Os desafios na ampliação do acesso à justiça no Brasil: qual a sua relação com o a concepção de cidadania brasileira e com o histórico movimento do Direito Alternativo

 

 

 

Rafaela Nascimento Dutra*

                                                                                                                                                      

Sumário: Introdução;1. Acidadania no Brasil; 2. O déficit democrático e os entraves ao acesso à justiça; 3. O acesso à justiça no Brasil e a sua relação com o histórico movimento do Direito Alternativo; Considerações Finais; Referências.

RESUMO

 

 

 

O artigo visa analisar diferentes concepções de cidadania com base na cultura brasileira e no sistema democrático de exercício do poder, estabelecendo, de forma dialética, uma relação com as dificuldades de acesso à justiça e com o surgimento do Movimento do Direito Alternativo. 

Palavras-chave: cidadania, acesso à justiça, Direito Alternativo.

*Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Ceuma

E-mail: [email protected]

 

Introdução

Esse trabalho aborda o direito através de dois aspectos principais: como o instrumento utilizado pelo Estado para a promoção da cidadania e do bem comum, e o direito como fato social, que surge nos movimentos de contestação organizados pela sociedade civil. Assim, a ideia do direito como um “devir” (sempre inacabado) é baseada nas influências que ele sofre da sociedade, que se encontra em constantes transformações sociais, políticas e econômicas.

A concepção monista de que o poder estatal é a única fonte do direito na sociedade é substituída pela concepção pluralista, que surge pela insuficiência desse paradigma positivista, pela liberdade de manifestação popular derivada do sistema democrático e também pelo fortalecimento de ordenamentos paralelos ao poder formal. Uma das causas de aumento do acesso à justiça é, portanto, uma consequência dessas várias pressões exercidas pelos mais diversos setores da sociedade.

Ao mesmo tempo, a cidadania sob o prisma da sociologia do convite, tema amplamente discutido por Roberto Damatta, pode em muitas situações prejudicar a isonomia e o tratamento igualitário conferido aos cidadãos brasileiros e que encontra previsão na Constituição Federal. Há diversas possibilidades em que o “jeitinho brasileiro” no acesso à justiça é capaz de, em algumas situações, favorecer aqueles que são mais “bem relacionados” ou que possuem um maior poder financeiro.

O “Direito Alternativo no Brasil” despontou na década de 90 como um movimento que reagiu às arbitrariedades promovidas no período da ditadura militar, admitindo que a sociedade como um todo e os grupos sociais organizados possuem um poder legítimo e precisam ter seus direitos reconhecidos. A ampliação do acesso à justiça seria apenas um dos pontos a serem implementados, considerando que os juristas, nesse contexto, teriam a obrigação de assumir uma postura equilibrada e consciente da sua realidade ao invés de, simplesmente, aceitar a função de mero aplicador da lei posta pelo Estado.

  1. A cidadania no Brasil

 

A cidadania pode ser analisada através de vários aspectos, dentre eles o social, moral, político e jurídico. No entanto, de uma forma geral, pode ser conceituado como o papel desempenhado pelo indivíduo em uma sociedade e regulamentado por um ordenamento jurídico imposto pelo poder estatal com o consentimento desse indivíduo (teses contratualistas). Ou seja, há uma relação importante entre a cidadania e o federalismo porque o Estado, ao adotar o federalismo como sistema de organização territorial do poder, utiliza-se da democracia para garantir a participação do povo e a divisão igualitária do poder político entre o governo central e as subunidades territoriais.

Nesse sentido, a adoção do sistema federalista contribui para a adequação e o respeito à intensa heterogeneidade territorial de um país ao buscar constantemente o equilíbrio entre as forças políticas centralizadoras (centrípetas) e as forças políticas descentralizadoras (centrífugas). Em um país como o Brasil, por exemplo, seria enorme a possibilidade de surgirem dificuldades decorrentes de um sistema unitário (concentração extrema do poder) por causa da grande dimensão geográfica e do contexto de pluralidades culturais.

