Os crimes de contrabando ou descaminho à luz dos princípios da insignificância e da adequação social[1]

 

Raul César da Rocha Vieira e Lucas Tavares L. Guimarães[2]

 

 

Sumário: Introdução; 1 Do contrabando e descaminho; 2. Dos princípios da insignificância e adequação social; 3. Dos crimes de contrabando ou descaminho em termos sociais; 4. Uma análise conceitual e jurisprudencial do crime de descaminho à luz do princípios da insignificância e da adequação social; Considerações Finais; Referências.

 

 

RESUMO

O artigo tem como proposta debater sobre a possibilidade de incidência dos princípios da insignificância e da adequação social nos crimes de contrabando ou descaminho, tipificados no artigo 334, do Código Penal Brasileiro. Esses crimes, não obstante estarem inclusos no mesmo tipo penal, apresentam condutas diversas, o que implica afirmar por extensão, que possuem estudos divergentes, o que pode implicar na possibilidade da bagatela ser usada em apenas uma das condutas.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Contrabando – Descaminho – Princípio da Adequação Social – Princípio da Insignificância.

 

 

 

INTRODUÇÃO

O crime de Contrabando ou Descaminho tipifica condutas cada vez mais praticadas pelos brasileiros, os quais, com o crescente número de viagens ao exterior, acabam por trazer mercadorias sobre as quais não são pagos os devidos tributos, ou mesmo mercadorias que são ilícitas, ou proibidas, no Brasil. De forma que esses atos, tão comumente praticados e que acabaram por tornar-se costume de grande parte da sociedade brasileira, especialmente o referente ao não pagamento de impostos sobre mercadorias licitas, acabam por enquadrar-se nas condutas tipificadas pelo artigo 334 do código penal brasileiro, o dito, Contrabando ou Descaminho.

Nesse sentido, o presente artigo busca fazer uma análise da possibilidade de aplicação de dois dos princípios do direito penal, os quais podem ser utilizados para deixar de penalizar uma conduta tipificada como crime no ordenamento jurídico, ou mesmo, torna-la atípica, quais sejam, o princípio da insignificância e o princípio da adequação social. Isto, levando-se em conta o fato de esses atos, como já foi dito, terem se tornado, não só práticas muito comuns, como costume, de boa parte da sociedade brasileira, práticas estas as quais acabam por configurar o crime do Art. 334 do CP.

Sendo de muita relevância a análise pretendida, uma vez que, ser costume dos cidadãos brasileiros sugere baixo nível de reprovação da sociedade a essas condutas, ou mesmo, uma não concepção ou valoração de tais atos como sendo criminosos, e que, diante do fato de que por vezes certos atos, embora relacionados a condutas tipificadas, não são, em muitos casos, danosos o suficiente para serem penalmente tutelados ou penalizados, torna-se pertinente apreciar a viabilidade, ou não, da utilização desses princípios, levando-se em consideração, e, inclusive, sustentando-se mais uma vez a relevância deste artigo, o fato desses serem muito importantes para que se evite uma criminalização em massa, ou desnecessária ,de determinados atos.

1. DO CONTRABANDO E DESCAMINHO

O crime de contrabando ou descaminho encontra-se tipificado no artigo 334 do código penal brasileiro e envolve, ou criminaliza, duas condutas diversas, quais sejam, a conduta referente ao “contrabando” e a conduta referente ao “descaminho”, ou contrabando improprio, ambas constantes do caput deste artigo, respectivamente, na primeira e segunda parte do mesmo, em acordo com as palavras de Rogerio Greco, 2012.

Art. 334. Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:

Pena- reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

§ 1º - Incorre na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; (Redação dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

b) pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho; (Redação dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (Incluído pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. (Incluído pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

§ 2º - Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. (Redação dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

§ 3º - A pena aplica-se em dobro, se o crime de contrabando ou descaminho é praticado em transporte aéreo. (Incluído pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965) (CODIGO PENAL BRASILEIRO DE 1940).

