. Na época em que a lenda surgiu, era natural que se mencionasse a existência de uma força superior, provavelmente da origem divina, no momento em que a justiça humana falha. O aspecto negativo da lenda seria só acreditar nas forças superiores a nós sem fazer nenhum esforço para melhorar o estado das coisas por médio das leis. Esta lenda pode ser conhecida por todos os portugueses, e até não existir nesta forma em nenhuma outra cultura, mas nunca devemos esquecer que:, segundo recorda Dias, (1950) ” A herança cultural de um povo é fatalmente afectada por influências do exterior (aculturações) e por transformações da estrutura determinadas pela  sua própria evolução”

Por mais portuguesas que sejam algumas lendas e mitos, devemos saber que entre todos os povos indo-europeus houve sempre contactos e interferências que influenciaram a criação de pontos comuns nas histórias e lendas que fizeram as nações. O mesmo autor continua a defender a hipótese que o único que realmente determina um povo é uma componente espiritual, isto é o seu “fundo temperamental” enquanto todas as outras características da cultura são mais ou menos acidentais. Um dos factores cruciais da unificação das nações deve-se frequentemente à política Uma política que salienta o carácter de Viriato como “o primeiro português e os valores dos lusitanos como os traços principais do ser português, denomina-se como lusitanismo.

Porém, não nos devemos esquecer que não foram apenas e só os lusitanos que viviam na Península Ibérica e que muitos outros povos contribuíram em certa medida para a criação da identidade nacional portuguesa. Enquanto alguns autores glorificam o Viriato, como um herói que mostrou ter amor pela liberdade dos Romanos, uma figura de carácter sóbrio, Medina vê-o de outra forma e até julga que ele não cabe na história de Portugal O argumento do autor da obra para esta opinião é que Viriato, sendo lusitano, lutou contra tudo o que era romano, e que o próprio Viriato nunca falou a língua de base latina e que combateu as raízes do que realmente são os elementos da cultura portuguesa.

Com uma certa ironia na forma de se expressar, o autor do livro (Medina, op.cit, 45) refere-se a Viriato com as seguintes palavras: “o lendário e nebuloso guerreiro celta”. Ao ler esta citação, tem-se a impressão de que Medina propositadamente sublinha a palavra “celta,” designando desta forma o Viriato como um elemento estrangeiro e alheio ao espírito português e que deseja dizer que Portugal deve “divorciar” a sua história das lutas lusitanas contra Roma.

Neste aspecto não poderíamos dar a razão ao célebre historiador, devido ao facto de a nacionalidade portuguesa não ser feita puramente das componentes neolatinas, e que herdou características mais ou menos significativas tanto dos Celtas, como dos Iberos e outros povos da Península. Pensa-se, nomeadamente, que os Portugueses herdaram dos povos germânicos o sentido prático, a arte de fazer guerras, que os árabes deixaram uma influência notável no espírito religioso, e o amor pelas artes etc. Sabendo isto, podemos perguntar-nos por que razão Viriato não pertence à história portuguesa?

Outro factor notável no caso da história de Portugal tem sido o mar, tendo Portugal sempre sido virado para o mar. Por este motivo os Portugueses foram vistos muitofrequentemente como “heróis do mar” A posição geográfica de Portugal contribuiu para o início da expansão marítima e este motivo, segundo Dias, (op.cit.) “impressionava a sensibilidade portuguesa” e é frequente nas obras mais gloriosas da cultura portuguesa. A Nação portuguesa naquela época, segundo afirma(Marunho dos Santos, (1994) descobriu nem apenas a beleza do mar e a sua atracção, mas apercebeu-se de que o futuro dum povo livre, reconhecido e prestigiado internacionalmente poderia começar a construir-se com a ajuda do mar, e do além-mar  

 João Medina, nas páginas do seu livro Portuguesismo(s) tenta oferecer uma outra leitura dos símbolos nacionais relacionados com o mar e a época dos  Descobrimentos, desejando indicar que após o 25 de Abril, após a perda das colónias e as integrações europeias, Portugal já não necessita de se identificar com estes símbolos nacionalistas e antigos e que deve ser realista e objectivo e olhar para frente em relação a si próprio e aos outros. Quando  no título deste capítulo coloquei o sintagma “heróis do mar”, não me referi exclusivamente ao hino português, mas também quis abordar algumas das grandes figuras da época dos Descobrimentos. Naquele período de grande glória portuguesa, lutava-se tanto pelos ideais da Fé, de expandir o território e a cultura, como pelos interesses e pelo poder. Quando adquiriam as grandes riquezas, os portugueses, esbanjavam-nas, devido ao amor pelo luxo e ao desejo de mostrarem e ostentarem a sua beleza, força e glória.

Por outro lado, na opinião de Medina, o Infante D. Henrique, o grande iniciador da Expansão, relaciona-se com a escravatura e com a invenção de um instrumento de tortura Dos outros navegadores apenas se fala no livro. (Nomeadamente, para a expedição de Vasco da Gama, afirma-se que “faleceu”.)

