OS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA VEDAÇÃO DA POSSIBILIDADE DE ESTERILIZAÇÃO DO CURATELADO: OS LIMITES DO CURADOR EM FACE DA INTEGRIDADE FÍSICA DO INCAPAZ[1]

 

Fernando Henrique Cunha Sousa[2]

João Vitor Fogolin[3]

Anna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques[4]

 

RESUMO:

 

Trata-se da pesquisa bibliográfica sobre o instituto da curatela e os direitos da personalidade presentes no ordenamento jurídico brasileiro na proteção dos incapazes, de sobremaneira aos deficientes mentais. Os direitos da personalidade são inalienáveis, portanto, os julgadores devem pautar suas decisões nos parâmetros legais da proteção da dignidade humana. Por isso, o instituto da curatela, na pessoa do curador, não está acima dos direitos do incapaz, sendo a esterilização configura uma afronta ao direito à integridade física do curatelado. 

Palavras – chave: Curatela – Direitos da Personalidade – Deficientes mentais – Dignidade Humana – Esterilização.

 

 

INTRODUÇÃO

           

                   O presente artigo trata de forma breve, sucinta e direcionada do instituto da curatela e os direitos da personalidade tratados no ordenamento jurídico brasileiro inerente ao incapaz com deficiência mental. O trabalho tratará acerca dos poderes atribuídos ao curador, discutindo a possibilidade deste, no caso proposto, permitir que haja uma esterilização do curatelado que está sob seu poder, tendo em vista os problemas enfrentados pelo mesmo em virtude de sua incapacidade de discernimento.

                   Os direitos individuais estão amparados no ordenamento jurídico como parâmetro para elaboração de todas as leis, assim como na guia das decisões dos magistrados, pois todos os direitos da personalidade agregam igual status no rol de direitos a serem protegidos. Dessa forma, a vida como a proteção ao corpo estão no mesmo patamar de proteção, sendo vedada qualquer decisão que desfavoreça qualquer um desses direitos.

                   O novo Código não faz distinção quanto à capacidade de adquirir direitos, logo, todos são igualmente capazes de direitos e obrigações, sendo indiferente quanto a estado físico e mental. Para isso, o legislador criou especial proteção àqueles que têm limitações quando ao exercício de direitos, sendo uma pessoa capaz para realizar tais atos em nome daquele impossibilitado de fazê-lo.

                   Por fim, o instituto da curatela, como meio de proteção àqueles que estão impossibilitados dos atos da vida civil, encontra limites, pois o curador não tem totais poderes sobre o curatelado. Por essa razão, a esterilização do incapaz demonstra essa afronta aos princípios constitucionais, sobretudo, da dignidade humana, a qual é relativizada em face de transtornos de ordem pessoal do curador.

                  

2 DIREITOS DA PERSONALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

                  

                   O ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo incorporou como parâmetros na elaboração das normas os direitos da personalidade, o que significa que toda norma elaborada deve passar pelo crivo dos direitos individuais inerentes a pessoa humana. São direitos inalienáveis, o qual as decisões reiteradas têm o papel de protegê-las, pois “os direitos da personalidade, cuja existência tem sido proclamada pelo direito natural, destacando-se, dentre outros, o direito à vida, à liberdade, ao nome, ao próprio corpo, à imagem e à honra” (GONÇALVES, 2010, p.183)

                   No conceito de personalidade jurídica em nosso ordenamento, é visível a objetividade da norma sobre os direitos fundamentais, o qual é obrigatório e passível de sanção o descumprimento da mesma. Nessa linha de raciocínio, o Estado não abrirá mão do que está pressuposto, pois:

A vida humana, p. ex., é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar. A vida não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito a uma pessoa sobre si mesma. Na verdade, o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos. Logo, os direitos da personalidade são direitos subjetivos “excludendi alios”, ou seja, direitos de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo um bem inato, valendo-se da ação judicial. (grifo do autor) (DINIZ, 2009, p.7)

            

