Apesar de serem válidas as restrições impostas em testamento pelo autor da herança, estas são contrárias a vários dispositivos presentes na Constituição Federal de 1988, tais como princípio da utilização social do bem, direito à herança, dignidade da pessoa humana, direito à propriedade e ordem econômica social.

 Princípio da utilização social do bem perante a Cnstituição Federal de 1988

O molde protetivo das cláusulas restritivas impostas em testamento já não é mais bem visto pelos doutrinadores, tão pouco pelos herdeiros. Existe um desencontro dessas cláusulas em relação à Constituição Federal Brasileira de 1988, tendo em vista que tais restrições são uma ofensa a princípios basilares contidos no ordenamento jurídico. O princípio da função social da propriedade existe em nosso ordenamento jurídico para que haja a preservação do interesse público sobre o interesse privado também em relação ao direito de propriedade. É assim para que o interesse da coletividade seja preservado e defendido da vontade privada do autor da herança.

Muitas das vezes a função social da propriedade é contrária às necessidades de seu proprietário, como no caso do testador que busca, através da cláusula restritiva, proteger os seus herdeiros sem se preocupar se estará prejudicando os demais indivíduos. Mas, trata-se de normas jurídicas que devem ser obedecidas acima de qualquer fato. Então se tem que a propriedade deve exercer seu papel em seus exatos termos. Nesse contexto:

A imposição do cumprimento da função social da propriedade introduziu uma nota na propriedade que pode não coincidir com o interesse de seu proprietário, mas que é dada pela própria ordem jurídica, e assim, deve ser obedecida. É que se trata de fundamento para o reconhecimento e garantia do direito de propriedade em sua plenitude. (TAVARES, 2006, p. 596).

Apesar da vontade do testador ser de extrema importância para a efetiva sucessão de seus herdeiros, deve ser levada em consideração a legislação como um todo, principalmente no que tange aos direitos fundamentais. Utilizando-se dos princípios constitucionais de forma a compreender a prevalência dos que favorecem o interesse geral e não o interesse individual de forma isolada. Assim, também é o entendimento de Giselda Maria Fernandes Novaes e Rodrigo da Cunha Pereira:

Assim embora a vontade sempre tenha sido considerada (e continuará, sem dúvida, a ser) o elemento propulsor dos negócios jurídicos – e, por isso, dos testamentos – não existe dúvida de que a sua compreensão tem de ser realizada à luz dos elevados princípios constitucionais protetivos da pessoa humana, considerada em seus variados e diversos interesses, necessidades, exigências, qualidades, condições econômicas e sociais, respeitados os seus valores essenciais (dignidade, segurança, igualdade, liberdade) e instâncias fundamentais de sua promoção e de seu desenvolvimento (saúde, trabalho, educação). (2004, p. 230).

Dessa forma, é possível notar que o direito de propriedade vem tomando proporção maior no mundo jurídico. Passa a ser visto não somente como um direito subjetivo, mas sim como um direito absoluto e real. O que se denota é que o proprietário tem direitos sobre seus bens, porém, diante de direitos que envolvam o bem comum da sociedade o direito de propriedade visa o bem estar social da coletividade e não somente o direito individual. Firma esse entendimento:

[...] A concepção do direito de propriedade como um direito absoluto do titular, de poder utilizar a coisa e desfrutá-la da forma que melhor entender, mesmo que em detrimento dos demais, não mais prevalece. A utilização e o desfrute de um bem devem ser feitos de acordo com a conveniência social da utilização da coisa. O direito de propriedade, dentro de uma evolução histórica, é visto cada vez menos como um direito subjetivo de caráter absoluto, para se transformar em uma função social do proprietário. O direito do dono deve ajustar-se aos interesses da sociedade. Em caso de conflito, o interesse social pode prevalecer sobre o individual. [...] (PINHO, 2002, p. 121)

Ressalte-se que a Constituição Federal, ao estabelecer que o interesse geral deva prevalecer sobre o interesse individual, não objetiva retirar do proprietário os seus direitos, pelo contrário, essa disposição existe para que a propriedade cumpra sua devida destinação, ou seja, sua função social. O proprietário, de certa forma, também é responsável por preservar a finalidade de seus bens, agindo sempre consciente de que a população não pode se prejudicar em virtude da vontade privada. Um exemplo disso é quando as cláusulas restritivas impostas em testamento passam a prejudicar a função que a sociedade deve atender. Dessa forma:

Reconhecendo a função social da propriedade, sem a renegar, a Constituição não nega o direito exclusivo do dono sobre a coisa, mas exige que o uso da coisa seja condicionado ao bem estar geral. Não ficou, pois, longe o constituinte da concepção tomista de que o proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora não pertençam a todos. (FILHO, 2006, p. 359)

Ademais, isso tambem não quer dizer que não se deve respeitar a vontade do de cujus, pelo contrário, as disposições de última vontade são respeitadas, bem como toda a estrutura que a organiza, tais como restrições e direitos individuais e coletivos dos herdeiros. Porém, isso não pode interferir no bem estar de toda a sociedade, pois se colocados em discussão o interesse da sociedade é o que irá prevalecer em virtude da supremacia do interesse público sobre o privado.

O artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu inciso XXIII dispõe que: “A propriedade atenderá sua função social”, no entanto, se o bem é gravado pelo testador com imposição de uma cláusula restritiva o herdeiro não poderá utilizá-lo integralmente, pois, sempre irá se deparar com o gravame. Percebe-se que a função social da propriedade está interligada em vários dispositivos da Constituição Federal, de modo que se deve observá-los em face de situação que envolva os direitos fundamentais, ou com a ordem econômica financeira nacional, como demonstram adiante:

Como direito fundamental, o direito de propriedade encontra-se hospedado no art.5º, caput, da Carta Federal e em seus incisos XXII- “é garantido o direito de propriedade” e XXIII- “a propriedade atenderá a sua função social”. Verifica-se, portanto, que a ideia de “função social” está definitivamente incorporada em nosso ordenamento constitucional. Ela aparece no âmbito dos direitos fundamentais, na ordem econômica e financeira- art. 170, III, nas normas sobre a propriedade urbana- art.182, § 2º, e rural – art. 186. (MARTINS, MENDES e NASCIMENTO, 2010, p. 328).

O direito de propriedade está ligado ao princípio da função social da propriedade e também ao princípio da ordem econômica financeira à medida que um interfere no outro, e são ligados de forma que se relacionam um com o outro, principalmente quando se diz respeito à forma de utilização do bem. Se o bem exerce sua função social de forma adequada ele contribui para a ordem econômica financeira. Ao passo que se essa função não for devidamente observada acaba por lesar a ordem econômica. Nesse contexto:

A propriedade privada é considerada como elemento essencial ao desenvolvimento do modelo capitalista de produção, e, ademais, o direito à propriedade é inafastável da concepção de democracia atualmente existente. Foi por esse motivo que se preservou o direito de propriedade, alterando-se lhe o conteúdo, com a consagração de direitos sociais, e, ainda, com a declaração expressa de que também a propriedade é alcançada pela concepção social do Direito, o que se dá pela determinação de que a propriedade cumprirá sua função social. (TAVARES, 2006, p. 597).

Por conseguinte, pode-se perceber que a propriedade, para atender sua função social de forma ampla, deve estar livre de gravames, tais como as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, tendo em vista que estas interferem na possibilidade dos herdeiros disporem dos bens herdados prejudicando a livre circulação destes. Esse tipo de impedimento é prejudicial à ordem econômica e também ao direito de propriedade, bem como ao direito constitucional de herança como se aborda adiante.

A herança como um direito constitucional sujeita ao princípio da dignidade da  pessoa humana

A dignidade da pessoa humana está consagrada no ordenamento jurídico e é um dos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal de 1988, mais precisamente, em seu artigo 1°, inciso III. Assim, pode-se, de início, perceber que esse princípio é um dos mais importantes para o legislador, sendo seu maior objetivo proteger o direito mais interno de cada ser humano.

Na maioria das vezes o provedor do sustento da família era o então falecido. Sendo ele o seio e a base da família, seus herdeiros, por vezes, ainda não tem condições de seguir em frente após sua morte. Assim a herança tem o escopo de reerguê-los para que consigam prover seu próprio sustento sem passar por dificuldades e superar situação tão temerosa como a morte.

O direito a herança é protegido no ordenamento jurídico e é garantido constitucionalmente, preservando todo o patrimônio construído por seus familiares, fazendo com que continue a integrar o seio familiar, desde que respeitados os limites impostos na legislação em seus exatos termos. Neste sentido, tem-se o apontamento de que:

A garantia constitucional submete, pois, todo o ordenamento privado e as pessoas sob a sua égide (autoridades ou não) a seus termos, exatamente na preservação do estímulo do homem a formação e a manutenção de patrimônio, a fim de possibilitar-lhe o alcance de suas metas sociais, familiares e individuais, bem como a perpetuidade de seu nome e de sua família. (BITTAR e FILHO, 2003, p. 154)

Inserido no artigo 5º, inciso XXX da Constituição Federal de 1988, o direito a herança tem a finalidade de garantir aos herdeiros o seu uso e gozo, sem qualquer restrição, portanto um direito individual impossível de ser alcançado pelo testador. Ocorre que o testador faz o uso indevido de dispositivos presentes no Código Civil para indicar sua vontade sem se atentar ao direito individual de seus herdeiros.