Agora, pondo no primeiro plano só os lados negativos da expansão marítima,  como será possível  identificar-se  com este tipo de “heróis” tendo eles feito muitas crueldades  e tendo denegrido a imagem de Portugal aos olhos da Europa contemporânea? Serão eles, então, heróis? Referindo-se, negativamente, porque na época da criação de uma Europa sem fronteiras que pretende ser espaço multicultual e igualdades para todos, não há razão de se evocar o e de se celebrar o passado e de se incentivar o nacionalismo e as ideias doe um “Portugal maior”

O que também parece incomodar ao autor é que os autores do hino da república  tenham sido monárquicos. Na nossa opinião, o facto de o autor da letra do hino chamar os portugueses de “nobre povo” e “nação valente imortal” não é um acto de nacionalismo, mas mais uma forma de se sentir feliz e orgulhoso por poder partilhar a história e os valores com o seu povo. O convite de “levantar hoje de novo o esplendor de Portugal” pode ser simplesmente uma maneira de levantar a moral de um povo que por vezes se sente melancólico e sem vontade de agir. Naturalmente, no mundo “civilizado”, a parte de lutar pela pátria usando as armas, deve permanecer na história. Se Portugal, porém, rejeitar os factos que aconteceram no seu passado, importante poderá perder uma parte importante da sua identidade, arquitectura, literatura e arte.

 

A alma portuguesa: o lirismo, a saudade e a religiosidade e o sebastianismo

 

         O conceito da alma humana tem sido muito discutido do ponto de vista religioso, psicológico e cultural: o quê se pode caracterizar como a alma, se ela realmente existe ou não, onde é que se encontra etc. Se o conceito da alma de cada pessoa é tão difícil e complexo, de que forma podemos definir a alma da nação? Será simplesmente o conjunto das almas e caracteres das pessoas que fazem parte da nação? Será uma série de elementos comuns que definem um povo e diferenciam-no de todos os outros povos no mundo? Será uma espécie de sensibilidade, de forma de reagir, de sentir, de pensar, de falar, de ser e de estar? Ou um pouco de todas estas componentes?

            Jorge Dias (op.cit.) define o Português como um “sonhador activo”, pessoa de grande sensibilidade, muitas vezes incapaz de separar bem a realidade do sonho, capaz de sentir, mas frequentemente incapaz de agir de acordo com os seus sonhos de forma a realizá-los. Por outro lado, Medina (op.cit 69) caracteriza os portugueses do seguinte modo:” O português, ao não acreditar em nada, acaba por ser satanicamente vitima da Melancolia, transformando-se num cultor neurasténico do grande pecado da Tristeza e cedendo, como um acto de desespero, à tentação de esperar e confiar no Encoberto.”

As suas palavras acabam por ser muito mais ásperas, muito mais irónicas e pessimistas na qualificação da “alma” Se repararmos bem no texto, veremos que utiliza um vocabulário grave: “satanicamente”, “vítima”, “neurasténico”, “grande pecado”, “desespero”, enquanto propositadamente e escreve com maiúsculas as palavras “Melancolia”, “Tristeza”, e “Encoberto”.

Estas características podem ter contribuído para a ausência da industrialização de Portugal, podem ter influenciado algum atraso tecnológico, podem ter originado alguma ausência de racionalismo, organização e sentido prático nos Portugueses, mas consideramos que estão longe de lhes darem um ar de vítimas satânicas do desespero e da melancolia.

Embora todos sejamos capazes de ter saudades de algo ou alguém, nenhuma nação no mundo prestou tanta atenção a este sentimento, nem criou tantos poemas sobre ele. Aliás, salienta-se frequentemente que esta palavra não tem tradução para nenhuma língua estrangeira. Devemos também ter presente que uma personalidade inclinada ao lirismo, à imaginação e ao mítico, pode criar uma biela poesia, lendas significativas, músicas eternas, monumentos de arquitectura e pinturas magníficas.

Esta nação foi a que criou e glorificou tanto a lenda de Inês de Castro, a quem o autor dos Portuguesismo(s) se refere usando o adjectivo “infeliz” que pode chegar a ter um tom irónico,  no sentido em que ela é uma pessoa digna de pena, o pelo menos, não digna de tanto respeito. O lirismo, o saudosismo e o carácter pessimista dos Portugueses provavelmente duma forte consciência de que o seu povo já não é tão prestigiado e respeitado, que já não tem a força e a glória de um país imperial, que já não tem o Ouro do Brasil, que, como recorda Medina (op.cit., 80). já não possui “as províncias do Ultramar” e que provavelmente nunca voltará a ter Este lirismo e saudosismo foram os responsáveis pela criação da música fado, “uma cantiga fatalista, sombria e feita de uma soturna melancolia. Claro está que mesmo o nome da musica (fado) sugere uma forte relação com o destino e inclusive muitas letras de fado mencionam o destino, ou um Deus que não se importa muito com os homens, mas que sim marcou o seu caminho. Porém, nunca se deve esquecer que além deste tipo de fados, existem os fados de Coimbra, que são mais alegres, e que falam da vida dos estudantes, os seus amores, o vinho, e que a visão de Medina outra vez se torna demasiado pessimista. O historiador critica o fado como uma música pouco representativa para um Portugal que há vinte anos atrás aderiu ao projecto europeu.

Para “aderirem ao projecto europeu”, não é necessário que as nações rejeitem tudo o que as caracteriza de uma ou de outra forma. Na mesma linha ideológica Medina (op.cit.303) considera que muitos símbolos nacionais fizeram de Portugal um país “tradicional, catolicão, trauliteiro, retrógrado, hostil e fechado ao universalismo”. Isto é em nome dum ideal europeu e universal, não deve criticar-se da pior forma e com o maior desprezo tudo o que faz parte da vida de um povo.

