OS CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: ANÁLISE DO ARTIGO 1º DA LEI 8.176/1991 (DEFINE CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E CRIA O SISTEMA NACIONAL DE ESTOQUE DE COMBUSTÍVEIS)[1]

 

Mariana Nogueira dos Santos Cerqueira[2]

 

Maria do Socorro Almeida de Carvalho[3]

 

 

RESUMO

 

O presente trabalho visa primeiramente fazer uma abordagem sobre o Direito Penal Econômico, ao dispor sobre a sua concepção ampla e estrita. Posteriormente, abordar-se-á as relações existentes entre Direito Penal e ordem econômica. Em seguida, analisar-se-á especificamente o cenário de criação, bem jurídico, sujeito de delito, tipicidade objetiva e subjetiva, pena, ação penal e competência do artigo 1º, incisos I e II da Lei que define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis: Lei n.8.176/1991.

Palavras-chave:  Direito Penal Econômico. Crime contra a ordem econômica. Lei n.1876/91. Fontes energéticas.

1 INTRODUÇÃO

Não é de hoje que existe na sociedade normas positivadas que garantem a produção, circulação ou distribuição de riqueza, ou seja, uma verdadeira ordem econômica. Assim sendo, em qualquer sistema que exista uma ordem econômica, há necessidade de uma proteção. Percebe-se assim, a intrínseca relação Direito Penal e a economia.

O Direito Penal Econômico é o ramo responsável pela realização do intervencionismo jurídico-penal nas relações econômicas. Com escopo de equilibrar os valores patrimoniais e individuais e os de ordem pública, surge uma dupla perspectiva do Direito Penal Econômico: uma em sentido amplo e outra em sentido estrito.

Os crimes contra a ordem econômica tem ganhado importância no contexto jurídico da atualidade. Vários crimes estão lesando de forma bastante agressiva os bens jurídicos, fazendo com que haja cada vez mais a necessidade de uma intervenção penal na seara econômica.

Desse modo, o legislador sentiu necessidade de tipificar condutas que afetassem a ordem econômica, com escopo de garantir uma justiça social. Criou-se assim, a Lei n. 8.176/1991, a qual reprime atividades que estão relacionadas com as fontes energéticas. Proceder-se-á à análise do artigo1º, incisos I e II da referida Lei. Para tanto, será necessário analisar a dupla abordagem conceitual do sentido amplo e estrito do Direito penal Econômico, bem como as relações entre Direito Penal e ordem econômica.

2 DIREITO PENAL ECONÔMICO

Um dos ramos do Direito Penal é o Direito Penal Econômico, o qual dedica-se as infrações contra a ordem econômica, ou seja, pertence a uma área do direito penal que sanciona ações humanas que influenciam as relações econômicas, lesando bens jurídicos penais considerados relevantes (BALDAN, 2009, p.125).

Nesse viés, abordaremos no presente capítulo o sentido amplo e estrito do Direito Penal Econômico e as relações entre direito penal e ordem econômica, de modo a consolidar o entendimento sobre os crimes contra a ordem econômica, mais especificamente, o do artigo 1º, incisos I e II da Lei 8.176/91.

 

2.1 UMA DUPLA ABORDAGEM CONCEITUAL: SENTIDO AMPLO E SENTIDO ESTRITO

São evidentes e antigas as ambivalentes relações entre a economia e a criminalidade (BALDAN, 2009, p.123).

Os termos relativos a esse assunto não estão bem delineados. Assim sendo, narra-se Direito Penal Econômico, Direito Penal Comercial, Direito Penal dos Negócios, Direito Penal Social Econômico. Contudo, essa tentativa de conceituação do Direito Penal Econômico acaba se tornado “fracassada”, uma vez que “a acentuada historicidade, o dinamismo e o seu caráter nacional desde Direito condenam inescapavelmente os autores ao desencontro, porquanto têm de haver-se com realidades diversas” (DIAS, 1999, p.81).

Nesse ponto, há a pretensão de estabelecer um equilíbrio entre os valores individuais e patrimoniais e os de caráter público, permitindo assim, a concepção do Direito Penal Econômico sobre duas perspectivas: uma em sentido amplo e outra em sentido estrito (BALDAN, 2009, p.127). Com isso, será explicitado no presente tópico esses duas abordagens.

