OS DESAFIOS E AS TRANSFORMAÇÕES DA MULHER NA EJA

 

 Adriana Amaral da Cunha[1]

 

RESUMO

O presente artigo intenciona socializar a pesquisa realizada sobre motivações do gênero feminino, da EJA, do Ensino Médio da Escola Albatroz em Osório, Rio Grande do Sul para a escolarização, bem como, as influências históricas do regime patriarcal na vida dos sujeitos de pesquisa e os caminhos percorridos, pelas alunas da EJA, para o exercício de sua cidadania e conquista de seus direitos sociais e apresentar os resultados sobre as principais dificuldades e facilidades, na voz dos sujeitos da pesquisa, para dar continuidade a seu processo de escolarização. Os caminhos teóricos percorridos para a realização deste trabalho tiveram seu início na reflexão crítica sobre quem é o público da desigualdade social dado o interesse em compreender os caminhos históricos da trajetória da mulher frente ao seu papel social. Nesta mesma linha de pensamento houve reflexão sobre a mulher e o seu papel na família e na sociedade e, por fim, o gênero feminino e a luta pelo direito à cidadania. Na seqüência descreve-se a metodologia priorizada para coleta dos dados, o diálogo feito acerca dos dados coletados e as considerações finais diante dos significados que são construídos na vida e na história social das mulheres acerca da escolarização feminina na EJA.

Palavras-chave: Mulheres. Patriarcado. Escolarização. Cidadania.

INTRODUÇÃO

 

 

O presente artigo tem como particularidade conhecer os significados na vida histórico-social das mulheres em relação à escolarização na educação de jovens e adultos. O título “Os desafios e as transformações da mulher na EJA”, deve-se ao fato de que na história sócio- educacional da mulher, muitos caminhos têm sido percorridos para que a mesma tenha o seu total reconhecimento e respeito pela sociedade em geral, pois há muito tempo definiu-se o gênero feminino como frágil e incapaz num mundo dominado pela supremacia masculina.

A participação feminina em trabalhos temporários ou sem qualquer vínculo empregatício tem contribuído para que haja uma busca crescente pela formação educacional, proporcionando assim, a oportunidade de conseguir a formalização no que diz respeito ao trabalho. Nesse sentido, crescer profissionalmente e por conseqüência ser melhor remunerada retira a mulher da “marginalização” no que diz respeito ao auxílio financeiro, contribuindo, ainda, para o devido respeito em relação ao seu esforço dentro e fora de casa.

O encorajamento ao processo educativo e a procura por fazer valerem os direitos conquistados tem proporcionado o exercício à cidadania, embora haja muitas mulheres vivendo a verdadeira negação em relação a sua integridade física e moral. Reconhecer e dispor esses direitos, ter vez e voz como ser humano, apesar das influências histórico-patriarcais e observar as dificuldades e as facilidades para dar continuidade à escolarização são os objetivos investigados nessa pesquisa para entender e ratificar os caminhos percorridos na luta da mulher.

            O desenvolvimento do trabalho aborda a questão da desigualdade social dentro da sociedade capitalista promovendo uma reflexão sobre, principalmente, os sujeitos que freqüentam os cursos de EJA e o quanto, ainda, essa educação está distante do seu público; a questão da mulher e do seu papel na família e na sociedade abordando quais as funções que sempre foram delegadas ao sexo feminino, fazendo um pequeno apanhado histórico sobre o assunto e, por fim, à questão do gênero feminino e a sua luta pela cidadania, onde, discorre-se sobre o direito a ter direitos e da luta árdua travada para que sejam, realmente, cumpridos.

Público da desigualdade social

 

 

A idéia da igualdade não é uma idéia aceitável para a cultura humana, pois foi o burguês, associado aos pensadores liberais – como Espinoza, Locke, Rousseau e Montesquieu –, que defendeu a liberdade e a igualdade como valores. O valor da liberdade aparece já no embrião dos direitos humanos. Essa liberdade, no entanto, não era em benefício de todos, mas sim das classes específicas, principalmente, em favor do clero e da nobreza e com algumas concessões em benefício do povo.