. O fado pode não ser na opinião de muitos, a música mais agradável de se ouvir,, mas é uma marca da portugalidade e hoje em dia faz parte do Património da Humanidade, o que lhe atribui um valor inegável.  O mesmo valor pode ter o tango para a identidade argentina, e todos os argentinos sentem-se orgulhosos dele. O tango é também uma música melancólica e triste, mas nenhum argentino é capaz de o recusar como uma parte do mosaico cultural do seu país. Por que razão, então, os Portugueses deveriam sentir vergonha ou recusar o fado? O fado e o seu lirismo e as suas letras foram usadas excessivmente na época do Estado Novo, é verdade, mas são um elemento que marcou o carácter de gerações e gerações de portugueses. Esta música de facto, tem a ver com a “alma portuguesa”. Se não fosse assim, surgia no Brasil ou em qualquer outro lado do mundo. O valor e a importância da história em Portugal são grandes, como também é grande a angústia e a tristeza por o país já não possuir aquelas grandezas do tempo da Expansão. A distância entre o passado e o presente, a história e a realidade actual põe os Portugueses desconfortáveis em relação ao futuro e por isso consideram melhor a possibilidade de olhar para trás e de se sentirem contentes com aquilo que já foi, já passou, já pertence à história e ao passado. Por esta razão não é de estranhar que precisamente em Portugal tenha aparecido o famoso mito do sebastianismo. Este mito baseia-se na personagem histórica do rei Dom Sebastião, da Dinastia de Avis conhecido pelo cognome  O Desejado, O Encoberto ou O Adormecido. Morreu na famosa batalha de Alcácer-Quibir em 1578 e a sua morte foi muito misteriosa, acredita-se que desapareceu, o que originou o mito do rei-redentor que vai aparecer num dia de nevoeiro e vai levar a nação pelo caminho da salvação. Se agora quisermos analisar bem o acontecimento histórico, as circunstâncias da morte do rei D. Sebastião são misteriosas: morre em África, longe de Portugal, e em várias tradições e mitologias existe a crença que as pessoas que morrem num país estrangeiro (fora da Pátria), e que não são sepultadas segundo o rito da religião à qual pertenciam, vão seguir a andar pelo mundo sem conseguirem a encontrar  paz e o sossego. Se calhar esta é a razão em que ele tem de voltar, para corrigir e anular a injustiça que lhe foi feita a ele e a Portugal. Em segundo lugar, Portugal, sendo um país cristão, tem de acreditar que as pessoas boas e honestas ressuscitam após a morte, e o rei D. Sebastião, visto que iniciou uma espécie de nova cruzada, lutando contra os infiéis em África, na opinião do povo português tinha de merecer ressuscitar. O dia de nevoeiro que o envolve aumenta ainda mais o carácter místico  e mítico que forma atribuídas ao rei. O mito do redentor e do salvador é muito antigo e a primeira pessoa com que se associa logo o grande sacrifício e a grande glória é Jesus Cristo.

Por ventura os Portugueses com este mito desejavam ter uma repetida história do cristianismo, um Cristo aportuguesado que se preocupa com o seu povo, que lhe da a esperança de voltar e de os levar à glória eterna e devolver-lhe a honra que tinha há muitos séculos atrás e de construir o chamado “Quinto Império”(depois dos impérios grego, romano, o império da Cristandade e da Europa). O papel do povo português seria neste caso messiânico, o papel dum povo escolhido por Deus para realizar uma tarefa grande e importante no mundo, a de evangelizar e alfabetizar os povos pagãos, e de divulgar a língua e o nome dos Portugueses pelo mundo inteiro. No entanto, à diferença do verdadeiro Cristo, que segundo a Bíblia virá envolvido em luz, o “Cristo” português vem encoberto no meio do nevoeiro, da escuridão e do desconhecido, o que nos indica que, apesar da profecia gloriosa, o futuro de Portugal será incerto e não nos pode garantir uma visão optimista.

 Nas palavras de Medina (op.cit 316), o rei D. Sebastião é qualificado como:  ”uma espécie de ET andrógino” e com esta afirmação deseja-se salientar a estrema fraqueza do jovem rei e a grande impossibilidade de realizar uma ideia imperialista. Por outro lado, este sintagma usado para caracterizar o rei, é muito significativo, porque, de forma indirecta ironiza os portugueses que acreditavam naquele ideal. A ideia do império, seja ele qual for, na opinião de Padn (2001)  foi sempre a ideia de uma maneira de unir o povo. Além disso, a ideia de qualquer Império está relacionada com a política, a ideologia, o poder e a imagem da Nação. Qual é a imagem da nação que se vai ter depende em grande medida, do sistema de educação, dos livros de história e da linguagem que os autores destes livros usam ao referirem-se aos acontecimentos históricos mais importantes.

Se a linguagem usada nos manuais escolares frequentemente remete para o domínio do imaginário, do subconsciente, e do mitológico, o mais provável será que os aprendentes acreditem que as ideias expostas nos livros são necessariamente boas e desejáveis. As imagens históricas ligadas à esfera mítica procuram, de acordo com Campos Matos (1990) “imprimir um determinado sentido ao sentido colectivo” O mito e o mítico dão a segurança e uma determinada certeza aos povos, mesmo que sejam a curto prazo, mesmo que o conteúdo do mito seja impossível de realizar, serve para levantar a moral do povo. Assim acontece com o sebastianismo. O sebastianismo é também um mito que deveria ajudar os portugueses a unirem-se e despertarem dum sonho impossível.