Assim temos a conduta do contrabando em “importar ou exportar mercadoria proibida” e a conduta do descaminho em “iludir, no todo ou em parte, o pagamento devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”, de maneira que, visto isto, é possível perceber claramente a existência de condutas diversas, as quais, embora tipificadas, como já foi dito, no mesmo crime ou artigo do código penal, devem ser analisadas separadamente, especialmente no âmbito do presente paper ( artigo científico), pois quando da aplicação de princípios como insignificância e adequação social, imprescindível é a análise do grau de reprovação da conduta praticada em relação à sociedade, bem como seu potencial ofensivo.

Partindo-se para a análise das condutas em separado, é possível perceber de plano que no crime de contrabando preocupou-se, o legislador, com a entrada ou saída do país, de mercadorias ilícitas, ou seja, mercadorias de comercio e/ ou consumo proibido no Brasil, enquanto que em se tratando do crime de descaminho, percebe-se uma preocupação com a arrecadação de impostos, do que, pode-se concluir duas condutas referentes a delitos penais com natureza jurídica distinta, já que, sendo ilegais, as mercadorias citadas na conduta do contrabando não são passiveis de cobrança de tributos, não havendo, portanto, nesta parte do texto normativo, tutela à cobrança de tributos ou arrecadação de impostos, e, dessa forma, uma vez que “[...] enquanto o descaminho, fraude no pagamento dos tributos aduaneiros, é, grosso modo, crime de sonegação fiscal, ilícito de natureza tributária pois atenta imediatamente contra o erário público, [...] O contrabando [...]  não se enquadra nos delitos de natureza tributária.”( CARVALHO apud GRECO, 2012.), comprova-se a diversidade de natureza jurídica entre o delito de contrabando o de descaminho

Além dessa diversidade em relação à natureza jurídica também percebe-se uma diversidade de objetos, pois, seguindo-se a lógica de que a primeira parte do caput do artigo anteriormente citado refere-se ao contrabando enquanto que a segunda ao descaminho, e, seguindo-se a mesma linha de raciocínio utilizada na análise das naturezas jurídicas, pode-se concluir que o objeto material do contrabando é a mercadoria ilícita e o do descaminho é o tributo, ou parte dele, devido pela entrada, saída ou consumo de mercadoria, lícita, já que não há o que se falar em cobrança de tributos sobre mercadorias ilícitas.

A administração pública é o bem juridicamente protegido pelo delito de contrabando ou descaminho.

O objeto material do delito é a mercadoria proibida, importada ou exportada, ou o direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadorias cujo pagamento fora iludido total ou parcialmente. (GRECO, 2012.)

 

2. DOS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

Princípios como adequação social e insignificância englobam um universo de princípios que se destinam a nortear, de certa maneira, e, em maior ou menor medida a depender do princípio, o direito penal, principalmente em sua aplicação, mas também na fase de criação das leis penais, de maneira que a observação de princípios desta natureza contribui com uma aplicação mais correta, por assim dizer, do direito penal, isto, em observância a princípios como o da fragmentariedade, relação que será explicada nos próximos parágrafos, e em coerência com o devido processo penal.

Quanto à adequação social desenvolve-se a ideia de que aquilo, ou aquela conduta, que não seja socialmente aceito, ou seja, adequado do ponto de vista social, não deve ser tutelado pelo direito penal, no sentido de que não deve o direito penal, criminalizar, ou mesmo apenar, condutas as quais são aceitas pela sociedade em geral, sendo que, desta ideia inicial surgem, ou derivam-se, mais concepções deste princípio dentro do âmbito penal, pois,

O princípio da adequação social, concebido por Hans Welzel, possui dupla função. Uma delas é a de restringir a abrangência do tipo penal, limitando sua interpretação e dele excluindo as condutas consideradas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade. Sua segunda função é dirigida ao legislador em duas vertentes. A primeira delas orienta o legislador quando da seleção de condutas que deseja proibir ou impor, com finalidade de proteger os bens considerados mais importantes. Se a conduta que está na mira do legislador for considerada socialmente adequada, não poderá reprimi-la valendo-se do direito penal. Tal princípio servi-lhe, portanto, como norte. A segunda vertente destina-se a fazer com que o legislador repense os tipos penais e retire do ordenamento jurídico a proteção sobre aqueles bens cujas condutas já se adaptaram à evolução da sociedade[...] (WELZEL apud GRECO, 2012.)