A soberania popular, caracterizada pelas eleições livres, periódicas e competitivas é um importante elemento característico da democracia representativa, além da alternância e do exercício temporário do poder, das alternativas de escolha entre partidos políticos, da presença de associações e grupos de cidadãos e da livre manifestação da opinião pública. No entanto, a representação está sempre sujeita aos vícios, conforme a tese da “lei de ferro da oligarquia” defendida por Michels apud Zippelius:

A maioria das pessoas encontrar-se-ia sempre na impossibilidade, talvez até incapacidade, de governar-se por si própria. Mesmo se o descontentamento das massas lograsse um dia roubar à classe dominante o seu poder, dever-se-ia, porém, encontrar necessariamente, no seio das próprias massas, uma nova minoria organizada que viria a assumir o papel de uma classe dominante. A maioria das pessoas, condenada à minoria perpétua por uma fatalidade cruel da história, ver-se-ia forçada a suportar o domínio de uma pequena minoria vinda do seu próprio seio e a servir apenas de pedestal para a grandeza da oligarquia [...] Empregando todas as suas forças, as massas limitam-se a mudar de dono.[1]

O domínio de uma determinada minoria organizada parece consequência inevitável das sociedades mais complexas em virtude da impossibilidade da participação de todos os seus cidadãos nas funções de maior relevância política. Este modelo, por sua vez, resulta em uma comprovação de que, na prática, a isonomia – igualdade de todos os cidadãos perante a lei e a sociedade - não existe. Conforme Damatta, “basta realizar uma sociologia do convite para ver que, ao lado da ideologia do mérito, ela acaba por permitir a discriminação, recriando o privilégio e a hierarquia”.[2]

O convite, esclarece Damatta, “ocorre em instituições que elegendo e convidando seus membros, podem hierarquizar e discriminar a totalidade social, sem ferir frontalmente a ideologia igualitária e a idéia de cidadania como algo nivelador”[3], ou seja, uma espécie de segregação claramente perceptível, mas bastante sutil.

Outro aspecto relevante para a análise da cidadania no Brasil está relacionado à confusão entre o público e o privado, que possui uma ligação intrínseca com o dilema “indivíduo” e “relação”. Assim, não é possível admitir que a cidadania englobe todos os indivíduos de uma nação ao constatar que um determinado servidor público faça uso do seu cargo para benefício dos que participam do seu grupo relacional. Na “cidadania relativa” ou “às avessas” a delimitação de direitos e deveres impostos pelo Estado a todos os cidadãos não são efetivamente aplicados à maioria.

Decerto é fundamental analisar o contexto histórico do Brasil, que sempre manteve as características do coronelismo, do patrimonialismo, da cultura do “jeitinho brasileiro”, dos favores, do “bacharelismo” e do “liberalismo às avessas”, situações em que a ordem pública é utilizada como uma parte do patrimônio particular do cidadão para atender interesses específicos. Desde o período colonial, muitas estruturas judiciais (administração burocrática) foram criadas com vistas à manutenção do cenário de privilégios da elite dominante, ou seja, ao favorecimento dos interesses de uma minoria.

Ao mesmo tempo, é preciso admitir que ao lado do direito oficial coexistem ordenamentos paralelos, com demandas particulares e que se empenham para serem reconhecidos. A mobilização desses grupos e setores acontece em contextos específicos e por diversas razões, inclusive por questionarem a legitimidade do sistema estatal, a exemplo das comunidades localizadas em periferias e favelas, das comunidades quilombolas, das comunidades indígenas e do movimento sindical. Em virtude dos princípios da democracia, da pressão social e da identificação da legitimidade dessas demandas, o Estado é obrigado a aceitar e a conceder especial tratamento a esses novos sujeitos sociais.