Uma das características do povo português, como já vimos é a de mistificar e mitificar os acontecimentos e as pessoas. Daí provém o sentimento religioso que durante muito tempo tinha um peso muito grande na sociedade portuguesa. daí provém a peregrinação a Fátima, a crença no milagre que a virgem Maria fez apresentando-se aos pastorinhos. Enquanto alguns autores, nomeadamente Dias (op.cit.) salientam o carácter genuíno e bondoso do cristianismo dos Portugueses, acrescentando que as igrejas portuguesas são mais acolhedoras que as espanholas, Medina restringe-se a criticar a religiosidade portuguesa e ao facto de o povo ter mistificado o “Infante Santo,” os  “mártires da Pátria” e o próprio santo António.

Na nossa leitura, parece que o autor dos Portuguesismo(s) deseja salientar o carácter perigoso da enorme influência do passado sobre o presente e do mítico e religioso sobre o real. Entre a juventude portuguesa sobretudo, hoje em dia é notável uma religiosidade formal, ou seja a nível de respeitar algumas das tradições relacionadas com o Natal e a Páscoa e, embora ainda haja crentes sinceros, muitos dos jovens dizem que a religião católica é uma herança familiar, do tempo dos pais e avós, e outros até a relacionam com a época do Estado Novo e consideram-na ultrapassada e quase um obstáculo para a visão europeia do mundo em que vivem. Notei também que Portugal é um país mais mariano, do que propriamente cristão, porque até a bandeira da monarquia portuguesa e os azulejos têm as cores azul e branco que estão relacionadas com a Virgem Maria e simbolizam-na. Porém, permanecem e transmitem-se  lendas e canções populares sobre a Virgem Maria, a padroeira de Portugal, sobre Cristo e os seus santos e nenhum português, por mais que não seja praticante, negará a sua beleza, porque tudo isso faz parte da herança portuguesa.

 

A Língua portuguesa na visão de João Medina

 

Embora a citação pessoana “a minha Pátria é a Língua Portuguesa” possa parecer como um slogan da propaganda política e possa para muitos especialistas na linguística, literatura ou História parecer vazia de sentido no tempo das integrações europeias e da globalização, é mais do que óbvio que a Língua e a Pátria estão estreitamente relacionadas, visto que uma língua representa um elemento extremamente importante na hora de definir a identidade nacional, do mesmo modo que definir o que significa a pátria. A ideologia  da língua é inseparável da literatura, da política, da(s) ideologia(s) e do poder, da mesma forma que a pátria não significa pura e simplesmente delimitar as fronteiras e o território do nosso país, mas, visto que a palavra pátria vem do latim pater (pai), não podemos ficar completamente neutros e objectivos perante ao seu significado.

A pátria é algo que não nos pertence unicamente a nós, é aquilo que herdamos dos pais e dos avós e que nos obriga a uma certa responsabilidade no futuro. A mesma responsabilidade temos com a língua, porque estamos convidados a cuidar do tesouro lexical, a riqueza dos provérbios e ditados populares, a pureza da nossa língua, tentando não introduzir estrangeirismos e neologismos desnecessários onde já existem nossas palavras do mesmo sentido. Uma outra forma de termos a responsabilidade necessária com a nossa língua, é o facto de perseverarmos algumas peculiaridades dela.

Desta forma os espanhóis sentem-se tão orgulhosos da sua letra ñ que até a colocaram no símbolo do Instituto Cervantes, que é a instituição de maior importância para a divulgação de língua e cultura espanhola no mundo. Os portugueses como uma das maiores particularidades da sua língua salientam o ditongo -ão que surgiu a partir do –n- intervocálico nas palavras latinas e que o galego também tinha, mas que perdeu, e que por tanto continuam a ser uma característica tipicamente portuguesa e um motivo de não pouco orgulho. Portugal tem e deve continuar a ter muitas razões para se sentir orgulhoso, porque a sua língua serviu como meio de expressão a muitos escritores que, cada um do seu modo difundiram  a cultura portuguesa e o nome de Portugal.

Mais uma vez vemos a estreita relação entre os conceitos de “língua” e da “Pátria.” Na categoria dos melhores escritores e poetas portugueses cabem sem dúvida nenhuma Luís de Camões, Eça de Queirós, Almeida Garrett, Fernando Pessoa e outros. Veremos agora, quais são os estereótipos que o historiador utiliza para qualificar estas figuras e a obra delas. Camões, particularmente, no mesmo parágrafo é “o mito dos mitos” e é o poeta que cantou sobre a “ufania da nacionalidade”. Termos ligados a ele no livro são: “peso do génio”, existência amargurada”, “ tristes dias,” “viver de esmolas”, como também “panteonizado e colectivamente celebrado”. Indo assim de um estremo para outro, do estereótipo mais negativo até ao mais positivo, Medina  na sua obra parece dar o reflexo de uma importante característica dos portugueses: a ausência de meio termo. Esta tendência tem graves consequências para a mentalidade portuguesa, porque o povo gravita entre o extremo pessimismo e a grande ufania, o povo não consegue encontrar um caminho certo para o futuro razoavelmente feliz do país e da nação. Fernando Pessoa é “talmudista nacional”, “sebastianista luso”, no entanto, o autor dos Portuguesismo(s) parece sentir-se um pouco incomodado por o poeta ter recebido um prémio de segunda categoria do Secretariado Nacional de Propaganda. Em´A Mensagem foram trabalhados muitos dos mitos e factos que influenciaram a formação da identidade portuguesa: o sebastianismo, as Descobertas e o domínio dos portugueses do mar e do ultramar etc. Foram feitos os enigmas, os emblemas e símbolos que cada português deve saber e com os quais se deve identificar. Esta obra é também uma profecia sobre o destino de Portugal:

 Voltamos novamente às características típicas dos portugueses: a sua necessidade constante de ter profecias, e destino e de acreditar neles. Mais uma vez levanta-se a questão da língua usada e do conceito da Pátria, mesmo que aquela pátria desejada esteja longe daquele ideal das cruzadas e do quinto império. Os versos do próprio Pessoa variam desde “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” até “Ó, Portugal, hoje és nevoeiro” e novamente estamos em frente de uma dicotomia entre a obsessão pela grandeza e vaidade nacional até ao desespero e incerteza da pátria e da nação.

Almeida Garrett é glorificado por Medina como o melhor dos românticos portugueses, um verdadeiro espírito liberal, o primeiro escritor realmente moderno, sendo ao mesmo tempo um símbolo da educação europeia. Deste modo, o historiador sublinha mais uma vez que deseja afastar-se do patriotismo e da pátria, tendo em conta a língua como um instrumento da europeização de Portugal e da sua abertura ao mundo. Por último as características de Eça de Queirós na visão de João Medina são o “snobismo algo pedante”, “um anarquismo manso” e muitas outras, mas a mais óbvia que pode ver-se até de muito longe, é a grande desilusão de Portugal, da sua pátria, que muitas vezes foi qualificada pelo próprio escritor como “cópia mal feita a papel químico de França”. Esta amargura e decepção do país de origem foi transmitida com toda a mestria para a linguagem que Eça de Queirós empregava nos seus livros.

Esta linguagem brilhante, mas por vezes áspera e venenosa é só um reflexo do desejo do autor de poder mudar o estado de coisas em Portugal para melhor, e a sua grande dor por causa da incapacidade de concretizar a sua ideia e o seu sonho.

 

Visão do estado Novo na obra Portuguesismo(s)

 

            O Estado Novo é o nome do regime autoritário e anti-liberal em vigor em Portugal entre 1932 e 1974 forte e estreitamente ligado ao nome de António de Oliveira Salazar. Na opinião de diversos especialistas, este um tempo de censura, isolamento, nacionalismo, atraso na área da indústria, mas também esse período relaciona-se com uma certa estabilidade financeira, respeito de alguns valores importantes resumidos em três palavras: Deus, Pátria, Família. Estas palavras muito araentes e com peso e significado, foram abusadas de várias maneiras ficando como sinónimo das épocas ultrapassadas e dum período em que Portugal se encontrava nas trevas do medo, superstição e ignorância. Como ministro de Finanças, Salazar fez um “milagre” na economia portuguesa, tentando combater a inflação, e manter uma certa estabilidade económica. Porém, a maioria da população vivia nas aldeias da agricultura no “jardim à beira mar plantado”, como se costumava qualificar Portugal na época do regime salazarista. Para Salazar era conveniente manter o povo na ignorância para poder levar a cabo a política autoritária e ditatorial. Nas palavras do professor Medina (op.cit.) Salazar é caracterizado como “Duce o Führer lusitano” o que lhe dá um epíteto extremamente negativo e o que tenta explicar o carácter do seu regime. Nacionalista e sem grandes liberdades. Atribuem-se-lhe as seguintes características: “a hipocrisia  inata”, “materialista católico”, “fariseu apegado aos fetiches”, “dirigente político egocêntrico”. Como, então, se podia esperar que uma personagem assim pudesse guiar Portugal a um futuro melhor?

Porém, alimentavam-se as ideias do heroísmo dos portugueses nos séculos passados, os mitos do sebastianismo e da nova cruzada portuguesa, das “províncias do Ultramar” e foi repetida inúmeras vezes a célebre frase: “Portugal não é um país pequeno”. Na realidade, na perspectiva de Medina, o que existia na época era “um Portugal mesquinho, atrasado”, que sonhava com um “imobilismo doméstico”. Nesta realidade do baixo nível de alfabetização e escolarização, sem elites intelectuais e com a censura e polícia secreta, não era fácil viver e por isso muitos portugueses tiveram de emigrar ao Canadá, estados Unidos e França. Neste tempo o estereótipo que predominava  nas mentes da maioria das pessoas na aldeia era o de “uma casinha portuguesa com pão e vinho sobre a mesa”. Os alimentos principais neste verso não foram escolhidos aleatoriamente e pode ver-se logo a sua simbólica: além de Portugal ter bons vinhos e de estar orgulhoso do pão alentejano, o pão e vinho são os alimentos básicos para os pobres (muitas gerações dos portugueses comiam a “sopa do cavalo cansado” feita a base de pão e vinho antes de irem para a escola. Essa era a típica comida dos pobres e continha vinho para apaziguar o sentimento da fome nas crianças. O último significado do pão e vinho importante para os portugueses na altura era a possibilidade de estes produtos serem relacionados com o corpo e sangue de Cristo, dado o peso que a religião católica tinha em Portugal salazarista. Um homem que se horrorizava do progresso, que não tinha grande amor pela cultura, sendo “pobre, filho dos pobres” e não incentivava a educação e a cultura nos outros podia unicamente fazer com que Portugal se sinta “orgulhosamente só” no meio do seu isolamento e intolerância das inovações. Falsificou as eleições e dali vem a célebre frase de Humberto Delgado: “Obviamente, demito-o”, referindo-se ao que lhe ia acontecer a Salazar no caso de Delgado ter ganho as mencionadas eleições.