 Costa (1997:256) diz que o modo como a escola se organiza é o mesmo da sociedade em geral. Os mais pobres são marginalizados pela escola da mesma maneira que são explorados no trabalho, seja temporário, terceirizado, informal ou formal, e impedidos de participar da política. A escola não é democrática porque a sociedade, ainda, não o é, verdadeiramente. Para Arroyo (2005:48) um espaço escolar só se torna realmente público quando o povo pode exercer seus direitos. Desde o início do mundo tem sido estabelecido, pelo próprio homem, que os senhores do poder são também os senhores do saber e os pobres são eliminados tanto das instituições escolares quanto das participações decisivas, pois aquilo que é sancionado pelo poder dificilmente espelha as tendências da maior parte da população.

            A oferta de educação para a maioria da classe trabalhadora somente não basta é preciso compromisso qualitativo tanto pelo governo quanto pela própria sociedade, prática que se encaminha de forma lenta, morosa e que em consequência continua produzindo exclusões, pois não basta somente o acesso a instituição de ensino, mas a permanência dos mesmos, assegurando um efetivo acesso ao conhecimento científico e tecnológico. O Estado, com essa modalidade educativa, tenta resgatar, compensar um público que por inúmeros motivos abandonou a sua formação escolar na idade regular e que volta para retomá-la, porém os tempos e os espaços da EJA, ainda precisam avançar na organização dos currículos de modo a respeitar as historicidades e vivências desses sujeitos.    

 Para Arroyo (2005:36) partir dos saberes, dos conhecimentos, interrogativas e interesses da vida dos jovens e adultos é o grande ponto de partida para se ter uma educação significativa que se complemente com os saberes escolares e sociais. Trabalhar com a riqueza da cultura humana é a grande ferramenta para chegar à cultura universal.  A pedagogia linear, nesta modalidade educativa, não atende as necessidades e interesses dos sujeitos que já possuem trajetórias de vidas. Portanto, quaisquer propostas de EJA que apostem na linearidade do processo de aprendizagem, tende a fragilizar-se, visto os mesmos já possuírem uma dinâmica de vida, com ideias, valores e construções pessoais advinda de suas próprias vivências.

Muito difícil foi o Império, no Brasil, mencionar escolarização para o povo, pois anos se passaram para que pelo menos a instituição física fosse colocada em quantidade satisfatória a disposição da nação. Podemos dizer que a Lei Saraiva estabelecida, no século XIX, mais precisamente em 1881, foi o grande marco da "preocupação" com o jovem e o adulto sem escolaridade, pois mesmo com o intuito em retirar o direito ao voto do analfabeto houve a preocupação em diminuir esse número que não era contributivo para o crescimento da nação e, deu-se então, o início de cursos noturnos sempre de caráter privado e/ou filantrópico.

A educação voltada para o trabalhador do século XIX visando moralidade e bons costumes concretizaram a ordem na sociedade e acabou fazendo parte dos discursos de políticos e governantes, mesmo que a sua totalidade, até os dias de hoje, ainda fique somente nos pomposos discorridos.  A idéia de que o povo deveria ter acesso à educação descomprometendo o poder público está enraizada num país que luta, há muito tempo, pela igualdade e o acesso ao ensino de qualidade.

Importante ressaltar que assim como governos reconheceram a preocupação e a urgência em formar cidadãos na sua totalidade, como a grande contribuição de Paulo Freire para a alfabetização de jovens e adultos, houve outros que retrocederam agindo de maneira extremamente limitada e sem qualquer interesse na formação de sujeitos de opinião.

É que na verdade os mecanismos, melhor, as relações que se dão na sociedade, infra e superestruturas são históricas. São contraditórias e não mecanicistas. Por isso é que eu dizia: a escola não é boa nem má em si. Depende a que serviço ela está no mundo. Precisa saber a quem ela defende. (FREIRE, 2004, p. 38).

O excluído tem pago um preço muito alto por sua condição social, econômica e cultural num Estado, muitas vezes, inconsequente com o dever público, numa sociedade elitista e injusta, e num sistema capitalista mais injusto ainda, e é essa mágoa que afasta ou não aconchega totalmente esse sujeito que tem  muitos deveres e muito poucos direitos. A desigualdade social se resume, em muitos com pouco e poucos com muito e ela acontece quando a distribuição é feita de maneira inadequada. Distribuição de trabalho, de renda, de acesso à educação, à saúde que só possibilita o acúmulo dessa dessemelhança.