A linguagem a ser adotada nessa relação com as massas precisa ser cuidadosamente planejada e, por esse motivo, os líderes buscam tirar proveito da preponderância, na cidadania, de um sentimento individual de fazer parte de um todo (nação) e de comungar de várias ideologias, angústias e esperanças. Os símbolos e estereótipos surgem com base nesse raciocínio, e precisam estar em sintonia com os elementos pertencentes a uma identidade coletiva para que sejam realmente aceitos, como a idéia do brasileiro malandro e a idealização do Brasil como o país do carnaval, das mulatas e do futebol. A criação de sinais universais de leitura mais fácil contribui para a legitimação dos modelos impostos e, de acordo com Carvalho:

A manipulação do imaginário social é particularmente importante nos momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas. Não foi por acaso que a Revolução Francesa, em suas várias fases, tornou-se um exemplo clássico de tentativa de manipular os sentimentos coletivos no esforce de criar um novo sistema político, uma nova sociedade, um homem novo. Mirabeau disse-o com clareza: não basta mostrar a verdade, é necessário fazer com que o povo a ame, é necessário apoderar-se da imaginação do povo. Para a Revolução, educação pública significava acima de tudo isto: formar almas.[4]

Recentemente, o país reelegeu a presidente Dilma Rousseff após uma disputa de segundo turno acirrada com o candidato Aécio Neves. Parece claro que estiveram presentes nessa campanha muitos desses símbolos de “manifestação do imaginário social”: a ampla divulgação da imagem de Dilma Rousseff como “coração valente”, aquela que lutou contra a ditadura e que hoje é a protetora da classe de baixa renda através dos programas assistencialistas, é apenas um dos exemplos da utilização de tal artifício.

Não obstante todas essas discussões sobre as particularidades que envolvem o conceito de cidadania é preciso ressaltar que esse é um princípio fundamental assegurado pela Constituição Federal/88 em seu art.1º:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-seem Estado Democráticode Direito e tem como fundamentos:

I-              a soberania;

II-            a cidadania;

III-         a dignidade da pessoa humana;

IV-          os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V-            o pluralismo político.

Parágrafo Único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A possibilidade de diversificações das necessidades da cidadania em uma sociedade dinâmica, ou simplesmente da efetiva aplicação dos direitos já conquistados resultam em reivindicações formalizadas ou não, que se traduzem no acesso à justiça, assunto a ser tratado a seguir.

  1. O déficit democrático e os entraves ao acesso à justiça

A tentativa de valorização da cidadania e da constatação de um aumento nas demandas ao judiciário deve ser entendida no contexto do surgimento da sociologia do direito no Brasil, nos anos 80, que “coincidentemente ou não, teve início com as primeiras pesquisas sobre acesso à justiça”[5]

No contexto social norte-americano desse mesmo período histórico, em que vigorava a ideologia do welfare state, a sequencia da natureza dos direitos conquistados apresentava-se da seguinte maneira: o reconhecimento dos direitos civis nos séculos XVII e XVIII (as liberdades individuais), dos direitos políticos no século XIX (igualdade política) e dos direitos sociais no século XX (igualdade social). Ao estabelecer uma comparação com o Brasil, percebe-se que até esse momento os direitos civis básicos ainda não estavam consolidados, mesmo porque não haveria sentido discutir justiça e nem mesmo acesso à justiça em um país dominado por uma ditadura que suprimiu completamente os direitos dos seus cidadãos.

A sequência, no caso brasileiro foi invertida porque os direitos sociais foram reconhecidos pelo Estado ao mesmo tempo em que os direitos civis e políticos não eram garantidos e de acordo com Junqueira:

Os motivos para o despertar do interesse brasileiro no início dos anos 80 para essa temática, portanto, devem ser procurados não neste movimento internacional de ampliação do acesso à justiça, mas sim internamente, no processo político e social de abertura política e, em particular, na emergência do movimento social que então se inicia. Aqui estas discussões são provocadas não pela crise do Estado do bem-estar social, como acontecia nos países centrais, mas sim pela exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde. [6]

O início da implantação de uma democracia efetiva foi determinante para que, no final dos anos 70 no Brasil, surgissem as revoluções decorrentes de várias demandas reprimidas e de questionamentos sobre o papel do indivíduo na sociedade. Segundo Dagnino[7], “a emergência da nova noção de cidadania passa pela luta por direitos - tanto o direito à igualdade como o direto à diferença – e pela construção da democracia através da experiência concreta e cumulativa, especialmente após a crise do socialismo real”.