Desta maneira este princípio, ao menos em tese, pois a maioria da doutrina não aceita sua aplicabilidade no direito penal, e mesmo porque, não há dispositivo legal que torne obrigatória sua observância, aplica-se ao direito penal em três frentes, uma diretamente quando da aplicação da legislação penal, de forma que o aplicador da lei deve, ao interpreta-la, excluir da tutela desta, a condutas que, embora encaixem-se ao que tipifica o texto da lei, não são reprováveis socialmente, ou seja, são aceitas. A segunda, como elemento norteador do legislador, devendo guia-lo a uma não criminalização de condutas aceitas socialmente por meio da criação de legislação penal, tipificando-as como crime ou outro tipo de ilícito penal, e, por fim, a terceira frente, a qual, relaciona-se com a dinâmica social, já que deve orientar o legislador a retirar do ordenamento, então obsoleto, pois a dinâmica jurídica várias vezes não acompanha a velocidade de mudança da dinâmica social, normas que criminalizam condutas as quais, em tese, eram reprováveis socialmente mas não mais o são, atualizando-se, assim, o ordenamento jurídico.

No entanto, deve-se ressaltar que interessa-nos, para o que diz respeito  ao presente artigo cientifico, apenas a primeira frente deste princípio, qual seja, como já foi dito, sua utilização quando da aplicação das normas penais visando excluir de sua tutela condutas socialmente aceitas, ou aceitáveis, pois no âmbito do crime do Art. 334 do CP(código penal) a legislação, obviamente, já existe, não havendo o que ser dito em relação a nortear o processo legislativo, ou mesmo, não se pretende aqui, discutir a possibilidade de alteração o texto legal, e sim, a possibilidade de aplicação deste princípio, juntamente com o da insignificância, quando da aplicação da lei.

Já o princípio da insignificância consiste em uma excludente de tipicidade, e também de punibilidade, logicamente, pois não é punível aquilo que não é típico, o qual funciona, igualmente a adequação social, como forma de excluir do âmbito de proteção do direito penal, ou de uma norma, certas condutas, mas, diferentemente desta, aqui, trabalha-se, apesar de também relacionar-se com a ideia de aceitação social das condutas, mais com a ideia de pouca relevância da conduta ou do ato, de sua insignificância, fato que deve ensejar, segundo tal princípio, na atipicidade do ato, excluindo-a da tutela penal, ato este que, embora sob uma perspectiva de interpretação literal, corresponda à conduta tipificada, deve ser considerado atípico por ser insignificante.

Fazendo-se entender por meio de uma exemplo, teríamos, como insignificante, do ponto de vista penal, o ato de um sujeito em pegar um chiclete da prateleira de um supermercado e leva-lo em sua posse, ou consumi-lo, sem fazer o pagamento pelo mesmo, fato que, configuraria, ao analisarmos a conduta descrita no tipo penal, o crime de furto, mas que, devido a insignificância de um chiclete, tanto em quantidade quanto em valor, em relação aos produtos e patrimônio de um supermercado, e em relação a parâmetros gerais de valor, está passível de aplicação deste princípio, tornando-se, tal ato, atípico, e, assim, não mais passível de punição advinda do direito penal.

Princípio da insignificância

Analisado em sede de tipicidade material, abrangida pelo conceito de tipicidade conglobante, tem a finalidade de afastar do âmbito do direito penal aqueles fatos que, à primeira vista, estariam compreendidos pela figura típica, mas que, dada sua pouca ou nenhuma importância, não podem merecer a atenção do ramo mais radical do ordenamento jurídico. Os fatos praticados sob o manto da insignificância são reconhecidos como de bagatela. (GRECO, 2012)

Uma vez entendidos os aspectos supracitados sobre o princípio da insignificância resta importante dizer de sua relação, inclusive já suscitada, com o princípio da fragmentariedade, pois, “nem todas as ações que atacam bens jurídicos são proibidas pelo direito penal, nem tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por ele. O direito penal, [...], se limita somente a castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes.” (CONDE apud GRECO, 2012.),e, assim sendo, é de bom cumprimento do princípio da fragmentariedade, este bem aceito doutrinariamente e também na pratica, que se ponha em ação o princípio da insignificância, pois, apesar de condizer com conduta típica, sendo um ato de caráter insignificante, ou de pouquíssima ou nenhuma importância, não há porque movimentar o maquinário penal, visto que o mesmo só deve exercer tutela quando de ações mais graves, em acordo com o princípio da fragmentariedade.