O respeito à propriedade privada é um elemento que encontra respaldo nas tradições humanas desde a época romano-cristã, sendo considerado como necessário e essencial por Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho:

Enraizado na cultura nacional, como componente necessário e essencial da vida humana na tradição romano-cristã encontra-se o princípio do respeito à propriedade privada, como elemento imprescindível ao desenvolvimento do ser e de sua família, dentro da orientação própria e em razão da liberdade natural de que é adotado. (2003, p. 153).

Dessa forma, o direito a herança é a garantia de que todo o patrimônio amealhado pelo de cujus continuará na sua família, respeitando assim a propriedade privada, porém com a interferência das normas que regem o direito sucessório. Contudo, sem prejudicar ou restringir os seus herdeiros, a não ser pela vontade do próprio autor da herança.

Ocorre que, se o direito a herança for restringido pelas cláusulas restritivas impostas em testamento, os herdeiros acabam impedidos de dar continuidade ao patrimônio familiar que lhe é devido. Diante desses gravames a herança se torna intocável para aqueles que teriam o direito de recebê-la.

 

O Direito à Propriedade como direito essencial aos herdeiros

O direito de propriedade está previsto na Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu art. 5°, “caput” e inc. XXII, os quais demostram expressamente que, por todos serem iguais perante a lei, lhes é garantido o direito de propriedade. Em alguns casos esse direito pode ser limitado, porém, essa limitação que a propriedade pode sofrer passou por várias transformações ao longo dos anos, de forma a descaracterizar o seu absolutismo. Assinala essa visão:

O direito de propriedade sofreu mutações quanto aos seus caracteres e finalística ao longo dos anos. A propriedade hodierna não é mais revestida do absolutismo de outrora, sendo-lhe impostas restrições de ordem pública e também, privada. Essas limitações caracterizam-se pelo interesse a quem se propõem, compondo, destarte os aspectos extrínsecos do direito ao domínio. [...] (COSTA, 2006, p. 5)

O Código Civil de 2002 permite que o autor da herança restrinja seus herdeiros dos bens que futuramente irão herdar através das cláusulas restritivas impostas em testamento. Esse tipo de restrição é uma afronta ao direito de propriedade que nada mais é do que o direito individual de ser realmente o dono do que lhe pertence sem qualquer ônus, controlando, assim, seu próprio patrimônio.

Neste contexto, quanto à propriedade, destaca-se o entendimento que a vislumbra como “faculdade moral pela qual o homem é dono de alguma coisa, utilizando-a para satisfação de suas necessidades futuras (reconhecimento do direito sobre esses bens, que dão segurança ao homem)”. (MARTINS, MENDES e NASCIMENTO, 2010, p. 292)

Esse gravame prejudica de forma demasiada quem recebe o bem, tendo em vista que esse ônus possuiu caráter absoluto. Corrobora com esse entendimento o doutrinador José Afonso da Silva: “Restrições à propriedade são, pois condicionamentos a essas faculdades do seu caráter absoluto. Porque existem essas restrições é que se costuma dizer que não existe mais o direito absoluto da propriedade.” (2005, p. 280).

Desse modo, tem-se que o direito de propriedade só deve ser limitado pela própria Constituição Federal, em nome da função social da propriedade ou pelo poder de polícia em prol do interesse público, e não somente pelo interesse particular do testador como ocorre com as referidas cláusulas. Cumpre lembrar que podem ocorrer situações em que esse tipo de gravame é imposto por simples capricho do testador, ou por algum desentendimento ocorrido em vida com seus herdeiros.

Apesar de haver limites impostos ao direito de propriedade, devem sempre ser observados os elementos que fundamentam a posição do homem em relação a esses direitos, tais como suas necessidades de vida, as quais interferem na sua sobrevivência, convivência social, dentre outros que são fundamentais para que toda a sociedade evolua. Por isso se faz necessário conflitar essas cláusulas com os princípios constitucionais ora expostos. Nesse sentido, demonstram Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho:

O respeito à propriedade reside na concepção de que o homem necessita, para alcançar seus fins, de meios próprios, ou seja, de coisas materiais e imateriais apropriáveis, de que se serve e que lhe podem propiciar a sua própria existência e sua mantença. Delimitando espaços e permitindo, pelo respeito, a convivência social, esse elemento é também essencial à ordem privada e a respectiva extensão delimita, inclusive, o tipo de Estado (totalitário ou liberal, com as variantes e as atenuantes possíveis). (2003, p. 153).