 Se António de Oliveira Salazar era de verdade o representante de tudo o negativo, atrasado e vergonhoso nas páginas da História de Portugal (a guerra colonial em África nomeadamente), como é possível que tenha ganho o concurso dos “Grandes Portugueses” transmitido pela RTP1 no ano 2007 com 41% dos votos?

Aqueles que o defendem não deixam de salientar o seu mérito no equilíbrio orçamental, na defesa da independência de Portugal e no facto de insistir na identidade nacional e nos valores cristãos. Dado que os resultados do concurso foram preocupantes, a RTP 1 mandou fazer uma sondagem de opinião entre as pessoas maiores de 15 anos de ambos os sexos, residentes no Portugal continental em que participaram 1154 inquiridos.

Os resultados dos inquéritos feitos por telefone discordam do programa oficial, porque entre a população mais jovem os primeiros três lugares foram distribuídos entre D. Afonso Henriques, Luís de Camões e o Infante D. Henrique, enquanto entre a população mais idosa há uma divisão entre Álvaro Cunhal e Salazar, e os “heróis do mar” ocupam os últimos lugares. A razão principal deste estado das coisas pode residir no facto de os mais velhos se lembrarem melhor ou de saberem mais sobre a situação real em Portugal naquela altura ou de eles serem mais conservadores e de concordarem com os valores que propunha (e impunha?) o regime de Salazar. O facto de os mais jovens terem optado pelos heróis nacionais é bom, porque sabem respeitar os seus valores mesmo estando integrados na Europa, e deste modo comprovam que a identidade nacional não exclui as ideias europeias e viceversa. As consequências do regime do Estado Novo em Portugal notam-se ainda porque algumas aldeias nem sequer têm bibliotecas, por outro lado, o aparelho administrativo português é muito lento, o que ajuda a criar uma imagem negativa, dos portugueses como burocratas e por vezes pouco competentes. E fica também uma outra imagem do povo português: a da eterna divisão entre os dois extremos: enter os máximos e os mais insignificantes, entre a vaidade e a tristeza.

 

 

 

 

A visão negativa do povo português representada na personagem do Zé Povinho

 

O último estereótipo que me chamou a atenção em Portugal e nos Portuguesismo(s) e a célebre figura do Zé Povinho, obra de Rafael Bordalo Pinheiro, que, ao longo dos anos se converteu num dos símbolos nacionais. Ao ouvirmos falar dele pela primeira vez, pensámos que seria uma figura simpática, que possuía aquela celebrada sabedoria do povo que simultaneamente faz rir e pensar. Porém, deparámo-nos com uma personagem rude, de ar muito rural, que responde a todos fazendo o manguito e pronunciando a frase que o tornou conhecido dentro e fora de Portugal: “Queres fiado? Toma.”

Surgiu em 1875 como uma criação de Rafael Bordalo Pinheiro como caricatura do homem do povo que se revolta conta a situação política no país, na época das lutas entre os absolutistas e os liberais. Para tal efeito chama a política “porca” e torce o nariz porque não consegue mudar as coisas. Por outro lado, ao longo dos anos tornou se uma auto-caricatura e um dos objectos muito vendidos nas lojas de recordações destinadas aos turistas estrangeiros. O nome desta personagem é muito sugestivo. Deriva do nome José, muito frequente e popular em Portugal e do substantivo “povo”. O diminutivo usado tem duplo significado, que pode interpretar-se como carinhoso e como irónico. Carinhoso porque o sufixo –inho é muito usado entre os portugueses para diminuir as coisas e dar-lhes um aspecto familiar, uma dimensão de aconchego e simpatia. Desta forma o autor se calhar desejava dizer que sente muito carinho pela figura que criou, ou também a sua intenção era facilitar a forma de os portugueses se identificarem com ele. O outro significado, mais pejorativo sugere a pouca importância e o carácter insignificante tanto do Zé, como do povo do qual provém. Na língua portuguesa existe uma expressão relacionada com o pequeno homem do povo com quem ninguém se importa seriamente, que é o “zé-ninguém” , que poderia ser parecida com o simbolismo do Zé Povinho e tem mais ou menos a mesma função e significado.

Para Medina ele é brutal, mal-educado, pessoa que pode suportar tudo, mas é sempre alheia aos problemas transcendentais e muito profundos. Propõe que esta figura deveria chamar-se simplesmente Povo. A forma em que o Zé Povinho responde em várias situações não é humor, é ironia, sátira e por vezes sarcasmo, que tal vez tenha a sua origem nas antigas cantigas de escárnio e maldizer, a forma portuguesa de criticar e denegrir a sua própria imagem e a imagem dos outros de uma maneira muito expressiva. Jorge Dias (op.cit) fala sobre a característica do “sentimento do ridículo” bem vista nos portugueses e presente no momento de ridiculizar e de se sentirem ridículos. Por sua vez, o sentido de ironia, por venenoso que pareça, pode ser um remédio muito útil para lidar com a frustração. Quem sabe ver os próprios defeitos poderá julgar dos defeitos dos outros e os portugueses tentam sabê-lo.