Por fim, é importante ressaltar que, diferentemente do princípio da adequação social, o princípio da insignificância é bem aceito pela doutrina e, inclusive, como veremos ao decorrer deste paper, utilizado, de fato, na aplicação do direito penal. No entanto, deve-se salientar também que, embora menos aceito e menos aplicável que o princípio da insignificância, a adequação social pode facilmente acompanhar a aplicação deste, e que, de uma forma ou de outra, por várias vezes, em que determinada lei penal for reflexo da moral e dos costumes de uma sociedade, esta adequação social estará sendo observada, pois um texto normativo que reflita a moral e os costumes, de certo não estará criminalizando conduta social e moralmente aceita.

 

3. DOS CRIMES DE CONTRABANDO E DESCAMINHO EM TERMOS SOCIAIS

Para analisar o crime de contrabando ou descaminho em relação à sociedade devemos forcar-se em um aspecto crucial, qual seja, a reprovabilidade social da conduta, além de também analisar o potencial ofensivo desta, ao bem jurídico, um vez que isso também influencia, em alguma medida ou maneira, a reprovabilidade atribuída a conduta e, nesse sentido, é necessário analisar separadamente as condutas do contrabando e do descaminho, pois, por serem diversas uma da outra, e por configurarem delitos de natureza jurídica diferente, possuem, como já foi dito anteriormente, graus de reprovabilidade diferentes.

Primeiramente, quanto ao descaminho, é possível perceber na sociedade brasileira atual, especialmente com o recente desenvolvimento econômico, o crescimento no número de viagens internacionais, viagens estas, que proporcionam aos cidadãos brasileiros a oportunidade de compra, em países como os Estados Unidos Da América, ou mesmo países da Europa, de mercadorias a preço consideravelmente mais barato do que dentro do Brasil, desta maneira, torando-se costume dos brasileiros, ou de boa parte da sociedade brasileira, a qual tenha condição de realizar tais viagens, ir as compras no exterior.

De acordo com avaliação do chefe do Departamento Econômico do BC, Tulio Maciel, o aumento da renda dos brasileiros tem “favorecido” as viagens ao exterior. Segundo ele, os dados parciais de abril, até o dia 22, indicam continuidade do crescimento dessas viagens. Em abril, até o dia 22, os gastos de brasileiros no exterior ficaram em US$ 1,513 bilhão, enquanto as receitas de estrangeiros que visitaram o Brasil chegaram a US$ 454 milhões. (REVISTA ÈPOCA, 24 de abril de 2013.)

Dessa maneira, e levando-se em conta a existência de cotas estabelecidas pelo próprio Estado, referentes às quantidades e valores de mercadorias as quais poderão entrar no país livres de tributação, podemos dizer, levando-se em conta o costume, e, sendo costume, é porque é aceito socialmente, e, muito pouco ou não reprovável, que, nas vezes em que essas cotas não são obedecidas, a conduta de trazer este excesso, por assim dizer, ao país, sem submetê-lo à tributação, não possui,  ou possui pouca, reprovabilidade social, a depender de aspectos como  a quantidade e o valor do que está se trazendo do exterior, se está trazendo os objetos para uso pessoal ou para venda, se para venda, em estabelecimento comercial ou se apenas para venda informal para amigos e familiares, ou pessoas conhecidas em geral, enfim, inúmeros aspectos o quais vão nortear essa reprovação maior ou menor por parte da sociedade, bem como o potencial ofensivo da conduta ao bem jurídico tutelado.

Fazendo-se entender por um exemplo, é mais reprovável a conduta de trazer grande quantidade para vender em estabelecimento comercial do que trazer quantidade moderada para uso pessoal ou uso de seus familiares, isto, pois, ao menos em tese, o dono de estabelecimento comercial que o abastecesse desta maneira, estaria em injusta vantagem em relação a outros empresários da localidade, prejudicando-os. Importante expor, rapidamente, que, a quantidade de mercadorias que, em regra, é trazida por um cidadão médio de uma viagem ao exterior, mesmo extrapolando-se as cotas estabelecidas, pode, mediante análise feita pelo aplicador da lei, facilmente, enquadrar-se na insignificância, já explicada em outros capítulos, no entanto, isto será melhor analisado nos próximos capítulos.