A pobreza tem se tornado incômoda na contemporaneidade em razão da consciência da humanidade que se contradiz em relação aos valores que defende na sua organização social, pois a desigualdade assume o caráter de privilégio de alguns e de injustiças para com outros. Segundo Costa (1997:256) é em meio à sociedade da abundância que a pobreza adquiri um caráter contraditório e, até, paradoxal porque está contrário ao senso comum. 

A legitimação dos direitos dos excluídos e dos setores populares, principalmente, com um olhar menos negativo em relação à EJA é que fará parte da formalização escolar num compromisso público, sem improvisações e indefinições, excluindo a superação assistencialista para com os setores populares e efetivando o reconhecimento e a legitimidade coletiva dos direitos humanos.

As pessoas vítimas das desigualdades questionam de uma maneira muito mais profunda sua própria marginalização como desiguais. Suas lutas são por políticas de igualdade. A motivação acontece através de uma agenda pública baseada em princípios de equidade, justiça e emancipação. Esses sujeitos em ação levam suas lutas às fronteiras da produção dessas desigualdades, situando-as na relação política da dominação e da exploração. Essas fronteiras acabam virando lutas privilegiadas por justiça e igualdade.

A mulher e o seu papel na família e na sociedade

 

 

Desde o princípio da constituição humana houve a divisão sexual entre o masculino e o feminino, pois para a mulher sempre foi designado o papel de genitora, lactante e educadora da sua prole, embora tenha sempre ajudado no trabalho fora de casa. Na Idade Média, o direito imposto pelos costumes dizia que a mulher deveria ficar sempre atrás do muro: do pai, do marido ou do convento. Não podia sair para o mundo da sociedade. Especificamente nas sociedades antigas (tribais), a solidariedade mecânica, segundo Johnson (1997:41) “(...) é a coesão que tem por base a cultura e o estilo de vida comum, o consenso sobre valores, normas e crenças resultantes de socialização e experiência também comuns.” Portanto, a divisão do trabalho estava fundada mais na semelhança das funções a serem exercidas e menos na dessemelhança delas.

Antes de o capitalismo imperar, o trabalho era igualitário e unificado independentemente do núcleo familiar. O capitalismo favoreceu a subordinação da mulher ao homem que a considerava frágil e incapaz em relação ao trabalho. O patriarcalismo, ideologia na qual o homem é a maior autoridade, devendo as pessoas que não são identificadas fisicamente com ele (isto é, que não sejam também adultos do sexo masculino) serem subordinadas, prestando-lhe obediência, veio ratificar o poder e a força masculina, também sobre a mulher, submetendo-a, cada vez mais, ao seu interesse. Assim, o poder patriarcal permanece, em geral, na família, porém a mulher pobre passa a trabalhar em fábricas e progressivamente vai sendo marginalizada, principalmente, em funções periféricas, pois a presença feminina no mundo do trabalho já era percebida mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, não podemos alegar que a inserção da mulher no espaço fabril fosse responsável pela separação das chamadas ‘esferas’ do lar e do trabalho. O advento do capitalismo representou, para a mulher, uma grande desvantagem, pois ela passou a ser subvalorizada em suas capacidades.

Importante ressaltar que há muito pouco tempo atrás, as tarefas domésticas e a atenção com os filhos eram consideradas tarefas exclusivamente femininas. Desde o colonialismo, no Brasil, a elite marcava distinção entre as burguesas e as pobres, pois a norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, ocupando-se dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando na rua, porém, algumas mulheres já trabalhavam fora de casa. Para Saffioti, (1987:11) a história oficial pouco ou nada registra da ação feminina no devir histórico.

A questão da opressão com relação à mulher, além de fazer parte, de muitas culturas, atinge o mundo todo. No século XIX, segundo Freyre (1998:111) houve um alargamento da paisagem social de muitas iaiás brasileiras com a vida extra-doméstica, através do teatro, do romance, da janela, do estudo, da dança, também nos bailes de carnaval, da música e do francês. Momentos que eram importantíssimos para a expansão das retaliações vividas por pais ou maridos. O Corão, por exemplo, livro sagrado dos muçulmanos, ensina que homens e mulheres são iguais diante de Alá, mas muitos distorceram essa visão proibindo meninas de frequentarem à escola, mulheres de trabalharem e, ainda, sofrerem penas de apedrejamento. No Brasil, mais precisamente em 1964, para os repressivos as razões do Estado predominaram sobre o direito à vida. Nos cárceres brasileiros, muitas mulheres tiveram sua sexualidade maculada e os frutos do ventre arrancados sob desumana tortura, onde a maioria preferiu o silêncio para que a vergonha amargada não caísse em público.