Nesse momento, o tema do pluralismo jurídico se destaca em função do ainda frágil sistema democrático e da necessidade de identificação dos procedimentos estatais e não-estatais de resolução de conflitos, entretanto o tema “acesso à justiça” ainda não é citado.

O trabalho pioneiro do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, realizado no início dos anos 70, abordou o pluralismo ao expor as práticas jurídicas não oficiais aplicadas em uma favela do Rio de Janeiro, denominada de Pasárgada (nome fictício) e, como afirma Junqueira:

Apesar da pesquisa não estar preocupada diretamente com os canais de acesso à justiça estatal, o direito de Pasárgada atesta não apenas a produção de uma nova ordem jurídica paralela ao direito oficial (direito do asfalto), mas a impossibilidade de os habitantes daquela comunidade, percebida como ilegal pelo direito oficial, buscarem soluções para seus conflitos no ordenamento jurídico e nas instâncias judiciais. Em outros termos, a comunidade de Pasárgada remetia à associação de moradores a resolução de conflitos individuais por estar, de fato, impossibilitada de ter acesso à justiça estatal.

A opção pela busca de alternativas informais e que podem, inclusive, contrariar as regras estabelecidas pelo sistema estatal, tornou-se preferencial nesse período de surgimento das novas demandas, mas ainda hoje é bastante utilizada. Os principais entraves relacionados à maior parte da população e ao acesso ao judiciário estão relacionados à burocracia, à desinformação e à idéia de que o poder judiciário pertence somente aos ricos.

O Estado, admitindo que o processo, geralmente longo e caro, poderia adquirir maior agilidade e eficiência através de alguns métodos de ruptura com o formalismo e através da diminuição dos custos, instituiu algumas opções de conciliação a qualquer tempo, mediação e arbitragem na área do direito privado, como os meios alternativos de pacificação social (Lei dos Juizados Especiais e Lei da Arbitragem).

Entretanto, essas iniciativas promoveram algumas mudanças, mas as pesquisas ainda mostram que a maioria das classes populares, quando tem acesso à justiça, é participando do processo como vítima ou réu, conforme Falcão:

Quem não tem acesso à Justiça hoje no Brasil não são apenas minorias étnicas, religiosas, ou sexuais, entre outras. Quem não tem acesso é a maioria do povo brasileiro. O Judiciário, por seus custos financeiros, processos jurídico-formais e conformação cultural é privilégio das elites, concedido, comedidamente, a alguns setores das classes médias urbanas. [...] Nossa cultura jurídica – substantiva, processual e institucional – ainda não conseguiu imaginar uma prestação jurisdicional que vença os limites da pobreza.[8]

As causas da dificuldade ao acesso à justiça também estão ligadas aos monopólios do poder do juiz, do advogado e do Ministério Público e à manutenção do corporativismo nessas profissões.

Um exemplo atual de corporativismo é o caso de Luciana Silva Tamburini, que esteve bastante presente na mídia nesse último mês. Luciana é agente de trânsito do Rio de Janeiro e em uma blitz abordou um juiz, que trafegava sem a CNH e sem o documento do veículo. Diante desta situação, ao tentar aplicar o que determina a lei ao indivíduo que comete tais infrações (princípio da isonomia), a agente foi conduzida à delegacia porque o juiz lhe deu “voz de prisão” por desacato. A agente ajuizou ação por danos morais, que foi julgada improcedente tanto em primeiro como em segundo grau, na Apelação Cível do Processo nº 0176073-33.2011.8.19.0001:

14ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RJ

APELAÇÃO CÍVEL

PROCESSO Nº 0176073-33.2011.8.19.0001

APELANTE: LUCIANA SILVA TAMBURINI

APELADO: JOÃO CARLOS DE SOUZA CORREA

RELATOR: DESEMBARGADOR JOSÉ CARLOS PAES

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OFENSA PERPETRADA CONTRA MAGISTRADO. DANO MORAL IN RE IPSA.