Já em relação à conduta do contrabando, quanto à maior ou menor reprovação e ofensividade, valem as mesmas condições já expressas quanto ao descaminho, quantidade de mercadorias e os fins que serão dados as mesmas (uso pessoal, venda, etc.), no entanto, aqui no contrabando, por se tratar de mercadorias ilícitas, há o que se falar em consideravelmente maior reprovabilidade social e potencial ofensivo em relação ao  descaminho, mas, no entanto, ainda assim, a reprovabilidade aqui será pequena, bem como a ofensividade ao bem jurídico, especialmente em contraste com outras condutas tipificadas, como por exemplo, o tráfico de drogas, o qual carrega grandessíssima reprovabilidade social e ofensividade, pois, nesse sentido, embora ilícita a mercadoria, não se trata de algo como narcóticos, pois se o for, passará a configurar o tráfico de drogas e não mais o contrabando,  o qual, como já foi dito, possui grande grau de reprovação pela sociedade em geral.

Por fim, de maneira geral, da análise do contrabando ou descaminho em termos, ou em relação à sociedade, percebe-se que,  não representam, tais crimes, condutas muito reprováveis pela sociedade, pelo contrário, são pouco reprováveis, sendo, em alguns casos, como já visto, até dotadas de reprovação alguma, do ponto de vista social e moral, apesar de tipificadas pelo direito penal.

4. UMA ANÁLISE CONCEITUAL E JURISPRUDENCIAL DO CRIME DE DESCAMINHO À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

Como é sabido, o tipo do artigo 334 do Código Penal Brasileiro abrange duas modalidades de crimes: o contrabando – quando o agente importa ou exporta mercadoria proibida, e o crime de descaminho, que ocorre quando o agente iludi o pagamento de imposto ou direito aduaneiros devidos pela entrada, saída ou pelo consumo de mercadoria. Assim, há de ser observado que quanto ao crime de contrabando, inexiste a aplicação do princípio da insignificância, haja vista que com a importação ou exportação de mercadorias consideradas pela legislação brasileira como proibidas, por menores quantidades que sejam, sempre acarretam em expressiva lesividade ao bem jurídico tutelado.
Portanto, observar-se-á a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela, somente quanto à segunda parte do tipo, ou seja, quanto ao crime de descaminho.
Entretanto, antes de adentrar à análise da aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, importante frisar a tênue relação desse princípio com a tipicidade conglobante. Isso pois, por menor que seja a lesividade da conduta, se praticada nos moldes do tipo incriminador, estará presente a chamada tipicidade formal. Dessa forma, pode-se afirmar que quando da aplicação do princípio da bagatela, sempre haverá a tipicidade formal, devendo então analisar-se caracterização da tipicidade conglobante. Assim, caso a tipicidade conglobante não esteja presente, pode-se aplicar o princípio da insignificância.
Para um melhor entendimento, a tipicidade conglobante, segundo as palavras de Greco, surge:
“(...) quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material).” (GRECO, Rogério. 2011, p.157)
 
Dessa maneira, por meio da tipicidade conglobante é que se examinará se o crime, mesmo tendo se adequado ao tipo, possui significante relevo a ponto de estar sob a égide da Direito Penal.
Visto isso, pode-se então analisar o tipo penal específico do descaminho. 
É fato que significativa parcela da sociedade usa o comércio de mercadorias trazidas do estrangeiro como sustento próprio e de sua família. Essa prática é resultado de anos de descaso por parte do Estado, no sentido de proporcionar melhores condições de vida para seus cidadãos. Com isso, mesmo que a prática desse ato, seja considerado como crime, a sociedade não vê como um ato capaz de causar importante lesividade, haja vista ser uma prática aceita pela população. Assim, pode-se afirmar que essa prática do crime de descaminho, se realizada sob condições irrelevantes, pode ser abrangida pelo princípio da insignificância. No entanto, surge então o dilema de como aferir até que ponto a conduta criminosa (formalmente) será irrelevante para o Direito Penal.
Dessa forma os tribunais, ao entenderem a aplicação do princípio da bagatela ao caso em tela, adotaram como parâmetro o artigo 20, da Lei 10.552/02, com redação dada pela Lei 11.033/04, que assim dispõe:
“Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos da execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).” 
 
