Nos dias de hoje, muito tem se falado sobre a interação entre diferentes atores com a finalidade de elaborar políticas públicas que visam atender às demandas e propostas da sociedade ou de outros segmentos. A participação da sociedade na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas é cada vez mais frequente, sendo que, em alguns casos, é assegurada por lei. As audiências públicas que visam à elaboração e discussão de planos e leis orçamentárias também estão abertas à sociedade. Este direito de participação, inclusive, é garantido pela famosa Lei da Transparência, sancionada em maio de 2009. Entretanto, nem sempre a formulação de políticas públicas se dá com a devida anuência de todos os envolvidos. Como há interesses diferentes, é mais do que comum haver conflitos durante este processo, entretanto, isso não deve ser um impeditivo para a participação popular. Ademais, a democracia deve sempre prevalecer. Como consequência desta constante participação social e dos conflitos de interesse, a pressão sobre a administração pública está cada vez maior. A sociedade exige e valoriza a eficiência dos serviços públicos. Em outras palavras, os usuários desse sistema estão cada vez mais conscientes da necessidade de reivindicar serviços públicos de qualidade. De acordo com Carvalho, no capítulo 1 de seu livro “Burocracia e Ocupação no Setor Público Brasileiro”, o serviço público no Brasil, embora ainda precise melhorar, é realizado com reconhecido padrão de qualidade, mesmo em meio a um cotidiano de deficiências e insuficiências. O autor apresenta neste capítulo uma breve retrospectiva histórica, apontando os principais traços que marcaram a constituição do serviço público brasileiro, do período colonial a 1930. Segundo Carvalho, desde a idade média, sempre se buscou a racionalização burocrática da administração pública brasileira, com fixação de regras gerais, com a eliminação de cargos ou funções de natureza honorífica ou hereditária e das relações patrimonialistas e com a instituição da separação entre o funcionário e os meios materiais da administração. Porém, no decorrer de todo o período colonial, o funcionalismo público foi marcado por fortes interesses pessoais, onde se prevalecia o recrutamento com base nas relações patrimonialistas, e não com base na meritocracia. Ademais, este sistema não se limitou ao período colonial, adentrou pelo período republicano e, até hoje, percebe-se ainda alguns de seus traços, como por exemplo, os cargos comissionados, principalmente em nível municipal, nas prefeituras. Esse sistema trouxe muitos problemas, como a falta da distinção entre esfera pública e privada, sendo a administração tratada como assunto pessoal, contribuindo, dessa forma, para a ineficiência e ineficácia da máquina pública. De acordo com o autor, no entanto, embora ocorriam as relações patrimonialistas, os primeiros censos demográficos realizados não apontavam inchamento da máquina administrativa, pelo contrário, o que se via era um reduzido número de servidores públicos em relação à população. Por isso é que havia reduzida oferta de serviços públicos no país. Com um histórico assim, é inegável o desafio do aparelho estatal brasileiro, que deve buscar sempre a eficiência e eficácia dos serviços prestados, superando esses traços de origem. Buscar o desenvolvimento do país também é uma obrigação do Estado. Nesse sentido, a atuação do governo tem que ser, acima de tudo, no plano estratégico, em parceria com a sociedade civil. Peter Evans, em sua obra “O Estado como problema e solução”, apresenta uma linha histórica sobre o papel do Estado perante à promoção do desenvolvimento, a qual ele denomina “ondas de reflexão sobre o Estado”. De acordo com o autor, o Estado pode ser visto como um problema ou uma solução, sendo que sua imagem como problema era o que prevalecia nos anos 70 e 80, a denominada “segunda onda”, e derivava do fato dele fracassar ao realizar tarefas da agenda anterior, dos anos 50 e 60, na “primeira onda”, onde acreditava-se que o aparelho de Estado devia ser usado para promover mudanças estruturais. Mas afinal, qual é o papel do Estado nesse contexto? Peter Evans afirma que uma nova onda, a “terceira onda”, de reflexão sobre o papel do Estado começava a surgir a partir dos anos oitenta, onde a expectativa era de que o Estado, até então raiz do problema, poderia se tornar solução, mediante a implementação de programas de ajuste. Segundo o autor, o que faltou nas duas “ondas” anteriores, dentre outras coisas, foi justamente considerar as inter-relações entre o Estado e a sociedade. O reconhecimento da importância da capacidade de ação do Estado é característica da “terceira onda” e a análise do autor é uma tentativa de contribuir para este novo conceito. Para tanto, o autor examina diversos Estados, buscando uma comparação no que tange às campanhas de fomento à transformação industrial após a Segunda Guerra Mundial. O autor comparou alguns Estados, classificando-os em 3 tipos: Estados Predatórios, Estados Desenvolvimentalistas