1. A autora, ao abordar o réu e verificar que o mesmo conduzia veículo desprovido de placas identificadoras e sem portar sua carteira de habilitação, agiu com abuso de poder, ofendendo este, mesmo ciente da relevância da função pública por ele desempenhada.

2. Ao apregoar que o demandado era “juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade.

3. Não se discute a natureza humana do servidor público investido de jurisdição, entretanto, restou evidente, no caso em análise, que a apelante pretendia, com tal comportamento, afrontar e enfrentar o magistrado que retornava de um plantão judiciário noturno.

4. Não se vislumbra qualquer ilícito na conduta do réu que importasse em dever de compensar a recorrente pelo alegado vexame, por ela mesma provocado.

5. Por outro lado, todo o imbróglio impôs, sim, ao réu (reconvinte) ofensas que reclamam compensação. Não por ter sido negado o caráter divino da função por ele desempenhada (por óbvio), mas pelo tratamento desrespeitoso dispensado ao cidadão que é, somente por ter se identificado como Juiz de Direito.

6. O fato ilícito ensejador do dever de indenizar por parte da autora não reclama prova efetiva do 2 dano, pois decorre do próprio fato ofensivo, ocorrendo in re ipsa.

7. A compensação extrapatrimonial de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) foi fixada em patamar razoável e proporcional à ofensa, devendo ser mantida, também nesse ponto, a sentença vergastada.

8. Apelo que não segue.

O princípio da persuasão racional do juiz, que regula a apreciação e a avaliação das provas existentes nos autos, indicando que o juiz deve formar livremente sua convicção, é adotado no Brasil e autoriza o magistrado a elaborar sua decisão considerando sempre os princípios e a análise crítica de todo o contexto do caso. Apesar disso, muitos adotam uma postura de total distanciamento dos detalhes que não estejam rigorosamente relacionados ao direito positivo e aos autos ou até mesmo, uma atitude corrupta, como afirma Dallari:

Há juízes que, por convicção ou interesse pessoal, são cúmplices de governos, pessoas e grupos privados violadores de direitos humanos e, a partir daí, protetores dos agentes diretos da violação. [...] Estes são, talvez, os juízes mais perigosos, porque simulam um desejo de justiça e envolvem suas decisões numa capa de respeitabilidade.[9]

É possível detectar até um sentimento de repulsa por parte da sociedade com relação ao sistema judiciário como um todo, incluindo os rituais presentes no processo, que se origina da própria sociedade. O documentário Justiça (Ramos, 2004)[10] retratou, de forma impressionante, não só as audiências acontecidas no Fórum da cidade do Rio de Janeiro, como também a relação estabelecida entre os envolvidos em um processo judicial, a rotina de trabalho dos funcionários e as pessoas que frequentam aquele local.

É evidente o sentimento de discriminação apresentado nas audiências desse documentário. O interrogatório inicial já denuncia a situação absurda de o juiz ignorar a condição de deficiência física em que se encontrava o réu, acusado de pular um muro para invadir um domicílio. Ao perceber tal estado físico, o juiz questionou o tempo em que o réu estava em cadeira de rodas e se ele já era cadeirante quando fora detido. No entanto, a constatação de que seria impossível a prática do ato pelo qual aquele indivíduo estava sendo acusado não modificou a atitude arrogante do referido magistrado, que encerrou a audiência com a informação de que “a defensoria pública iria analisar a situação e pedir os direitos devidos ao acusado”.

Ainda sobre o documentário, destaca-se o papel da defensora púbica, que assume uma postura subserviente, mas de certa maneira, compreensível pelo fato de ter a consciência do poder e da vaidade que envolve as suas relações de trabalho. A seu modo de ver, a linguagem do Direito é feita para não ser compreendida porque é a linguagem da dominação.