O Direito Penal Econômico em sentido estrito é definido como “conjunto de normas jurídico-penais que protegem a ordem econômica, entendida como regulação jurídica do intervencionismo estatal na Economia”. Nesse sentido, o Direito Econômico é visto como um Direito da Economia administrado pelo Estado (BAJO, 2001, p.11 apud VELLOSO, 2007, p.136).

A principal característica do Direito Penal Econômico é a intervenção estatal por meio do jus puniendi (VELLOSO, 2007, p.136). Corroborando o raciocínio, aduz Baldan (2009, p.128):

O que caracteriza o Direito Penal Econômico é que se constitui ele num grau mais intenso de intervenção estatal na economia, mediante o uso do jus puniendi. Finalidade e função do Direito Penal Econômico consubstanciam, pois, finalidade e função do intervencionismo: cumprir as exigências de uma valoração diferente do imperativo de Justiça aplicado às relações sociais e econômicas (grifo nosso).

Os delitos econômicos em sentido estrito são “infrações jurídico-penais que lesionam ou põem em perigo esta ordem econômica entendida como regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia do país” (VELLOSO, 2007, p.138). Como exemplo de delito econômico, cita-se os delitos contra a ordem econômica do artigo 1º, incisos I e II da Lei 8.176/1991.

Nesse diapasão, o conceito de Direito Penal Econômico é válido em todo o sistema econômico, pois não existe um lugar que não haja uma ordem econômica para se proteger (BASTOS, 2003, p.129).

Contudo, existe uma definição mais ampla do conceito de Direito Penal Econômico. Segundo Deodato (2008, p.120), trata-se de um “conjunto de normas jurídico-penais que protege a ordem econômica entendida como regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços”. Ou seja, os delitos econômicos são violações que prejudicam o bem jurídico patrimonial do indivíduo, prejudicando ou ameaçando a regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços.

Pode-se observar que a abordagem conceitual ampla possui dois momentos.  Tem-se a inserção da proteção do bem jurídico, em um primeiro momento. Em um segundo momento, é objeto de tutela os interesses patrimoniais individuais (BASTOS, 2003, p.130).

Diante do exposto, nota-se que na concepção ampla do Direito Penal, deixa-se de lado a proteção do novo intervencionismo estatal para proteger a atividade econômica dentro de uma economia de mercado. Assim sendo, os limites do Direito Penal Econômico são ampliados, onde a ordem econômica possui bem jurídico de segunda ordem -diferentemente da concepção estrita- por detrás dos interesses patrimoniais individuais (BALDAN, 2009, p.130).

2.2 RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E ORDEM ECONÔMICA

Houve um período em que o Direito Penal Econômico recebia um tratamento de “subúrbio imprestável do Direito Penal”, uma vez que, à época, não havia uma ordem econômica verdadeiramente, ou seja, normas positivadas que garantissem a produção, circulação ou distribuição de riquezas. A sociedade era organizada sobre definições da autonomia da vida contratual e da liberdade de comércio e indústria (BALDAN, 2009, p.122).

Atualmente, os estudiosos do Direito Penal Econômico não têm dúvida que onde existe um sistema econômico, sempre esteve presente um Direito Penal Econômico, já que o legislador deve adaptar as normas do Direito Penal Econômico à realidade socioeconômica, em um determinado momento histórico (BALDAN, 2009, p.122).

Sabe-se que o dinheiro é um “motor” da economia capitalista em que vivemos. É um meio que pode assegurar o possuir, o prazer, as vitórias, o bem-estar, fama, status na sociedade etc. Contudo, algumas pessoas alcançam as últimas consequências para obterem cada vez mais riquezas. Muitas extrapolam bem mais do que é suficiente para a sobrevivência, cometendo assim, vários crimes, dentre eles, os que atentem a ordem econômica (VIEIRA, 1997, p.134-135).

Sendo assim, a criminalidade econômica acaba por abalar o aspecto estrutural do Estado, pois arruína a confiança da sociedade no sistema financeiro, econômico e social. Desse modo, há necessidade de um imperativo de justiça, qual seja, o Direito Penal, com escopo de punir de forma eficaz a delinquência (DEODATO, 2008, p. 130).