No decorrer dos tempos a ideia de superioridade do homem sobre a mulher sempre foi considerada absolutamente normal. Ao homem sempre ficou a parte das grandes caças e guerras, por exemplo. Com base nessa cultura, estruturou-se o modo de pensar que discriminou e, ainda, discrimina a mulher em diversos setores, reafirmando o princípio da diferenciação como base de uma sociedade que só aparentemente se homogeneíza. Para Abreu, (2001:52) as diferenças entre o masculino e o feminino deveriam somar, agregar e proporcionar crescimento, no entanto, os opostos se atritam e deixam de evoluir. Não há necessidade de medir forças com o sexo masculino, mas de reafirmar seu direito a igualdade.

Muitos críticos defendem que a opressão do gênero feminino não se baseia em diferenças de personalidade, mas na organização social do patriarcado, que se estende desde a colonização, fazendo com que a mulher vivesse numa situação patológica comprimida moral e fisicamente obedecendo aos seus senhores e sendo esmagada por espartilhos e roupas espessas de lã que não apresentavam qualquer afinidade ao clima tropical e, que hoje, ainda procedem, na busca do corpo perfeito, na magreza idealizada, despojadas, muitas vezes, de vestuário e na submissão aos homens que utilizam a agressão física e psicológica no lar e no trabalho colaborando com a natureza competitiva e proveitosa do capitalismo. Portanto, onde há opressão e exclusão torna-se difícil o exercício da cidadania e só o diálogo numa vida de confiança e respeito mútuos afirma a dignidade de cada ser humano.

 A exploração da mulher pelo homem, principalmente no Brasil, através do regime patriarcal durou muito tempo e por essa diferenciação exagerada é que Freyre (1998:93) menciona o padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas as liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar. Gozo acompanhado da obrigação, para a mulher, de conceber, parir, ter filho. Muitas mulheres morreram velhas aos seus vinte e poucos anos, no seu oitavo ou nono parto, sem qualquer intimidade com o marido que não fosse a da cama. A intimidade do ventre passivo e gerador com o órgão agressivamente viril e senhoril do dono da casa era uma das ostentações do poder do macho sobre a fêmea, do sexo forte sobre o fraco.

A plenitude do prazer só pode ser alcançada quando nenhuma dimensão da personalidade do ser humano – homem ou mulher – é  impedida de se desenvolver. Por que não permitir, e mesmo estimular, o desenvolvimento da razão nas mulheres? Por que não incentivar o homem a não reprimir a dimensão afetiva de sua personalidade? Ambos seriam mais completos e, portanto, mais capazes de sentir e dar prazer. Das relações assimétricas, desiguais entre homens e mulheres derivam prejuízos para ambos. Basta observar atentamente o tipo mais freqüente de relações homem-mulher para se chegar a esta conclusão. Cabe, então, perguntar a quem beneficia este estado de coisas, já que forças poderosas tentam, de todos os modos, impedir que nele se operem mudanças. (SAFFIOTI, 1987:20)

A força da ideologia da “inferioridade” é muito grande e o mero fato de a mulher deter, em geral, menos força física que o homem seria suficiente para decretar sua inferioridade? As mulheres são menos inteligentes que os homens? A Ciência já demonstrou suficientemente que a inteligência constitui um potencial capaz de se desenvolver com maior ou menor intensidade, dependendo do grau de estimulação que recebe. No raciocínio de que o trabalho extra-lar da mulher é uma “ajuda” ao marido, a mulher se oferece um salário menor, ainda que ela desempenhe as mesmas funções que o homem. Para Saffioti, (1987:15) a inferioridade feminina é exclusivamente social, mesmo havendo normas elaboradas pelo legislativo que tornam todas as pessoas iguais perante a lei, o que é importante, porém não será pela legislação que as estruturas de dominação serão transformadas, mas através do término das discriminações legitimadas da ideologia dominante.