O conhecimento de todos esses vícios confirma que a renovação da justiça precisa acontecer também “através de uma estratégia de pressão externa sobre o sistema judicial e de liderança interna”[11], ou seja, de fora para dentro (pressão da sociedade, dos movimentos sociais, da imprensa) e de dentro para fora. Conforme Aydos:

É nesse campo que nós, profissionais de direito, devemos bater-nos para criar condições teóricas que dêem consistência e verdade a uma nova prática jurídica, cuja única verdade um pouca mais permanente é a de que toda forma jurídica é dotada de alternativa, dada sua ontologia de ser social, e que o ato individual de escolha entre alternativas é fundado sobre uma avaliação ética, e de responsabilidade personalíssima, que não se pode transferir para a organização, ou o movimento, ou o poder, ou a falsa autoridade da técnica em si. A verdade jurídica não se produz de forma monolítica, ela está imbricada inarredavelmente em princípios morais.[12]

A desigualdade nas posições (juíz, partes, advogado, defensor púbico) é ressaltada pela condição social, pela consciência do poder que a elite exerce sobre a justiça e pela diferença de linguagem adotada entre cada um dos envolvidos (palavras e expressões “complicadas” e vestes imponentes) fatores que, somados à excessiva burocracia afastam a maioria dos cidadãos do acesso à justiça. Baseados nessa constatação, muitos operadores do direito, inconformados com tantas incoerências do sistema, decidem aplicar o “positivismo de combate”, a ser detalhado posteriormente.

Atualmente essa situação apresentada no documentário “Justiça”, que foi feito em 2004, pode ter sofrido modificações porque a sociedade atual está mais consciente e também mais conectada nas redes sociais, onde é possível divulgar muitas denúncias de irregularidades e discriminações. No entanto, certamente ainda há muito o que mudar, inclusive no que diz respeito ao aumento do acesso à justiça.

  1. O acesso à justiça no Brasil e a sua relação com o histórico movimento do Direito Alternativo

 

A consciência do enorme valor das reivindicações dos direitos presentes numa sociedade pluralista provocou, no meio jurídico, um intenso debate acerca dos assuntos relacionados ao bem público. Nesse contexto surgiu o Movimento do Direito Alternativo que, de acordo com a definição de Andrade, era um movimento de juristas:

Ou seja, de um grupo de pessoas com certos objetivos comuns que se organizaram, no Brasil, para produzir uma nova forma de ver e praticar o Direito, a partir do ano de 1990. Os pontos em comum eram: a não aceitação do sistema capitalista como modelo econômico; o combate ao liberalismo burguês como sistema sociopolítico; combate irrestrito à miséria da grande parte da população brasileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades individuais, dos direitos sociais, bem como da materialização de igualdade de oportunidades e condições dignas de vida a todos. [13]

                                                                                                            

A crítica ao sistema jurídico vigente era justificada com base em juízos de valor e em comprovações de que, na realidade, é a vontade das classes que detêm o poder econômico e político que são representadas na maioria das vezes. Assim, não é possível afirmar que se trata da legitimação da vontade da maioria, visto que a elite dominante é minoria da população.

A principal inspiração desse movimento foi o movimento italiano do uso alternativo do Direito (também conhecido como Jurisprudência Alternativa), que surgiu em oposição ao direito imposto durante o regime fascista, legitimado pelo Poder Judiciário italiano e cuja ideologia essencial é, através da interpretação crítica, “modificar as normas legais em vigor, dando a elas um sentido diverso daquele pretendido pela classe dominante e pelo próprio legislador, tendo como objetivo favorecer as classes populares e economicamente fracas”.[14]

A resposta da mídia e de vários juristas conservadores foi imediata, pois foram publicadas diversas demonstrações de reprovação com justificativas de que os “alternativistas” estariam contra o legalismo, a Constituição e a tradição jurídica do país. No entanto, como assegurar a aplicação efetiva dos princípios da CF/88 a toda a população brasileira?