Nesse cenário, fez-se necessário tipificar condutas, com escopo de corrigir desvios e proteger os valores éticos e sociais. Assim, o legislador seleciona o bem jurídico sobre o qual vai ser objeto de tutela penal. Frisa-se que tal tutela é dos bens jurídicos considerados relevantes para a vida do indivíduo e da própria coletividade (VELLOSO, 2007, p.155). No presente trabalho, o legislador tratou de assegurar a ordem econômica relativa às fontes energéticas, como será abordado no capítulo seguinte.

Com a prática de um delito econômico, faz-se mister a intervenção estatal, com escopo de proteger não apenas interesse estatal, mas sim de toda a sociedade. Desse modo, garantir-se-á um equilíbrio justo entre produzir, fazer circular e distribuir riqueza entre os variados grupos sociais (CASTILHO, 1998, p.157).

A relação entre a intervenção do direito penal no domínio econômico é indispensável para os Estados Democráticos de Direito garantirem uma justiça social. Desse modo, o direito cumpre um importante papel no combate à delinquência econômica. O controle penal da economia faz-se necessário para coibirmos, na nossa sociedade, a participação cada vez maior de pessoas/empresas que efetivam os delitos contra os recursos energéticos (DEODATO, 2008, p.135).

Diante do exposto, observa-se a forte e importante relação entre Direito Penal e ordem econômica.

 

3 CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA: ANÁLISE DOS TIPO PENAIS DO ARTIGO 1º, I E II DA LEI Nº 8.176/91 (DEFINE CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E CRIA O SISTEMA NACIONAL DE ESTOQUE DE COMBUSTÍVEIS)

Dentre os crimes que estão lesando a ordem econômica, encontra-se o disposto no artigo 1º, I e II da Lei 8.176/91, a saber:

Art. 1º. Constitui crime contra a ordem econômica:

I - Adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico hidratado carburantes e demais combustíveis líquidos carburantes em desacordo com as normas estabelecidas na forma da Lei;

II - Usar gás liquefeito de petróleo em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimentos de piscinas, ou para fins automotivos, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei.

Pena – detenção, de 1(um) a 5 (cinco) anos.

Diante do exposto, aufere-se que constitui crime contra a ordem econômica a adulteração dos combustíveis. Esta consiste na aquisição, distribuição e revenda de qualquer líquido carburante (composto derivado do petróleo, álcool hidratado, etc.), além do gás natural e suas frações recuperáveis. Embora a adulteração de combustíveis tenha como efeitos mais visíveis a lesão à ordem tributária (diminuição dos tributos) e à lesão ao patrimônio do particular (danos nos motores dos veículos), considera-se também bastante afetada a ordem econômica, uma vez que que a gestão dos recursos energéticos é uma atividade imprescindível para o desenvolvimento econômico do país (AMARAL, 2010, p.90).

Proceder-se-á ao estudo do referido crime contra a ordem econômica.

3.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS  

A constituição brasileira de 1934 foi a primeira Carta Magna a prever a possibilidade de monopólio pela União de indústria ou atividade econômica[4]. O tema também foi disposto na Constituição brasileira de 1946, no seu artigo 146[5] (PRADO, 2007, p.72).

Esse dispositivo legal permitiu a insurgência da Petróleo Brasileiro S.A (Petrobras), por meio da Lei 2.004/1953, a qual é uma sociedade de economia mista (capital público e privado), sob o controle da União, objetivando a execução das atividades abrangidas pelo monopólio que ela institui (BASTOS, 2003, p.344).

Sobre o tema, a Constituição de 1967, no seu artigo 162 afirmava que “a pesquisa e a lavra do petróleo em território nacional constituem monopólio da União, nos termos da lei”. O mesmo teor foi disposto posteriormente, no artigo 169 da Emenda Constitucional n.1, de 17.10.1969 (PRADO, 2007, p.72).