Esse artigo, demonstra que Administração Pública expressamente demonstra seu desinteresse em executar dívidas fiscais, menores ou iguais à dez mil reais. Isso ocorre por diversos motivos, como os altos custos de levar ao judiciário a cobrança desses impostos. Custos esses, que ao final do processo somariam um montante superior ao valor da dívida. Todavia, motivos de lado, o certo é que os tribunais entendem ser inadmissível uma punição no âmbito penal, que é o utilizado como “ultima ratio”, quando a Administração Pública claramente apontou seu desinteresse, deixando de punir administrativamente o agente pela conduta. 
Assim, para demonstrar o entendimento dos tribunais, vale ressaltar dois julgamentos recentes do Supremo Tribunal Federal – STF:

“HABEAS CORPUS. TIPICIDADE. INSIGNIFICÂNCIA PENAL DA CONDUTA. DESCAMINHO. VALOR DAS MERCADORIAS. VALOR DO TRIBUTO. LEI Nº 10.522/02. IRRELEVÂNCIA PENAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. O postulado da insignificância é tratado como vetor interpretativo do tipo penal, que tem o objetivo de excluir da abrangência do Direito Criminal condutas provocadoras de ínfima lesão ao bem jurídico por ele tutelado. Tal forma de interpretação assume contornos de uma válida medida de política criminal, visando, para além de uma desnecessária carceirização, ao descongestionamento de uma Justiça Penal que deve se ocupar apenas das infrações tão lesivas a bens jurídicos dessa ou daquela pessoa quanto aos interesses societários em geral. 2. Não é possível conceber a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, uma vez que as normas penais positivadas constituem, em última análise, simples manifestação da tutela que o Estado exerce sobre os bens que considera relevantes. Sob esse ângulo, afirma-se que o conceito de “bem jurídico” e, por consequência, de “lesão” desempenham papel central na teoria do tipo, dando sentido teleológico à lei penal e contribuindo para a formação de um conceito material de tipo penal. 3. No caso, a relevância penal é de ser investigada a partir das coordenadas traçadas pela Lei nº 10.522/02 (lei objeto de conversão da Medida Provisória nº 2.176-79). Lei que, ao dispor sobre o “Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais”, estabeleceu os procedimentos a serem adotados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em matéria de débitos fiscais. 4. Ordem concedida para restabelecer a decisão no HC nº 2001.61.20.007920-1, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.”(HC 96412, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 26/10/2010, DJe-051 DIVULG 17-03-2011 PUBLIC 18-03-2011 EMENT VOL-02484-01 PP-00041 LEXSTF v. 33, n. 388, 2011, p. 193-226) (Negritou-se)

Nesse julgado, demonstra-se que comprovadamente, utiliza-se do princípio da insignificância penal como vetor interpretativo para o crime de descaminho, de modo que não sejam atingidas condutas que não causem relevante lesão ao bem jurídico, qual seja o erário público.

“Habeas Corpus. Descaminho. Tributos não pagos na importação de mercadorias. Habitualidade delitiva não caracterizada. Irrelevância administrativa da conduta. Parâmetro: art. 20 da Lei n° 10.522/02. Incidência do princípio da insignificância. Atipicidade da conduta. Ordem concedida. A eventual importação de mercadoria sem o pagamento de tributo em valor inferior ao definido no art. 20 da Lei n° 10.522/02 consubstancia conduta atípica, dada a incidência do princípio da insignificância. O montante de tributos supostamente devido pelo paciente (R$ 1.645,26) é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos congêneres em nome do paciente. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. Precedentes. Habitualidade delitiva não caracterizada nos autos. Ordem concedida para o trancamento da ação penal de origem.”(HC 96852, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 01/02/2011, DJe-049 DIVULG 15-03-2011 PUBLIC 16-03-2011 EMENT VOL-02482-01 PP-00017) (Negritou-se)