 A mulher, assim como a criança e o escravo, segundo Balandier (1997:33) apresentam-se, numa sociedade, exemplificando a figura da desordem, rompendo a ordem manifestada dentro do próprio espaço policiado. Os mitos contam a história de mulheres pecadoras, sedutoras e transgressoras que, de uma forma ou de outra, sempre trazem a desordem para o mundo: Eva, Lilith, Pandora, Madalena e muitas outras.

A superioridade do sexo masculino tem sido, até hoje, inquestionável. Historicamente, “foram os homens que descobriram terras, inventaram os instrumentos, lançaram-se às pesquisas e às conquistas. Eva não foi criada para si, mas para ser companheira de Adão. Nas lendas antigas, o princípio masculino deveria triunfar sobre o feminino”. Atribui-se a Pitágoras o dito “Há um princípio bom que criou o caos, as trevas e a mulher” E a Aristóteles: “A fêmea é fêmea em virtude de certa falta de qualidade”. (SILVA, 1988:57)

O patriarcado tem alimentado as religiões em sua passionalidade, e, também, as ciências, em sua neutralidade, oferecendo sempre as mesmas explicações sobre o lugar e o ser das mulheres na sociedade. Dessa maneira, durante milhares de anos foram sendo reproduzidos argumentos, dogmas e leis que fragilizaram os seus corpos e reprimiram o seu intelecto, reservando-lhes, ainda hoje, na maioria das sociedades, desvantagens econômicas, amorosas e políticas.

 

 

O gênero feminino e a luta pelo direito à cidadania

O direito a ter direitos tem sido uma conquista árdua. A luta do ser humano pelo direito à educação, e especificamente, da mulher ao voto, ao registro do filho, declarando o suposto pai, e ao pleno exercício da cidadania é antiga e a negação aos despossuídos também. No Brasil temos, atualmente, a Lei de Diretrizes e Bases, que assegura o direito à educação, como também temos a nível mundial A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento básico assinado em 1948, que enumera e garante todos os direitos que os indivíduos possuem e, ainda, a nossa Constituição da República promulgada em 1988 que fundamenta e aprofunda todos os direitos das pessoas em relação à liberdade, a segurança, ao bem-estar, ao desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade, acima de tudo, fraterna.

Apesar de inúmeras promulgações favoráveis ao exercício da cidadania, a cultura machista está associada a altos níveis de violência doméstica e outras agressões físicas a mulheres no país. Essa questão foi reafirmada nas entrevistas em relação ao sistema patriarcal, pois as alunas deixaram claro, nas suas falas, que a mulher cabia o papel de cuidadora do lar, responsável pelos afazeres domésticos, aprendidos e repassados de geração a geração e que a figura masculina aparecia, sempre, como o “senhor da ordem”, aquele que impõem medo e requer obediência.

Desenvolver uma formação para a cidadania crítica e consciente não foi e não tem sido uma tarefa fácil para as instituições de ensino porque somos herdeiros de um compromissado descaso com os direitos humanos, principalmente, aos menos favorecidos porque as relações cotidianas mostram situações preconceituosas, discriminatórias e racistas contra mulheres, índios, homossexuais, afro-descendentes, etc. em diversos segmentos da sociedade.

Sentimentos de baixa estima, vivenciados pelas alunas, tem significados na opressão que o gênero feminino vivenciou ao longo da trajetória social, pois à mulher sempre coube o papel de inferior diante do gênero masculino, na sociedade e no mundo do trabalho, tais fatos sempre tiveram forte influência, gerando um grande número de mulheres desacreditadas de seu próprio potencial.

Quantas mulheres carregaram consigo a culpa por serem vítimas de violência por anos a fio? A quantos silêncios elas se teriam submetido? Quanta violência não foi justificada nos tribunais pela “defesa da honra” masculina? Após muitos anos de luta o Estado brasileiro passou a enxergar a violência no lar em oposição ao sexo feminino e promulgou a Lei Maria da Penha[2] criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e conforme decisão recente do Supremo Tribunal Federal, com o intuito de intimidar agressores, designou poderes ao Ministério Público, pois o mesmo poderá entrar com ação penal mesmo que a mulher decida voltar atrás na acusação contra o seu companheiro.