e Estados Intermediários (uma mescla de desenvolvimentalista e predatório). Para exemplificar o modelo de Estado Predatório, Peter Evans utilizou o Estado de Zaire, segundo ele, um caso exemplar de predação, que significa dizer que o aparelho de Estado não possui nenhum respeito por sua sociedade, consome o excedente que extrai, incentiva atores privados a mudarem suas atividades produtivas para a improdutiva “orientação para renda”, ou seja, para a corrupção. Zaire é um caso típico de Estado decadente, onde prevalecem o patrimonialismo e uma mistura de tradicionalismo com arbitrariedade. O recrutamento para cargos de alto escalão do Estado é feito dentro do círculo familiar e de amizade do governante. Com tantos problemas, Zaire acaba não sendo um Estado autônomo, pois sofre com interesses privados e não prioriza os objetivos coletivos. No segundo modelo, Evans analisa os Estados asiáticos Coréia, Taiwan e Japão que, segundo ele, são exemplos de Estados Desenvolvimentalistas, onde prevalece o sucesso econômico. Nestes países a burocracia é coerente e o sistema de recrutamento é pautado pela meritocracia e por sistema informal interno, que consiste em laços entre colegas de classe nas universidades da elite onde se recrutam os funcionários. Funcionários esses que, por sua vez, são recompensados com carreiras de longo prazo, criando, desta forma, um compromisso com o Estado e um senso de coerência corporativa. A autonomia do Estado no modelo desenvolvimentalista é nítida, uma vez que, ao inverso da dominação absolutista incoerente do Estado predatório, constitui a chave organizacional para a eficácia do Estado. É uma autonomia inserida em um conjunto concreto de laços sociais que amarram o Estado à sociedade, facilitando as relações entre ambos. No último exemplo, o autor analisa os casos de Índia e Brasil, classificados por ele como Estados Intermediários, onde podem ser observadas características dos dois modelos anteriormente relatados. No Brasil, se tratando de recrutamento para o serviço público, observa-se uma ampla extensão de poderes de indicação política e, consequentemente, uma dificuldade em institucionalizar procedimentos de recrutamento meritocrático. Enquanto no Japão são indicados por políticos apenas dúzias de funcionários, na América do Norte centenas, no Brasil, são indicados milhares. Como consequência desse apadrinhamento surge a falta de comprometimento dos funcionários comissionados para com a administração pública, uma vez que esses são substituídos cada vez que se muda o governo, seja no âmbito federal, estadual e municipal. Essa falta de comprometimento, por sua vez, prejudica muito a qualidade dos serviços públicos prestados. A falta de uma estrutura burocrática estável complica o estabelecimento de laços regulares com o setor privado e a sociedade. Com relação a autonomia inserida, característica peculiar do Estado Desenvolvimentalista, no Brasil, ela é mais parcial que global, limitando-se a certos “bolsões de eficiência”. Já na Índia, embora o recrutamento de servidores seja via concurso de âmbito nacional, muito concorrido por sinal, as carreiras não são sólidas e se caracterizam pelo mesmo tipo de rotação do Estado brasileiro. Neste Estado, há muitos problemas com relação à burocracia, mas as dificuldades de estabelecer conexões com a estrutura social envolvente parecem ser a causa mais grave do desgaste das instituições do Estado. Enfim, em sua obra, Peter Evans nos permite compreender a lógica do Estado a partir das interações entre Estado e sociedade, bem como o seu sucesso ou fracasso como propulsor do desenvolvimento econômico do país, através de sua burocracia, incluindo a sua forma de recrutar profissionais. O autor salienta que a burocracia está em falta, e não em excesso. Para Humberto Falcão Martins, no texto “Burocracia e a revolução gerencial – a persistência da dicotomia entre política e administração”, o primeiro problema da burocracia é de natureza epistemológica, que consiste no fato de que, por ser complexa demais, é difícil de ser absorvida e compreendida em sua totalidade pelas organizações. Mas o problema maior, dito pelo autor como problema central da burocracia, é político. Mais precisamente, a dicotomia entre administração e política, ou seja, uma desintegração entre elas, que acaba causando esse enorme problema, dificultando o bom governo e as consequências positivas deste. Porém, para agregar os interesses da sociedade civil e para formular políticas públicas, política e administração integram-se ou dicotomizam-se de diferentes formas, a medida que competem entre si ou cooperam-se. Mais uma vez destaca-se a importância da participação popular, onde o autor relata que a inserção social, mediante orientação para o usuário, é uma forma de equilíbrio necessária à regulação da burocracia e da política e sua influência sobre a burocracia. A medida que a autonomia inserida e regulada aumenta, tem-se um cenário de maior integração entre política e administração, o que evita um cenário de captura (onde