Com efeito, na Constituição de 88, em seu artigo 177, estava disposto, dentre outras coisas, o monopólio da União para “I – pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural e ou­tros hidrocarbonetos fluidos; II – a refinação de petróleo nacional ou estrangeiro”. Com o a EC n.9, em 09/11/1995, foi acrescido o §1º ao artigo 177, o qual dispunha que “a União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em lei”. Desse modo, antes da Emenda Constitucional nº 9, havia monopólio da União por meio da Petrobrás. Após a edição da referida emenda, outras empresa públicas ou privadas poderiam explorar o segmento econômico (AMARAL, 2010, p.90).

Nesse cenário legislativo, merece destaque a Lei 8.176, de 08.02.1991, a qual define crime contra a ordem econômica e cria o Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis. O mesmo tema passou a ser versado na Lei 9.478/1997, que aduz sobre “a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo”. Diante disso, foi iniciada uma etapa nova no que diz respeito à indústria de petróleo brasileira (PRADO, 2007, p.74).

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) desempenha um papel importante nesse cenário. Trata-se de uma entidade da Administração Pública indireta, a qual está submetida ao regime de autarquia vinculado ao Ministério das Minas e Energia. Ela desempenha o papel de proporcionar a regulação, contratação e fiscalização das atividades econômicas que integram a indústria de petróleo (AMARAL, 2010, p.90).

Essa entidade desenvolve suas atividades a partir das diretrizes do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), destacando-se no controle do Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis, bem como na fiscalização de todas as etapas da qualidade do combustível, seja na produção, importação, refino, beneficiamento, tratamento, processamento, transporte, armazenagem, distribuição, revenda e comercialização até o consumidor final, abarcando, portanto, além do petróleo e derivados, gás natural e o álcool etílico combustível (AMARAL, 2010, p.90).

Os princípios básicos que orientam as atividades das indústrias de petróleo, gás natural e biocombustíveis estão estabelecidos na Lei 9.487/1997. Nesse viés, o seu artigo 8º dispõe que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis “promoverá a regulação, contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis” (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 155).  

Também deve ser citada a Lei 9.497, de 26.10.1999, a qual dispõe sobre a fiscalização das atividades concernentes ao abastecimento nacional de combustíveis, de que trata a Lei 9.478, de 06.08.1997, estatui sanções administrativas e dá outras providências. Ademais, aduz que as atividades relacionadas à indústria de petróleo e ao abastecimento de combustíveis, o desempenho do Sistema Nacional de Combustíveis e do cumprimento do Plano Anual de Estoque Energéticos de Combustíveis será cumprida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Combustíveis (ANP) (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 155).

3.2 BEM JURÍDICO E SUJEITO DO DELITO

Segundo Andreucci (2011, p.121), o bem jurídico do crime em comento é a “política econômica relativa à normalidade do abastecimento nacional de petróleo, de seus combustíveis derivados, de álcool destinado para fins carburantes e de outros combustíveis líquidos carburantes, além do Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis”. Ou seja, reprime atividades que atentem contra a ordem econômica, mais especificamente, as fontes de energia.

 O tipo penal ora analisado é um crime comum, uma vez que o sujeito ativo é qualquer pessoa pode realizar as condutas enumeradas na lei (PRADO, 2007, p.75). Por sua vez, Andreucci (2011, p.121) faz uma distinção entre os sujeitos ativos do inciso I e do inciso II. Com relação ao primeiro inciso, o sujeito ativo seria o diretor, gerente ou proprietário do estabelecimento industrial ou comercial. Em se tratando da modalidade do segundo inciso, compartilhando do mesmo entendido de Prado, o sujeito ativo seria qualquer pessoa.

Os sujeitos passivos do crime ora analisado, são a União e as empresas autorizadas por lei a produzir bens ou explorar matéria-prima a ela pertencentes (PRADO, 2007, p.75). Com relação ao sujeito passivo, Andreucci (2011, p.121) considera que é a coletividade, e de forma secundária, a pessoa que eventualmente sofreu o prejuízo.  

 

3.3 TIPICIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA

O artigo ora analisado aduz que constitui crime contra a ordem econômica as condutas enumeradas no incisos I e II.

Analisar-se-á as os elementos descritivos do tipo.