 
No julgamento desse Habeas Corpus, bem como no julgamento do anterior, resta claramente demonstrado que o artigo 20 da Lei. 10.522/02, é parâmetro válido para verificar-se a incidência do princípio da bagatela no crime de descaminho, o que torna a conduta atípica, haja vista que como dito, a contuda não merece proteção penal, quando outros ramos do Direito expressamente demonstraram desinteresse pela conduta. Seria portanto, evidenciar o caráter subsidiário do Direito Penal, como “ultima ratio.”
Todavia, não obstante a jurisprudência utilizar-se largamente desse critério do desinteresse administrativo quanto à execução de dívidas iguais ou inferiores a dez mil reais, a doutrina tece intensas críticas à esse parâmetro.
É pacifico na doutrina e na jurisprudência a aplicação do princípio da insignificância para  o crime de descaminho. Entretanto, a doutrina entende não ser possível utilizar-se do parâmetro administrativo para avaliar a tipicidade conglobante. Isso porque o valor de dez mil reais, tendo em vista a situação econômica do país, seria um valor significativamente elevado. É o que entende Greco:
“Não se pode considerar a falta de interesse da Fazenda Pública, no sentido de processar suas execuções fiscais de débitos com valores inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais), para efeito de reconhecimento da insignificância. Uma coisa é o desinteresse em dar início à execução fiscal por questões de ordem econômica (ou seja, o custo do processamento judicial pode ser superior ao valor executado); outra coisa é se , no caso concreto, existe tipicidade material, o que nos parece evidente, tendo em vista o elevado valor previsto pelo art. 20 da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002 (...)” (GRECO, Rogério. 2012. p.539-540) 
 
Outro argumento importante levantado pela doutrina e defendido por Regiz Prado, é o de que o bem jurídico tutelado não seria somente o interesse econômico do Estado, mas estaria incluso na tipificação do crime de descaminho, o interesse no fomento da produção nacional em suas mais diversas áreas, como a manufaturada ou industrial, no produto nacional advindo da agropecuária, o que estaria prejudicado com entrada de mercadorias estrangeiras sem o devido pagamento de impostos, caracterizando uma concorrência desleal com os produtos locais. (PRADO, Regis. 2004. p.468-469)

Dessa forma, observa-se que apesar de não discutir-se mais sobre a possibilidade de aplicação do princípio da bagatela ao crime de descaminho, ainda perduram diversas dúvidas quanto a validade do parâmetro utilizado pela jurisprudência. Essas dúvidas não podem ser esgotadas com a estipulação de um parâmetro, haja vista que como afirmado alhures, o princípio da insignificância guarda estreita relação com a tipicidade conglobante, que só pode ser aferida a partir da observação de cada caso concreto levado ao judiciário.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este paper, pôde-se observar conceitualmente como ocorrem os crimes de contrabando e descaminho, bem como seus reflexos sociais. Assim, foi possível ainda, analisar o instituto da bagatela no Direito Penal, incidindo diretamente na conduta em tela estudada. Analisou-se então de que forma esse princípio atua de maneira a afastar a tipicidade material da conduta de descaminho. Esse parâmetro é a Lei 10.522/02, que com a redação dada pela Lei. 11.033/04, passou a entender que havia o desinteresse da Administração Pública em executar judicialmente dívidas com valores iguais ou menores a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Esse passou a ser então o paradigma que orienta a jurisprudência brasileira, na aplicação do princípio da insignificância quanto ao crime de descaminho, haja vista a Administração Pública ter expressamente demonstrado seu desinteresse em punir condutas que não ultrapassassem tal valor.

Ocorre que, como visto, desse paradigma, surgiram várias críticas na doutrina, no que tange ao valor utilizado de parâmetro, considerado de valor significativamente elevado, levando-se em conta a realidade econômica brasileira. Ainda nas críticas ao posicionamento da doutrina, posições destoantes da admitida nos tribunais surgiram, no sentido de que o bem jurídico tutelado com o crime de descaminho não seriam apenas os impostos aduaneiros, mas de maneira holística, todo o funcionamento da indústria local, que estaria em desigualdade de condições, na competição com produtos importados que não sofreram com o pagamento de impostos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GRECO, Rogério. Código Penal: Comentado. 6. ed. p. 5. Niterói, RJ: Impetus, 2012.

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OBRAS CONSULTADAS

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[1] Paper apresentado à disciplina de Direito Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Acadêmicos do 6° período do curso de Direito.