       Valendo-se desse conceito, é inegável a efetiva proteção aos direitos da personalidade dada pela lei, seja ele qual for. Por isso, a tutela de tais direitos não pode ser relativizada por ordem judicial, mesmo nos casos extremos, como a esterilização do corpo de outrem por motivos de deficiência mental. Logo, mesmo sendo um incapaz na forma da lei e pertencendo a um Estado Democrático de Direito, ainda é portador da dignidade e sujeito de direitos e obrigações, pois “os direitos da personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis, segundo prevê o art. 11 do Código Civil de 2002.” (TARTUCE, 2009, p.1)

               Nesse diapasão, todos os direitos objetivos e subjetivos só existem em função da vida e o direito à integridade física tem o mesmo alvitre. A Constituição em seu art. 1º no inciso III descreve “a dignidade da pessoa humana.” Esse conceito que pode adquirir diversos significados é conceituado por José Afonso da Silva como: “dignidade deriva do latim dignitas (virtude, honra, consideração) em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao próprio respeito em que é tida.” (SILVA, 2000, p.267)

                   Portanto, o valor maior deve ser preservado em qualquer circunstância, não podendo ser lesada pelo sensacionalismo ou qualquer atitude contrária a sua consideração. O Judiciário deve-se pautar suas decisões na lógica dos valores próprios do ordenamento jurídico, evitando que fatores moralistas ou as falhas do sistema estatal venham influenciar tais decisões. Assim como diz na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.” (DUDH, 2000, p.1)

3  A CAPACIDADE NO DIREITO BRASILEIRO

                  

                   A questão da capacidade no direito civil brasileira é expressa no art. 1º do novo Código, o qual: “toda pessoa é capaz de direitos e deveres”. Com esse conceito, todos são igualmente capazes de adquirir direitos sem nenhum óbice, basta nascer com vida que os direitos são-lhes estendidos, inclusive aos “privados de discernimento e aos infantes em geral” (GONÇALVES, 2010, p.95)

                   O atual Código não faz distinção das características intrínsecas das pessoas para aquisição de direitos. Há proteção especial àqueles que não podem exercer seu direito de fato devido às limitações previstas em lei, como: maioridade, saúde, desenvolvimento mental, etc. Nesse caso, o legislador entendeu que estas pessoas por não poderem exercer o direito de ação, devem estar amparadas por outra pessoa capaz que as represente ou assista. Quanto a isso, no que tange a incapacidade, “é a restrição legal ao exercício dos atos da vida civil, devendo ser sempre encarada estritamente, considerando-se o princípio de que “a capacidade é a regra e a incapacidade a exceção” ”(grifo do autor) (DINIZ, 2009, p.154)

                   No que concerne a incapacidade absoluta, especificamente aos que possuem deficiência mental, fora empregada de forma genérica pelo legislador as características que se enquadram na privação para o exercício da vida civil:

Todos os casos de insanidade mental, provocada por doença ou enfermidade mental congênita ou adquirida, como a oligofrenia e a esquizofrenia, por exemplo, bem como por deficiência mental decorrente de distúrbio psíquicos, desde que em grau suficiente para acarretar a privação do necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil. (GONÇALVES, 2010, p.113)

                  

                   Por isso, o ordenamento faz a previsão legal nos casos de deficiência mental a qual há impossibilidade do exercício dos direitos, o qual este serão feitos por uma pessoa capaz. Contudo, o incapaz não perde os seus direitos inerentes à própria personalidade devido a sua incapacidade, pelo contrário, o Estado protege de especial forma para que seja garantida sua cidadania frente as suas limitações inerentes.

 

4  DA CURATELA

O caso em debate giro em torno de um indivíduo considerado incapaz, por não possuir discernimento sobre os seus atos; alheio à realidade que a cerca. Por isso, houve a necessidade de se positivar normas e procedimentos que tenham como objetivo oferecer uma tutela diferenciada a esses tipos de pessoas, justamente para garantir um desenvolvimento digno frente suas limitações.

Para isso, o legislador criou o instituto da Curatela, que é “o encargo público, por lei, a alguém para reger e defender a pessoa e administrar os bens de maiores, que, por si sós, não estão em condições de fazê-lo, em razão de enfermidade ou deficiência mental” (DINIZ, 2010, p.662).