Fica nítido que o ser humano possui necessidades essenciais para sua sobrevivência que merecem ser respeitadas. Dessa forma, as cláusulas restritivas quando impostas sobre os bens herdados prejudicam aqueles que os recebem de modo que estes ficam presos a uma propriedade que poderia estar lhes ajudando a atender suas necessidades.

O testador, ao dispor dos seus bens com essas cláusulas, parece não se importar com os eventos futuros e inesperados que podem vir a acometer seus herdeiros e causar-lhes males e prejuízos incalculáveis. Portanto, considera-se essencial garantir-lhes o direito de usufruir dos bens para satisfazes suas necessidades. É o entendimento dos autores:

Como o ser humano é composto de matéria e espirito, tem necessidades materiais a serem satisfeitas (alimentação, vestuário, moradia, higiene, lazer, etc.): isso supõe a utilização dos bens materiais, que deverão estar sujeito à pessoa que os utiliza. Se é natural ter essas necessidades, é natural que o homem possa satisfazê-las, sendo também natural a sujeição dos bens que as satisfaçam ao homem. (MARTINS, MENDES e NASCIMENTO, 2010, p. 292)

Assim pode se perceber que a propriedade é para o ser humano muito mais do que um bem puramente material, é, portanto, um direito individual que merece ser resguardado, tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade a fim de que a propriedade esteja sempre atendendo sua função social. Por isso, a Constituição Federal de 1988 protege o direito a propriedade e ainda o considera como um direito fundamental. Corrobora com esse entendimento:

A circunstância de a propriedade apresentar, simultaneamente, caráter dúplice, servindo ao individualismo e as necessidades sociais, impõe, pois, a necessidade de uma compatibilização de conteúdos dos diversos mandamentos constitucionais. Como direito individual, o instituto da propriedade, como categoria genérica, é garantido, e não pode ser suprimido da atual ordem constitucional. Contudo, seu conteúdo já vem parcialmente delimitado pela própria Constituição, quando impõe a necessidade de que haja o atendimento de sua função social, assegurando-se a todos uma existência digna nos ditames da justiça social. (TAVARES, 2006, p. 595)

Nesse contexto, pode-se perceber que o direito de propriedade envolve muito mais do que o patrimônio material. Por outro lado, engloba as condições de vida dos seres humanos, serve para garantir sua mantença, sua moradia ou eventual necessidade que este venha a sofrer. Envolve também a função da propriedade exercer seu devido papel. A partir dessa ideia, denota-se que a vontade do falecido, dependendo da situação, poderá prejudicar seus herdeiros deixando-os em situação de extremo desconforto

 Princípio da dignidade da pessoa humana em relação à liberdade de testar

As cláusulas restritivas da propriedade, impostas pelo testador, são muito criticadas também no que diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois, as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade não envolvem a análise da capacidade e desenvolvimento do indivíduo. Ao contrário, a vontade privada do testador está criando incapacidades que diferem daquelas prevista na legislação atual.

Um dos princípios mais importantes, senão o mais importante do ordenamento jurídico, é o da dignidade da pessoa humana, o qual tem relação com os fatores mais intrínsecos que envolvem a humanidade. É o primeiro princípio que deverá ser colocado em questão quando a situação se relacionar com direitos da coletividade em relação a direitos individuais. Nesse contexto:

Por isso, dentro da própria Constituição, no que se refere aos direitos e garantias individuais, quando se verifica um aparente paradoxo, direitos igualmente assegurados em choque, deve-se buscar um princípio maior, norteador de toda uma ideologia que, forçosamente, terá âmbito social e privilegiará o bem comum, mesmo que para isso esteja aparentemente, assegurado a satisfação individual, como é o exemplo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana inserido no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988. (CAVALCANTI, 2000, p. 47)

Uma pessoa perfeitamente capaz não pode jamais sofrer a humilhação de ser considerada incapaz sem de fato o ser, pois isto atentaria contra o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. De certa forma é isso que as cláusulas restritivas fazem com os herdeiros, os tornam incapazes. Cabe expor que: “O patrimônio não é a finalidade da proteção jurídica, porém o meio para que a pessoa possa obter o desenvolvimento biopsíquico necessário para a harmônica convivência social”. (LISBOA, 2006, p. 428)

Neste esteio, tem-se a dignidade da pessoa humana como intocável. Demonstra Paulo Lôbo: “A dignidade da pessoa humana é o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade.” (2011, p. 60).