Não concordamos com que o Zé Povinho seja identificado como símbolo de um português comum, porque os portugueses não são um povo rude e mal-educado, mas também concordo com uma atitude crítica e satírica que esta figura demonstra ter.

 

Portugal visto com os olhos do Outro

 

Depois de vários anos de vivermos em Portugal tivemos a oportunidade de conhecer muitos portugueses de várias faixas etárias e de varias cidades, o que nos dá o direito de criar uma opinião sobre o povo português e a sua cultura..  Parece importante salientar também que, graças às viagens que fizemos e aos livros que lemos, músicas que ouvimos, pratos que comemos e outros elementos da cultura portuguesa que conhecemos, podemos criar uma imagem mais ou menos completa de Portugal. Sendo estrangeira em Portugal, é normal que seja vista como o Outro, embora nem sempre neutro e objectivo, já que neste período de tempo conseguimos criar contactos e relações profissionais e pessoais importantes, gostar do clima, de Lisboa, uma cidade bonita, luminosa e acolhedora, começámos a gostar da arquitectura manuelina, dos azulejos e da calçada portuguesa, do bacalhau, dos pastéis de nata e de muitas coisas únicas e específicas das que Portugal pode e deve sentir-se orgulhoso.

Ao fim do primeiro ano de estadia em Portugal considerei os portugueses um pouco reservados no contacto com as pessoas, mas também descobrimos que esta atitude é normal até se ganhar a confiança necessária nas pessoas. O que nos chamou a atenção logo nos primeiros dias foi o sistema extremamente complexo das formas de tratamento que varia desde Exmo.(a) Sr(a) Dr.(a) até “fofinho/a” e “queridinho/a.”

 Isto é, os portugueses sabem ter respeito pelas pessoas, mas ao mesmo tempo  sabem expressar-se carinhosamente. O uso do diminutivo –inho por vezes pode parecer humilde demais, sobretudo nas expressões como por exemplo “obrigadinho/a” e “com licencinha”, que tal vez tenham como objectivo a ideia de não incomodar ninguém (no segundo exemplo) ou  simplesmente um gesto de grande amabilidade (no primeiro). Até que ponto a língua portuguesa pode ser nacionalista ou discriminatória, veremos nos seguintes exemplos: a linguagem dos imigrantes africanos frequentemente é chamada “pretuguês” (o português dos pretos), as lojas chinesas na oralidade chamam-se lojas dos “chinocas”, mas o nacionalismo não passa da fala para a prática.

Notou-se também uma tendência entre os mais jovens de pensar que a Sérvia pertencia à União Soviética ou que ali se fala russo, ou que faz fronteira com a República Checa, e depois de saberem a verdade ou pedem desculpas, ou respondem num tom completamente normal e sem irritação: “Aquilo tudo é complicado” ou  “Vocês do Leste são todos a mesma coisa para nós”. Alguns têm na sua mente estereótipos sobre a Sérvia como um país muito frio e temos de lhes chamar a atenção para a diferença que existe entre a Sérvia e Sibéria. Não o sentimos como discriminação ou ofensa, mas sim como falta de informação, que de modo nenhum é justificável. Outros, no entanto, sabem muito sobre o nosso desporto, música e filmes, o que nos agrada bastante ouvir.

Apercebemo-nos do grande peso que futebol tem neste país. São frequentes as brigas entre os adeptos do Benfica, Sporting e o futebol clube do Porto e até vi mos cachecóis desportivos em que estava escrito: “Graças a Deus, não sou Tripeiro” aludindo desta forma ao nome que se atribui aos habitantes do Porto e aos adeptos do respectivo clube. Até alguns dos jogadores famosos foram propostos na lista dos Grandes Portugueses, como se tivessem feito uma grande descoberta ou como se tivessem contribuído em algo para o bem da humanidade e obviamente discordamos desta atitude.

 Compreendemos que em Portugal o futebol seja uma paixão nacional, um desporto popular e que merece ter um lugar na televisão ou nos outros meios de comunicação, mas não deve ter tanto peso, nem se deve falar do Figo, Eusébio e outros como se fossem seres extraordinários e com poderes sobrenaturais. Todos os portugueses pelos que fomos convidados  para a  sua casa  foram extremamente amáveis e respeitosos, sentimos a sua hospitalidade e vontade de conhecer outras culturas e línguas.

No que se refere à cidade de Lisboa, achei-a muito bela e, curiosamente, muito parecida com Belgrado (os engraxadores dos sapatos, a juventude nos cafés, as castanhas que se vendem no centro da cidade, o rio, a roupa pendurada nas janelas, as pequenas lojas privadas perto de casa nas quais podemos conversar com o vendedor como com o vizinho, muitos jardins bonitos...). Notou-se também uma característica dos portugueses que nos impressionou positivamente: pensam muito nos outros. Nomeadamente, se ganhassem o Euromilhões, os portugueses seriam capazes de distribuir o prémio em três partes: uma para a família, outra para alguma instituição de caridade e a última para eles. Admirámos a capacidade de adaptação dos portugueses, a capacidade de se “desenrascarem” e de resolverem os problemas na última da hora, como o fazemos nós também. Tivemos de lidar com a administração pública, de reclamar por determinados assuntos, de esperar nas filas, mas também o prazer de visitar monumentos bem conservados, de apreciar a natureza, de ler bons livros e de encontrar pessoas com quem comentá-los. 