O inciso I dispõe que constitui crime contra a ordem econômica “adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico hidratado carburantes e demais combustíveis líquidos carburantes em desacordo com as normas estabelecidas na forma da Lei”

Assim, as condutas incriminadoras desse inciso são adquirir (obter, gratuitamente ou de forma onerosa), distribuir (espalhar, dividir, dispor) e revender (tornar a vender) (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 157).   

No que diz respeito ao núcleo típico distribuição, este é definido na Lei 9.478/1997, no seu artigo 6º, inciso XX, a saber: “atividade de comercialização por atacado com a rede varejista ou com grandes consumidores de combustíveis, lubrificantes, asfaltos e gás liquefeito envasado, exercida por empresas especializadas, na forma das leis e regulamentos aplicáveis”. A referida lei também conceitua (artigo 6º, inciso XXI) o termo revender, o qual consiste na “atividade de venda a varejo de combustíveis, lubrificante e gás liquefeito envasado, exercida por postos de serviços ou revendedores, na forma da lei e regulamentos aplicáveis”. Entende-se por derivados do petróleo os “produtos decorrentes da transformação do petróleo” (art. 6, III, Lei 9.478/1997) (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 157).  

gás natural é “todo hidrocarboneto que permaneça em estado gasoso nas condições atmosféricas normais, extraídos diretamente a partir de reservatórios petrolíferos ou gaseíferos, incluindo gases úmidos, secos, residuais e gases raros” (art.6, II, Lei 9.478/1997) (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 157). Complementando a conceituação do núcleo do tipo, aduz Fonseca (2002, p. 310):

O gás natural é um hidrocarboneto gasoso constituído de metano, etano, butano e propano, existente em zona petrolífera, podendo ser liquefeito e comercializado. O gás natural sai da crosta terrestre através de orifícios naturais ou de poços perfurados; usado como combustível, quer por conversão em outro combustível líquido, ou como matéria-prima de negro-carvão, nitroparafina e muitos outros produtos.  

Outro núcleo do tipo são as frações recuperáveis, fruto da destilação feita de forma fracionada do gás natural ou do petróleo. Ademais, o álcool etílico hidratado carburante é uma mistura hidroalcoólica, em que o principal componente é o álcool etílico ou etanol, cujo teor alcoólico mínimo é de 99,3° INPM (anidro) ou 92,6° INPM (hidratado), combustível de veículo de passeio (PRADO, 2007, p.76).

A Associação Brasileira de Normas Técnicas, Conselho Nacional do Petróleo e Instituto Nacional de Pesos e Medidas são responsáveis pela padronização da composição álcool e água, uma vez que a alteração da composição acarreta o mau funcionamento e danos aos motores. O álcool hidratado é usado exclusivamente como combustíveis, por conta de economia na produção e eficiência. Ele também é utilizado como aditivo na gasolina (PRADO, 2007, p.76).

Sobre o núcleo típico “álcool etílico”, Amaral (2010, p. 90) afirma que existem dois tipos de álcool etílico combustível: o álcool etílico anidro combustível (AEAC) e o álcool etílico hidratado combustível (AEHC). Enquanto no primeiro mistura-se álcool à gasolina em variada proporções, o segundo é colocado no tanque dos veículos diretamente. 

Uma das fraudes comuns é a pessoa adquirir álcool anidro (tributação mais baixa) e sua adulteração (com acréscimo de água, ou seja, o chamado “álcool molhado”) para simular álcool hidratado. Do mesmo modo, há fraude com a gasolina (AMARAL, 2010, p.90).

Os demais combustíveis líquidos carburantes correspondem aqueles que se tem o escopo de produzir uma energia necessária para movimentar um motor, por exemplo, a gasolina, querosene, óleo diesel. Vale ressaltar que combustível é “qualquer substância, que, por meio da combustão (reação química rápida entre substâncias, queima) produz energia” (FONSECA, 2002, p.315).