A questão a violência doméstica, à qual grande número de mulheres se submete, aponta para uma espécie de conformação psicológica ao desejo do homem, mesmo quando isso lhes fere a dignidade própria. Constatamos que essas mulheres sentiam, dentro de si, uma dificuldade imensa em reagir, em procurar uma solução, em escapar da relação neurótica na qual estavam aprisionadas. (...) O único referencial que possuíam, através do qual aprendiam sua identidade no mundo, era-lhes conferido por um código masculino perverso, ou seja, o machismo que lhe impunha a dependência ao homem e aos seus valores como algo inerente à natureza da mulher. (SILVA, 1988:60)

A educação, como direito social, tem obrigatoriedade com relação à cidadania, porém nas vozes das alunas pesquisadas esse direito foi interrompido, ainda na infância, pois tiveram que iniciar-se no mundo do trabalho assumindo papéis de obrigações e de deveres em nome da sobrevivência, marcadas pela violência doméstica, pelas dificuldades econômicas e pelo afastamento da escola.

As dificuldades econômicas, neste contexto, foram as motivações para buscar no mundo do trabalho condições para aquisição da dignidade, aqui referida pelo direito de ter comida na mesa. Tal situação nos leva a refletir que a cidadania inclui três tipos distintos de direitos: os direitos civis, os políticos e os socioeconômicos. Para Johnson (1997:34) uma questão sociológica fundamental sobre cidadania é de que forma os vários grupos são dela incluídos e excluídos e como essas situações afetam a desigualdade social.

O fato de a sociedade brasileira ser organizada e estruturada por um modelo econômico capitalista, extremamente excludente, caracterizado por grande concentração de renda constitui um dos principais fatores da desigualdade social, da discriminação e da violência, fato que se evidencia na vida de muitas famílias, gerando diversos públicos vitima da desigualdade social, em especial destacamos o público da EJA, que retorna aos bancos escolares na fase adulta, pois durante sua infância e juventude teve que priorizar o provimento do sustento da família.

Mesmo com todas estas dificuldades relatadas para o exercício de sua cidadania, as alunas reconhecem, no ato de retorno a escola, uma necessidade e um benefício em prol da busca de sua autonomia. A escola passa a ser uma oportunidade concreta para se instrumentalizarem para o sucesso pessoal e profissional. Frequentar o ambiente escolar, usufruir desse direito adquirido e estar, realmente, incluso nele, prioriza o reencontro do discente popular com a instituição e tem um sentido maior, pois esses alunos veem a escola como uma alternativa de inclusão social e, esta organização educativa, precisa ser integrada e estar articulada a políticas públicas efetivas.

O censo de 2010 afirma que a taxa de freqüência do Ensino Médio em relação às mulheres de 18 anos em diante teve um aumento de 35,5%, pois em 1992, somente, 21,3% das mulheres estudavam e em 2008 houve um aumento considerável passando para 56,8%. Não é o idealizado, mas aos poucos as mulheres estão tendo cada vez mais acesso à educação. Até mesmo porque nem os dicionários se abrem para o gênero feminino, pois determinadas profissões, são apresentadas como se fossem exclusivamente masculinas. Como exemplo encanador, marceneiro e bombeiro como sendo atividades masculinas e, por outro lado, arrumadeira e faxineira como exclusivamente femininas não refletindo as práticas sociais na atualidade.

Considerando que o universo linguístico é formado por tudo que constitui o mundo humano, das relações de produção até a política internacional, acreditamos, pois, estar realmente diante de um enigma da existência da mulher. Admitindo-se que todo processo primário de identificação sexual passa necessariamente pelo viés da linguagem, como é possível a mulher constituir-se como mulher, numa língua que não somente menospreza o sexo feminino como também o exclui de sua própria estrutura? (SILVA, 1988:59)

O preço pago pelas alunas do curso não as desestimula, ratificando a luta social da mulher em vários campos, porque suas conquistas têm obtido cada vez mais o reconhecimento social e o respeito pelas atividades desempenhadas, comprovando que para desempenhar alguns tipos de funções não é o gênero que prevalece, mas a preparação, principalmente psicológica e emocional para tal feito. 