O positivismo de combate é apenas uma maneira inovadora de interpretação da Constituição, pois conforme Genro:

A interpretação dos dispositivos constitucionais requer, por parte do intérprete ou aplicador, particular sensibilidade que permita captar a essência, penetrar na profundidade e compreender a orientação das disposições fundamentais, tendo em conta as condições sociais, econômicas e políticas existentes no momento em que se pretende chegar ao sentido dos preceitos supremos. [15]

Assim, é possível aos operadores do direito, diante na estática jurídica, promover um dinamismo, uma ação a essa norma. A ação direta de inconstitucionalidade, que fundamenta a inconstitucionalidade de uma lei aplicada a um caso concreto, pode ser apenas uma solução pelo fato de qualquer juiz ter o poder de julgar inconstitucional uma lei em um caso concreto, através do controle incidental do sistema difuso.

Outra importante finalidade a ser destacada no alternativismo é a contestação das práticas de burocratização do segmento judicial, em que o campo jurídico isola seus integrantes dos setores criminalizados e fossilizados (pertencentes às classes mais humildes), como descreve Zaffaroni:

O sistema penal procura compartilhar essa mentalização com os segmentos de magistrados, Ministério Público e funcionários judiciais. Seleciona-os dentre as classes médias, não muito elevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe médica alta que, enquanto as conduz a não criar problemas no trabalho e a não inovar para não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva a identificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprometida) e os isola até da linguagem dos setores criminalizados e fossilizados, de maneira a evitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiadamente com a dor daqueles. [16]

A propagação de idéias referentes ao direito penal mínimo, ao garantismo e à resolução alternativa dos conflitos sociais mantém a mesma linha no sentido de tentar resgatar a ênfase na defesa dos direitos humanos em oposição ao conservadorismo e à tentativa constante de manutenção e legitimação do status quo. É a busca da igualdade entre os cidadãos, da importância de compreender a história de vida do outro e de falar a mesma língua, ao contrário da idéia expressa por Miguel Reale apud Pastana:

Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua linguagem multi-milenar, dignidade que bem poucas ciências podem invocar. [...] às vezes, as expressões correntes, de uso comum do povo, adquirem, no mundo jurídico, um sentido técnico especial, sendo por isso necessário que os mesmos dediquem a maior atenção à terminologia jurídica, sem a qual não poderão penetrar no mundo do Direito. [...] E, para quem está cursando uma faculdade de Direito, deve conhecer os elementos preliminares indispensáveis para situar-se no complexo domínio do Direito,cujos segredos não bastará a vida toda para desvendar. [17]

O necessário, divergindo da opinião de Reale, é que os juristas dediquem maior atenção à humanidade e generosidade na relação com os envolvidos no processo para tentar perceber que a verdadeira justiça não está obrigatoriamente vinculada ao rebuscamento dos ritos e das formas de vestir e falar dos operadores do direito. A ostentação desses símbolos visa muito mais a manutenção do poder e da autoridade desses profissionais e menos à tentativa de democratização do acesso e da prestação jurisdicional, função delegada pelo Estado e remunerada através dos impostos pagos pelo povo.

Algumas ideias que pertenciam ao movimento do direito alternativo daquela época foram adotadas na atualidade, como cita Berclaz, que realizou um breve retrospectiva das influências desse movimento no direito atual:

Não se ignore que entendimentos minoritários lançados na prática do direito de família, os quais há alguns poucos anos atrás eram tidos como atitude de “rasgar a lei”, hoje consolidaram-se como realidade no ordenamento jurídico atual: divórcio sem tempo mínimo necessário e interpretação adequada e admissão de união estável entre pessoas do mesmo sexo, são apenas dois pequenos exemplos do quanto se evoluiu. De outro lado, no âmbito criminal, para quem já pensava criticamente o direito penal, realmente não era preciso que o Supremo Tribunal Federal declarasse inconstitucional a vedação da progressão de regime em delitos hediondos em nome da individualização para que se tivesse essa consciência, o mesmo podendo ser dito para a desnecessidade de abertura de todos os votos dos jurados no Tribunal do Júri para fim de preservar o sigilo da votação, entre outras respostas diferenciadas possíveis a outros campos do saber jurídico, até mesmo porque o direito alternativo tem como uma de suas notas a interdisciplinaridade.[18]