Segundo esta abalizada definição de Maria Helena Diniz, pode-se aferir que esta incumbência será dada a alguém, o curador, que ficará encarregado de proteger a pessoa física do incapaz contra atos que poderão prejudicá-lo, assim como ficará encarregado de gerenciar seus bens. É dentro destas premissas que o imbróglio em cotejo está alicerçado, posto que haja o encargo legal por parte do curador em reger os atos do seu curatelado.

Não obstante o escorço teórico já mencionado é imprescindível uma ponderação destes conceitos para que se construa uma argumentação no sentido de se debater a área de atuação do curador na esfera individual do curatelado, isto é, da limitação do poder de atuação do mesmo em face dos princípios constitucionais que protegem a dignidade da pessoa humana.

Por isso, a castração almejada pelo curador com o fito de “proteger” o curatelado não envolve apenas o seu alvedrio de decidir o rumo no qual seu curatelado deverá seguir, pois há uma gama de valores envolvidos nisso, além dos interesses desta, que apesar de ser considerada incapaz, têm resguardada seus direitos no ordenamento jurídico pátrio, conforme se verá doravante.

 

4.1  Dos limites da curatela

                  

                   O Código Civil, nos arts. 1.767 e 1768, é cristalino quanto à caracterização daqueles que estão sujeitos à curatela, assim como quem tem a legitimidade para promover a interdição do curatelado. Importante, agora, salientar para o que atenta o art. 1.772 deste Código: Pronunciada a interdição das pessoas a que se referem os incisos III e IV do art. 1.767, o juiz assinará, segundo o estado ou o desenvolvimento mental do interdito, os limites da curatela, que poderão circunscrever-se às restrições constantes do art. 1.782”

Isto posto, percebe-se que, no momento da interdição, o juiz deverá estabelecer os limites da curatela, o que evidencia uma clara preocupação do legislador em preservar a intimidade do curatelado, já que este deve ser beneficiado com esta medida, e não como uma “ponte” para o benefício de outrem.

Imperioso frisar, também, sem prejuízo o dispositivo do art. 1.772, que os poderes atribuídos aos curadores não são absolutos, existindo limites de ordem legal e moral (ABREU, 2009, p.1). Por isso, mesmo sem previsão de limites impostos pelo juiz, não cabe ao curador o poder total sobre o curatelado. O incômodo causado pela recorrente gravidez da curatelada do caso em debate não dá ensejo à qualquer intervenção do curador à seu livre arbítrio, mesmo com o discernimento daquela afetado (ABREU, 2009, p.1)

O critério do discernimento é essencial para situações patrimoniais, porém não é decisivo quando se trata de um valor indisponível como a personalidade humana. Não é plausível aceitar que, baseado apenas na saúde mental de uma pessoa, se pretenda intervir em seus direitos fundamentais, nas suas liberdades individuais, privacidade, intimidade, honra, imagem, entre tantos aspectos da sua personalidade.Importante consignar também que as limitações impostas ao portador de transtornos mentais, sobretudo as incidentes nas situações extrapatrimoniais (existenciais), dado o seu reconhecimento prioritário no ordenamento jurídico, só se justificam no interesse do interdito, sob pena de desrespeito à sua dignidade. O só fato de sofrer um transtorno mental não pode ser identificado como imperioso para a restrição de sua autonomia e a desconsideração de sua vontade. (ABREU, 2009, p.1)

Em verdade, permitir que o curador castre a pessoa sob a qual este exerce proteção seria vilipendiar sumariamente sua honra e a livre disposição de seu corpo. Mesmo sob a frágil alegação de que este ato evitaria possíveis transtornos oriundos de gravidez indesejadas, não é do dever do curador decidir em situações nos quais este não foi demandado.