            O ambiente escolar e o que ele proporciona como a troca de ideias, a convivência com outras pessoas, os estímulos que só os desafios podem despertar, faz com que as entrevistadas demonstrem força e muita firmeza, mesmo nos momentos de maior dificuldade, em seus propósitos, pois suas determinações em modificar suas histórias têm, na escola, grandes expectativas.

Desta forma, o sentimento de baixa estima, principalmente, ao público da desigualdade social, aqui, em especial, ao gênero feminino que chega à EJA, não nos causa estranheza, pois é comum, enquanto educadora da EJA, escutar falas que revelam o sentimento de falta de crença em si mesmas, por parte das alunas como também não nos é estranho presenciar, a mudança deste sentimento à medida que transcorre o processo de escolarização.

Diferentemente de anos, não muito longínquos, hoje, o acesso a escolarização é muito melhor e há estudos constantes para que esse público da coletividade seja mais bem recebido na instituição escolar e melhor preparado para o mercado de trabalho. Especializar-se em busca do seu ou de outro trabalho tem sido a grande meta das alunas, que nem mesmo em relação aos seus afazeres e do cansaço diário deixam de lutar por um mundo melhor.

           

 

 

Considerações Finais

 

 

A luta da mulher pelo seu espaço como ser integrante de uma sociedade, ainda patriarcal, tem sido de muitas conquistas, porém há muito que ser retificado. Para conhecer os significados construídos na vida e na história social das mulheres acerca da escolarização feminina na EJA, procurou-se investigar a situação dessas mulheres-alunas dentro do regime histórico-social ao qual foram submetidas desde o seu nascimento.

Constatar que a supremacia masculina tem sido um dos obstáculos enfrentados não faz com que as entrevistadas sejam submissas, muito ao contrário, pois buscam em sua caminhada, apesar de difícil e trabalhosa, construir novos conceitos para dar significado as suas vivências. Vivências estas, de extremo significado, principalmente, ao que diz respeito à escolarização, pois tem convicções de que a porta da saída para sua independência está calcada, também, na sua formação educativa. Conforme aponta Freire (1987:12) é a conscientização, que possibilita inserir o sujeito no processo histórico em busca da sua afirmação. E é essa afirmação que proporciona escolhas de caminhos melhores, com perspectivas melhores para a integridade moral, intelectual e psicológica da mulher.

As alunas relataram, também, que são nas adversidades, nos desafios e nos conflitos das suas vidas que buscam forças para continuarem suas lutas e persistirem em seus objetivos, mesmo tendo como companheiro o sofrimento em vários momentos de suas vidas. Dar sentido as suas histórias e ter um papel significativo em prol dos direitos das mulheres têm feito delas, mesmo até sem terem plena consciência, grandes partícipes das lutas histórico-sociais do gênero feminino do século XXI.

Assim, conclui-se que o gênero feminino não foge à luta e tem garimpado dia a dia a sua independência, seja financeira ou intelectual, explorando caminhos para sua cidadania na busca incansável por seus direitos e por insistir em seu processo de escolarização mesmo, muitas vezes, sofrendo em seus propósitos, tropeços, pois são nesses momentos que a mulher encontra forças para seguir adiante.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

ABREU, Clenar Denise de. Mulheres de Outono. Caxias do Sul: Gráfica Centro Técnico Social Murialdo, 2001.

 

ARROYO, Miguel González. Educação de jovens-adultos: um campo de direitos e de responsabilidade pública. In: SOARES, Leôncio. GIOVANETTI, Maria Amélia Gomes de Castro. GOMES, Nilma Lino. (org.). Diálogos na educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

 

BALANDIER, Georges. A desordem: Elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

 

CENSO 2010.  Dados do CENSO 2010. Disponível em http://www.censo2010.ibge.gov.br. Acesso em 09 de outubro de 2011.17h 04min.

 

 

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1997.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. São Paulo: UNESP, 2004.

 

____________. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

 

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: Introdução a históriada sociedade patriarcalnoBrasil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

 

JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

 

SAFFIOTI, Heleieth I. B., O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

 

SILVA, Maria Escolástica Álvares da.Mulher, substantivo masculino. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.



[1] Graduada em Letras pela FACOS em 1988. Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na Escola Estadual de Ensino Médio Albatroz. E-mail: [email protected]

[2] Lei 11.340 de 6 de agosto de 2006. . Nos termos do § 8º Do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a eliminação de todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.