Quando o legislador utiliza a expressão “em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei”, percebe-se o recurso à técnica da norma penal em branco. Assim, os crimes contra a ordem econômica concernentes ao abastecimento de combustíveis, exploração dos recursos energéticos e outras matérias-primas que pertencem à União são normas penais em branco, pois punem condutas sem delimitação expressa da ação não permitida, ao utilizar expressão como “em desacordo com a lei”, “sem autorização legal”, “em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”. Também porque existem elementos do tipo penal que precisam de definição através de outras fontes jurídicas. Com relação a essa última, é imprescindível a definição de “gás natural e suas frações recuperáveis” ou ainda “demais combustíveis líquidos carburantes”. Essas definições possuem explanação, na sua maior parte, na legislação federal (Leis nº 9.478/1997 e nº 9.847/1999) que tratam das atividades de exploração dos recursos energéticos nacionais (AMARAL, 2010, p.91).

O inciso II, por sua vez, dispõe que o crime consiste em “usar gás liquefeito de petróleo em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimentos de piscinas, ou para fins automotivos, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei”.

Assim, a conduta incriminada nesse inciso possui o verbo usar (empregar, utilizar) (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 157). O gás liquefeito de petróleo é conceituado de forma bastante elucidativa por Diniz (1998, p.652):

O gás liquefeito de petróleo corresponde a um gás comprimido consistente em hidrocarboneto leve, inflamável, como propano e butano, obtido especialmente como subproduto na refinação do petróleo ou na fabricação ou fabricação de gasolina natural; utilizado como combustível industrial ou doméstico e como matéria-prima para síntese química. É também designado como gás engarrafado.

Ademais, Ferreira (1996, p.1164) afirma que motor é tudo “que faz mover; tudo que dá movimento a um maquinismo”.

Frisa-se que o legislador, ao utilizar a expressão “de qualquer espécie” aumentou o alcance da lei, de modo a abarcar várias situações. Desse modo, pode ser citado como espécie de motor, os de combustão interna ou de explosão, diesel, etc. (PRADO, 2007, p.77).

Sauna é “um banho a vapor, de origem finlandesa, a temperatura de 60° a 80°C (FERREIRA, 1996, p.1557).

Outro núcleo típico são caldeiras, as quais são:

Cilindros metálicos usados para produzir o vapor das máquinas, que devem ser construídos, por oferecer perigo de explosão, de modo a resistir às pressões internas do trabalho com válvulas, contendo dispositivos de segurança para prevenir acidentes de trabalho e permitindo que os operários possam executar suas tarefas com segurança (DINIZ, 1998, p.46):

Aquecimento de piscina é “aquele feito por meio de caldeira central”. Para fins automotivos diz respeito a “qualquer sistema ou material utilizado em veículos que têm meios de automovimentação”. Em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei demonstra a utilização da técnica da norma penal em branco (PRADO, 2007, p.77), conforme já fora analisado no inciso I artigo 1º da Lei 8.176/1991.

Diante do exposto, as condutas descritivas no tipo penal ocasionam uma expressiva afetação à ordem econômica brasileira. Uma vez sendo realizada fraudes nos recursos energéticos do país, há prejuízo no desenvolvimento econômico do Brasil. Tal conduta acaba também por afetar diversos outros setores, consequentemente, prejudicando toda a população brasileira.

O elemento subjetivo é formado pelo dolo, que é o elemento subjetivo. Para a sua configuração exigem-se a consciência e a vontade de realizar o tipo objetivo. Não se admite a modalidade culposa (PRADO, 2007, p.77).

A consumação do delito disposto no inciso I ocorre com a efetiva aquisição, distribuição ou revenda dos derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei. No inciso II, a consumação ocorre com o primeiro ato de usar, ou seja, com efetivo emprego do gás liquefeito de petróleo em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas ou para fins automotivos, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei (CÂMARA; GUARAGNI, 2011, p. 159).   

No que diz respeito à tentativa, Prado (2007, p.77) aduz que não é admitida, uma vez que se trata de crime instantâneo[6]. Por sua vez, Andreucci (2011, p.122) afirma que a tentativa é inadmissível na modalidade “usar”, porém é admitida nos demais casos.

3.4 PENA, AÇÃO PENAL E COMPETÊNCIA

 

O crime tipificado no artigo 1º, incisos I e II da Lei 8.176/1991 tem pena de um a cinco anos de detenção.