a autonomia da política leva a um padrão tipicamente clientelista), um cenário de insulamento (onde a autonomia da administração pode resultar em auto-orientação ou alianças espúrias do tipo anéis burocráticos) e, o pior cenário de todos, a paralisia, onde a ação burocrática perde autonomia, não insere e não está politicamente regulada. A má interpretação da burocracia weberiana leva alguns estudiosos a defenderem o que chamam de “organização pós-burocrática” que, na visão deles, é um tipo de organização mais flexível, mais temporal, mas adequada à dinâmica ambiental de turbulência e incerteza, baseando-se no falso pressuposto de que o problema da burocracia é exclusivamente organizacional. Porém, toda organização administrada segundo critérios racionais e hierárquicos é burocrática. Algumas podem ser mais flexíveis, outras não, mas todas são burocráticas. Portando, sendo a dicotomização entre administração e política o maior problema da burocracia weberiana, a chamada organização pós-burocrática deve ser um tipo de organização que tenha como objetivo equacionar essa dicotomia e isso depende dos requisitos de inserção e regulação. Na administração pública brasileira, a dicotomização entre política e administração é um traço distintivo. O próprio DASP, criado para ser o principal agente da modernização da administração pública brasileira, possuía um caráter totalmente fechado, de sistema insulado. Esse insulamento burocrático daspeano e o regime do Estado Novo constituíram-se, respectivamente, as formas de autonomia insulada e regulação autocrática. Outros problemas marcaram a trajetória da modernização da administração pública brasileira que, nos dias de hoje, está diante de uma oportunidade única: modernizar-se na democracia. Isto implica o grande desafio de se integrar meios de regulação política com meios de inserção social. Em seu texto, Martins apresenta três modelos de administração pública em uma tentativa de caracterizar a revolução gerencial: o modelo ortodoxo, o modelo liberal e o modelo empreendedor de administração pública. O modelo ortodoxo tende a prescrever reformas centradas no emprego e aprimoramento de meios como fatores de eficiência para o fortalecimento institucional de organizações e poderes. Do ponto de vista organizacional, trata-se de uma proposta de aumento da produtividade do executivo federal, construindo-se organizações estatais para o aprimoramento da gestão pública. A visão liberal, ao contrário da ortodoxa, propõe um modelo de administração pública baseado na lógica de mercado, onde destacam-se as correntes monetarista e neoliberal. Essa proposta liberal de administração pública inverte a visão de burocracia pública e subverte-a à lógica do mercado, posicionando-se contra o Estado. Já o modelo empreendedor da administração pública baseia-se na prescrição de técnicas originalmente empresariais, tais como reengenharia e gestão da qualidade total à gestão de organizações públicas, com o argumento de que há pressões crescentes para o aprimoramento dos serviços e a redução das despesas, mediante restrições orçamentárias. Os três modelos apresentados pelo autor apresentam características dicotomizantes. O modelo ortodoxo baseia-se exclusivamente na regulação política, sem inserção social direta e explícita, tendo a autonomia burocrática minimizada pela regulação política. O modelo liberal baseia-se tanto na regulação política quanto na inserção social em bases tipicamente mercadológicas, mas sempre buscando a minimização da autonomia burocrática. O modelo empreendedor, por sua vez, baseia-se essencialmente na inserção social mediante alta autonomia relativa. É possível ver que a inserção social é um fator muito importante para a burocracia ideal. No Brasil, a modernização gerencial e a inserção social são certamente um requisito de excelência para as organizações públicas, que tendem a ser ortodoxas e insuladas. Portanto, assim como Peter Evans, Humberto Falcão Martins também defende, em sua obra, a autonomia inserida, ou seja, uma combinação de colaboração e isolamento, evitando a autonomia completa da política ou burocracia (administração). Uma abordagem dicotômica de atuação do Estado, restringe a possibilidade de inclusão e participação social na condução de políticas públicas. Deste modo, é possível afirmar que o Estado deve promover o equilíbrio entre os interesses dos diversos grupos sociais, sendo que sua estrutura deve estar em conexão com as demandas sociais, como condição fundamental para o desenvolvimento social e econômico. Referências: CARVALHO, Eneuton Dornelles Pessoa. O aparelho administrativo Brasileiro: sua gestão e seus servidores – do período Colonial a 1930. In: Cardoso Jr, José Celso (org.). Burocracia e ocupação no setor público brasileiro EVANS, Peter. O Estado como problema e solução. MARTINS, Humberto Falcão. Burocracia e a revolução gerencial — a persistência da dicotomia entre política e administração. Revista do Serviço Público, Ano 48, Número 1, p. 42-78. ENAP: Brasília, jan-abr., 1997.