Nesse sentido, os Tribunais têm decido no sentido de negar provimento aos pleitos que tem como objeto a invasão da intimidade do curatelado pelo curador, conforme pode se ver pelos julgados a seguir:

APELAÇAO CÍVEL. PEDIDO PARA LAQUEADURA TUBÁRIA DE MAIOR INCAPAZ. IMPOSSIBILIDADE. A deficiente mental não tem culpa de sua doença. Para que haja esterilização com a impossibilidade de procriação, deve haver o consentimento expresso da pessoa, e a curatelada não dispõe desse consentimento, uma vez que é a sua curadora que pretende esterilizá-la, para que nunca mais posse ter filhos. Estes, se um dia concebidos, poderão ser sadios, e não insanos como a mãe. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº 70008448276, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 28/10/2004

ESTERILIZAÇAO DE INCAPAZ. IMPOSSIBILIDADE. LIMITES DOS PODERES CONFERIDOS AOS CURADORES. DESPROPORCIONALIDADE DA MEDIDA PRETENDIDA. INEXISTÊNCIA DE NORMA JURÍDICA COM DENSIDADE NORMATIVA SUFICIENTE PARA REGULAR CASO CONCRETO. Há limitações de ordem legal e moral ao exercício da curatela. Dentre os poderes conferidos pelo ordenamento jurídico não se encontra a disposição sobre a integridade física e moral da interdita, pelo que inviável a postulação de esterilização de incapaz pelos curadores. O procedimento cirúrgico de esterilização da curatelada mostra-se desproporcional no caso concreto, eis que há medidas que alcançam resultado igual ou semelhante e que consubstanciam restrição menos gravosa ao direito à liberdade, direitos da personalidade e à dignidade da pessoa humana. Inexiste norma jurídica com densidade normativa suficiente que autorize a esterilização de absolutamente incapazes, vez que o art. 10, , da Lei nº 9.263/96 ainda carece de regulamentação. Negaram provimento. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70010573723, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 30/03/2005).

É cediço, na jurisprudência pátria, a defesa dos interesses do curatelado e a proteção deste contra quaisquer atos que ponham em risco sua autonomia e direito da personalidade. Portanto, mesmo sendo necessário sopesarmos as nuances aqui destacadas ao caso concreto, no vertente caso, em respeito à dignidade da curatelada e a possibilidade de contornar o problema através de outras medidas menos invasivas, além da limitação dos poderes conferidos ao curador, não deve prosperar o pedido de castração do ora caso.

CONCLUSÃO

 

É emblemático que as pessoas que possuem alguma deficiência mental, a qual interfere diretamente no seu discernimento acerca da realidade em que vive, necessitam de um cuidado diferenciado por parte do legislador, tanto que é foi positivado o instituto da curatela no nosso ordenamento jurídico visando proteger os interesses deste.

No entanto, esta tutela especial conferida aos incapazes tem a finalidade de conferir a estes uma igualdade de tratamento em face de suas limitações. No mais, os direitos inerentes a todos os indivíduos, consagrados constitucionalmente, permanecem os mesmos, quais sejam, o direito da personalidade e o da dignidade da pessoa humana. Por isso, no caso em discussão, é imprescindível o respeito a estes princípios para que a atuação do curador em esterilizar seu curatelado seja delimitada.

Visto isso, não é concebível uma que seja realizado um procedimento invasivo no curatelado sem seu consentimento. O curador deverá se restringir à proteção da pessoa em seu poder sem adentrar em sua intimidade, sob pena de ir de encontro com seu dever em sede de curatela, que é proteger o incapaz e gerenciar suas atividades, quando for requerido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ABREU, Célia Barbosa. Capacidade Civil, Discernimento e Dignidade do Portador de Transtorno Mental. Editora Magister - Porto Alegre - RS. Publicado em: 04 nov. 2009. Disponível em: <http://www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=588>. Acesso em: 02 nov. 2011.

BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70010573723.  Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6047964/apelacao-civel-ac-1261-ms-2007001261-1-tjms/inteiro-teor> Acesso em: 02 de nov. 2011

BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70008448276. Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6047964/apelacao-civel-ac-1261-ms-2007001261-1-tjms/inteiro-teor> Acesso em: 02 nov. 2011

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Rio de Janeiro: UNIC, dez. 2000.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 26. ed. reformulada, São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1.

___________. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

TARTUCE, Flávio. Direitos da Personalidade no Novo Código Civil. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/. Acesso em: 05 de nov. 2011.



[1] Paper apresentado a disciplina de Direito de Família da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Aluno do 6° período de Direito noturno da UNDB.

[3] Aluno do 6° período de Direito noturno da UNDB.

[4] Professora, mestra, orientadora.