A suspensão condicional do processo é admitida no caso em questão, uma vez que esta ocorre nos crimes em que a pena mínima cominada é igual ou inferior a um ano, com fulcro no artigo 89 da Lei 9.099/1995 (PRADO, 2007, p.78).  

A ação penal é pública incondicionada (PRADO, 2007, p.78). 

No concernente à competência, há divergências. O STF tem compreendido ser competência da Justiça Estadual, uma vez que não tem considerado haver lesão ao interesse da União (ANDREUCCI, 2011, p.122). Nesse sentido:

COMPETÊNCIA. Criminal. Ação penal. Crime contra a ordem econômica. Comercialização de combustível fora dos padrões fixados pela Agência Nacional do Petróleo. Art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.176/91. Interesse direto e específico da União. Lesão à atividade fiscalizadora da ANP. Inexistência. Feito da competência da Justiça estadual. Recurso improvido. Precedentes. Inteligência do art. 109, IV e VI, da CF. Para que se defina a competência da Justiça Federal, objeto do art. 109, IV, da Constituição da República, é preciso que tenha havido, em tese, lesão a interesse direto e específico da União, não bastando que esta, por si ou por autarquia, exerça atividade fiscalizadora sobre o bem objeto do delito (STF, RE nº 513.446-6/SP – Rel. Min Cézar Peluso, j. 16-12-2008 – Dje, 27-2-2009).  

Por sua vez, há doutrinadores que entendem que a competência não diz respeito a Justiça Estadual, mas à Justiça Federal, uma vez que o crime lesa o interesse da União, uma vez que é seu encargo a normalidade do abastecimento nacional de petróleo, de derivados de combustíveis, álcool para fins carburantes e outros combustíveis líquidos carburantes. Além disso, há uma notória agressão ao Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis, criada pela União – Decreto n.283/91 (ANDREUCCI, 2011, p.122).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intervenção do Estado no domínio econômico é uma atividade imprescindível para realizar a justiça social, tarefa essa assumida pelos Estados Democráticos de Direito, como é a República Federativa do Brasil.  

Há uma grande importância dessa tarefa. Tanto é assim que existe uma proteção do Direito Penal. Desse modo, a tutela jurídico penal da ordem econômica significa criminalizar condutas que coloquem em perigo ou lesem a produção, circulação e consumo dos bens e serviços.

Assim sendo, faz mister a punição das condutas que atentem contra as fontes energéticas, pois a gestão dos recursos energéticos é uma atividade importantíssima para o fomento do desenvolvimento econômico do país.  

 

REFERÊNCIAS

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BALDAN, Edson Luís. Fundamentos do Direito Penal Econômico. Curitiba: Juruá, 2009.

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CÂMARA, Luiz Antonio; GUARAGNI, Fábio André. Crimes contra a Ordem Econômica: Temas Atuais de Processo e de Direito Penal. Curitiba: Juriá Editora, 2011.

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DEODATO, Felipe Augusto Forte de Negreiros. Direito Penal Econômico: A pessoa coletiva como agente de crimes e sujeito de penas. Curitiba: Juruá, 2008.

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MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 18.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais. 2.ed.rev.atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

STF. RE nº 513.446-6/SP. Rel. Min Cézar Peluso, j. 16-12-2008 – Dje, 27-22009.

VELLOSO, Ricardo Ribeiro (coord.). Crimes Tributários e Econômicos. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

VIEIRA, João Alfredo Medeiros. Noções de Criminologia. São Paulo: LEDIX, 1997.



[1] Paper apresentado à disciplina de Processo Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco-UNDB.

[2] Aluna do 6º período do Curso de Direito, da UNDB. 

[3] Professora Mestre, orientadora.

[4] Art. 116 da Constituição Federal de 1934: Por motivo de interesse público e autorizada em lei especial, a União poderá monopolizar determinada indústria ou atividade econômica, asseguradas as indenizações devidas, conforme o artigo 112, n.17, e ressalvados os serviços municipalizados ou de competência dos poderes locais.

[5] Art. 146 da Constituição Federal de 1946: a União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição.

[6] Os crimes instantâneos “são aqueles, que, uma vez consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga”. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 18.ed. São Paulo: Atlas, 2002.