Os balequeiros e a educação
Por Renato Uchôa (Educador)

Na asa de folha as lembranças de vários amigos da infância em Campo Maior. Que poderiam ser tudo na vida. E foram na Praça da Bandeira. Vejo com nitidez a perícia cirúrgica de Jaó dissecando uma lagartixa. Casaca, Chico Lubim, teste de espingarda feita de cano de geladeira, com garantia de seu Cancão, na solda do ouvido. Casa de mestre Augusto onde exalava um cheiro bom de café torrado. Uma explosão. Beira do Rio Pintada, manhã qualquer de julho, década de 70, a pólvora num tiro esfumaçando e seco nos surda. Misturado a riso prega Lubim no mandacaru.
Reunião de emergência, espingarda na mesa, prováveis causas da segunda explosão dos canos. À primeira, não obstante, derrubou o pé de mamão-macho na casa de Dona Lousa com a cumplicidade do filho amigo e irmão, nosso Chiquinho (Cumbá). Conclusão chegada, novas espingardas, bons tiros e caçadas. Não confundir com as da Ditadura Militar na tortura, execuções, cerceamento da liberdade, que se alastrou por anos. Cena horripilante. Presos políticos amarrados em cima de um caminhão de passagem para Fortaleza.
As motos de madeira. Éramos proprietários das que fazíamos. Perfeitas com o pneu de rolimãs, descendo e subindo as ladeiras. Carros passando e provocando um frio de doer. Ao som estridente do hino nacional do velho Ovídio Bona. As nossas empresas não participavam de licitações fraudulentas. Lembro de Cangati, figura impressionante, bem humorada, andando com a cachorra faísca nas incursões e brincadeiras a procura da burra do seu Gazeta. Rumo à casa do Tombador repousa o fantasma de Fidié quando de passagem por Campo Maior, após o massacre nas beiradas do Rio Jenipapo na época da independência do Brasil.
Carambila, Bubu (poderia ter jogado na seleção brasileira) e Mariano, irmãos fantásticos na arte com madeira. Miranda exímio atirador de flecha, Evaldo, Lindolfo, Maninho, Dema, Nerindina, Claudinha, Fátima. Duas Lurdinhas, Ana Augusta, Ana Cleide e Clara, Geraldinho do guarda-roupa, Luís Higino, Isaías (Buchudeca) o maior brigador de nós, Nena, Américo, Chagas, Felipe (Preto), Cosme, Valdenir, Zé Luís Félix, Carlos Henrique, Abdul, Joaquim, Salvador, Cuzuado, Bololou, Fenelon. Didou (dois duelos). Os vultos ainda povoam a Praça da Bandeira a procura das catiringas.
Elizeu Macedo (Pelebreu), Raimundinha Bandeira (o nosso equilíbrio), Raimundo Antônio (Bacabal), Pretestado, Milton Higino, o mais pronto de nós, Boquinha, Graça Bona, Eliane (nossa musa), Julinho, Antônio Neto, Velho Naza (eu), membros do Jornal criado no Colégio Estadual de Campo Maior. Época de chumbo da Ditadura. Não tivemos medo. No Ginásio Santo Antônio (escola da elite), Honório, Josias, Marcílio, Zeca, Clodoveu, Valter, Euclides, Maurício, Chagas, Carlos Henrique, Ivan. Mesmo quando a memória apascenta o pensamento, outros amigos virão na asa. Obrigação de lembrar. Formamos uma classe diferente, em termos educativos, de qualquer escola nota "dez" da prefeitura de Teresina ou do Brasil. Educamo-nos na prática cotidiana, na criação das artes de Dona Lina, na confecção de nossos brinquedos, na interpretação dos filmes de seu Zacarias, Cine Nazaré; nos sermões obrigatórios de padre Mateus e Isaac. Com os bolos fritos de Dona Rosário que nos acalmava a fome.
Não acredito que a escola brasileira tenha ensinado a nós e nos outros, mais do que aprendemos com a convivência fraterna que marcou profundamente a nossa personalidade e maneira de ser ao longo das nossas vidas. Aos nossos professores (as) a gratidão pelo desenho dos números e letras. Ao MEC, o nosso protesto por nunca em toda a história da educação ter implantado a escola unitária, o trabalho como princípio educativo; e pelos sistemas de avaliação da educação que medem apenas o que pode ser decorado.