Diante dessas considerações, há uma passagem que retrata bem a ideologia presente nessa utilização alternativa do direito, de Clève (1991, p.115): “o saber jurídico deve ser participante, inserido na historicidade, resultado de uma relação de conhecimento do jurista com o mundo [...] e que promova e reclame a afirmação dos direitos necessários à promoção da dignidade humana”.

Considerações Finais

A partir do que foi explanado anteriormente, é possível identificar a importância de se compreender as distintas concepções de cidadania e os vínculos estabelecidos com os direitos resultantes de um aumento da complexidade social e do surgimento de novos sujeitos coletivos. Tais mudanças ocorreram de maneira gradual e devem ser analisadas de acordo com o contexto histórico, social e ideológico a que pertence, desde o período colonial até a atualidade.

Considerando que cada momento histórico e o seu correspondente modo de produção serão responsáveis por um determinado tipo de Estado e de organização jurídica, observamos que a forma democrática de exercício do poder político é a mais adequada à livre manifestação das opiniões públicas e da soberania popular. Não obstante essas vantagens, a lei de ferro das oligarquias, incontestavelmente, terá influência não só na política, como também no acesso à justiça – ambiente dominado por deficiências bastante conhecidas da população brasileira.

A concepção monista do direito limitado ao Estado e ao poder soberano é combatida pela aceitação de uma diversidade de ordenamentos existentes desde sempre e que caracterizam o pluralismo jurídico. E finalmente, os posicionamentos aparentemente contraditórios do Direito Alternativo e do uso alternativo do Direito visam apenas expressar a indispensável participação dos operadores no processo de criação de instrumentos para a humanização do direito e ampliação do acesso à justiça.

REFERÊNCIAS

                

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[1] ZIPPELIUS, Reinhold. Trad. Karin Praefke-Aires Coutinho. Teoria Geral do Estado. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

[2] DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: estado, cidadania, mulher e morte no Brasil. 11 ed. rev. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

[3] Ibidem

[4] CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. 17 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

[5] JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo. In: Revista Estudos Históricos. n.18. 1996. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25477-25479-1-PB.pdf. Acesso em: 25 de maio de 2011.

[6] Ibidem

[7] DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/1983/1732. Acesso em: 20 de maio de 2011.

[8] FALCÃO, Joaquim. Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento. In: Justiça, promessa e realidade: o acesso à justiça em países ibero americanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 2 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002.

[10] RAMOS, Maria Augusta. Justiça (Documentário). Rio de Janeiro, 2004.

[11] FALCÃO, Joaquim. Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento. In: Justiça, promessa e realidade: o acesso à justiça em países ibero americanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

[12] AYDOS, Marco Aurélio Dutra. O juiz-cidadão in Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 2001.

[13] ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é Direito Alternativo? 2 ed. Florianópolis: Habitus, 2001.

[14] Ibidem

[15] GENRO, Tarso Fernando. Os juízes contra lei in Lições de Direito Alternativo. Organizador: Edmundo Lima de Arruda Júnior. São Paulo: Acadêmica, 1991.

[16] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; Pirangelli, Jose Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro v.1: parte geral. 8 ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Companhia das Letras, 2009.

[17] PASTANA, Débora Regina. Justiça penal no Brasil contemporâneo: discurso democrático, prática autoritária. São Paulo: UNESP, 2009.

[18] BERCLAZ, Márcio. O Direito Alternativo continua vivo. Disponível em: http://justificando.com/2014/08/25/o-direito-alternativo-continua-vivo/. Acesso em 15 de outubro de 2014.