Tivemos a oportunidade também de ouvir as opiniões dos portugueses sobre si próprios que variam entre dois extremos, o mais positivo e o mais negativo no mundo. Apesar de todas as diferenças, Portugal é um país com grande cultura que vale a pena conhecer e estudar.

Conclusões

Nas páginas deste trabalho tentámos abordar vários assuntos, desde a identidade e diferença, até ao estereótipo e preconceito cultural. Devido ao tema que se limitava apenas à visão de Portugal no livro Portuguesismo(s)  do historiador João Medina não nos concentrámos na análise do estilo manuelino, do azulejo, do vinho, do bacalhau, dos outros tipos de música, além do fado, na popularidade das telenovelas etc., pretendemos  por vezes e defender Portugal e mostrar uma perspectiva diferente da do autor da obra em questão. Para a elaboração deste trabalho usámos como fontes principais  basicamente dois livros, o de Medina (2006) e o de Jorge Dias Dias (1950), ambas estereotipadas e exageradas até certo ponto, sendo o primeiro demasiado negativista e o segundo demasiado apologético em relação a determinados aspectos da cultura portuguesa e do carácter do seu povo. Para dar uma opinião mais equilibrada, optámos por inserir neste trabalho uma visão um pouco pessoal de Portugal e dos Portugueses, que está em algum lado entre os dois extremos, o que a nosso precisamente aquilo que faz falta para os portugueses e todos os povos terem uma visão racional e objectiva da sua identidade e cultura. Arriscámos com isso retirar um pouco do rigor académico a esse trabalho, tentando “fazer justiça” aos aspectos da cultura portuguesa que na nossa opinião merecem ser salientados e criticar alguns outros que são menos aceitáveis Só assim poder-se-ão aceitar e respeitar os outros e as suas diferenças porque quem não valoriza a sua cultura, como vai ser capaz de ver e reconhecer aquilo que é belo e valioso em outras culturas? Sem respeito recíproco, não há multiculturalismo possível.

 

 

Bibliografia:

a)     bibliografia primária:

MEDINA, João, (2006) Portuguesismo(s), acerca de uma identidade nacional, Faculdade de Letras da universidade de Lisboa

b)     livros de literatura:

COUTO,  Mia (2006) O outro pé da sereia, Caminho, Lisbo

COUTO, Mia (2005) cada homem é uma raça, Caminho, Lisboa

CHISIANE, Paulina (2002), Niketche ,uma história de Poligamia, Caminho, Lisboa

MAALOUF, Amin, (1998) As identidades assassinas, Bertrand Editora, Lisboa

MAALOUF, Amin (1986) Leão o Africano, Bertrand Editora, Lisboa

c)     estudos:

BETHENCOURT, Francisco, RAMADA CURTO, Diogo (org.) (1991) A Memória da Nação, Livraria Sá de Costa Editora, Lisboa

CAMPOS MATOS, Sérgio (1990) História, Mitologia, Imaginário nacional , Livros Horizonte, Lisboa

DIAS, Jorge, (1950), Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa

GUILES, Judy, MIDDLETON, Tim (2001) Studying Culture, Blackwell Publishers, Massachussets

JUNG, Carl, G.  (1979), El hombre y sus símbolos, Aguilar, Madrid

MARINHO DOS SANTOS, João (1994), Estudos sobre os Descobrimentos e a Expansão Portuguesa, Faculdade de letras da universidade de Coimbra

PADGEN, Anthony (2001), Povos e Impérios, Círculo de leitores, Lisboa

SEMPRINI, Andrea (1999),Multiculturalismo, EDUSC, Editora da Universidade do Sagrado Coração, São Paulo

OLIVEIRA GONÇALVES E, PETRONILHA, B, et.al.(2001), O jogo das Diferenças, O multiculturalismo e seus contextos Autêntica,  Belo Horizonte

d)     artigos das revistas:

CSRVALHO, Alberto (1990) “ A Singularidade de uma Cultura” in:  Estudos Portugueses, Homenagem a António José Saraiva, Instituto de Cultura e língua portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp.15-24

LAGOS, Mário F.“A Eficácia da Palavra” in: Povos e Culturas de Expansão Portuguesa, Nº 10, (2005-2006) Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, pp.177-205

e)     páginas web:

http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm

http://www.vidaslusofonas.pt/ze_povinho.htm

http://www.pt.wikipedia.org/wiki/.htm

http://www.rtp.pt

 



[1] Embora as formas e práticas culturais que são produzidas numa sociedade sejam modeladas pelas estruturas dessa sociedade, elas também são modeladas pelas subjectividades de mulheres e homens individuais nos nossos papéis de actores sociais.(Nota da Autora)

[2] Embora as formas e práticas culturais que são produzidas numa sociedade sejam modeladas pelas estruturas dessa sociedade, elas também são modeladas pelas subjectividades de mulheres e homens individuais nos nossos papéis de actores sociais. (Nota da Autora)

[3] De igual modo as identidades que os indivíduos adoptam de forma a definirem-se são produzidas, pelo menos em parte dos contextos   culturais e sociais com os quais nos encontramos e dos quais traçamos algumas ideias sobre “a natureza”, “ a individualidade “ e “a personalidade”. (N. da ª)

[4] A identidade e a diferença tratam da inclusão e da exclusão. (N. da. ª)

[5] Uma palavra ou imagem é simbólica quando representa algo mais que o seu significado imediato e óbvio. (N. da A. )

[6] A missão dos símbolos religiosos é dar sentido à vida do homem. (n. da A. )