A dignidade da pessoa humana possui valoração no ordenamento jurídico, de modo que deve ser observada em várias situações, inclusive pelos magistrados em suas decisões, principalmente nas que estejam ligadas a efetividade dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Cabe lembrar que o testador tem a possibilidade de restringir o patrimônio indicando, para isso, o motivo de fazê-lo, como explanado anteriormente. Em alguns casos essa medida é de extrema necessidade, pois, realmente os herdeiros não tem a capacidade de administrar o patrimônio.

Isso mostra que as cláusulas restritivas impostas em testamento não são de tudo descabidas, mas possuem um motivo para existir no ordenamento jurídico e são de grande valor quando utilizadas de forma adequada. No entanto, em alguns casos, essas cláusulas são impostas para atrapalhar a fruição dos bens pelos herdeiros legítimos os quais o autor da herança é impedido de excluir de sua sucessão. Tentar influenciar na condição de personalidade do indivíduo fazendo-o ser considerado incapaz perante a sociedade, sem de fato o ser, é atentar contra o princípio da dignidade da pessoa humana.

Corroboram com esse posicionamento os autores Giselda Maria Fernandes Novaes e Rodrigo da Cunha Pereira. Para estes autores é necessário proteger a personalidade: “É que a personalidade humana deve estar sempre sublinhada como valor jurídico insusceptível de redução, sendo mister sua proteção eficaz e efetiva, nas circunstâncias múltiplas e renovadas em que se encontre.”  (2004, p. 230).

Desse modo, quando a situação envolver a dignidade dos seres humanos, o caso deve ser observado de forma criteriosa para que estes não saiam prejudicados injustamente, daí a necessidade que o legislador encontrou em estabelecer no Código Civil de 2002 que o autor da herança deve indicar a justa causa para impor cláusulas que restringem os direitos de seus herdeiros. Ainda assim, apesar do dispositivo conter essa ressalva, deve-se fazer uma análise criteriosa dos motivos que verdadeiramente ensejaram a decisão do testador.

 A ordem econômica social perante a vontade privada do autor da herança

Os bens clausulados são de certa forma, afastados do comércio, contrariando assim o interesse social da livre circulação de riquezas, que fica restrito ao interesse particular do testador. A ordem econômica social está prevista no artigo 170 “caput”, da Constituição Federal de 1988, e a função social da propriedade incluída no inciso III do mesmo artigo, in verbis:

Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

III- função social da propriedade;

As cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade prejudicam o cumprimento da função social da propriedade, pois são antieconômicas e prejudicam a economia e a livre circulação de riquezas, como já dito anteriormente. Para que se cumpra a função social da propriedade, é preciso também ser respeitada a ordem econômica e financeira nacional.

Não há como falar sobre a ordem econômica nacional sem demonstrar os princípios que a norteiam. Um deles é o da propriedade privada, notadamente essencial para que o sistema financeiro esteja sempre em movimento, nesses termos:

Alguns dos princípios da ordem econômica constitucional indicam a opção do constituinte por uma economia de mercado, com os temperamentos nela mesma previstos. O princípio da propriedade privada é um deles, pois se constitui em esteio da atuação econômica privada e sinaliza para a prevalência de um sistema econômico capitalista, para cujo desempenho exerce função proeminente. Com efeito, o denominado socialismo democrático ou social-democracia também ampara a propriedade privada, sem embargo de fazê-lo por uma questão de adaptação ideológica irrecusável, uma vez que seu ideário deita raízes no combate ao sistema capitalista. (MARTINS, MENDES e NASCIMENTO, 2010, p. 327)

Dessa forma, nota-se que a propriedade privada é de extrema importância para a economia nacional, visto que auxilia o mercado de forma a beneficiar o sistema social. Se os bens deixados pelo testador estiverem gravados com cláusulas que restringem o direito de propriedade dos herdeiros, estas acabam por prejudicar não somente os herdeiros, mas toda a sociedade que se alicerça na economia do país, visto que se os bens não circulam livremente e o Estado, por certo, deixa de arrecadar impostos sobre os direitos de transmissão. Nesse sentido:

O sistema de economia de mercado se baseia fundamentalmente na propriedade privada. Sem ela, estariam abalados os princípios que norteiam a organização capitalista da economia em beneficio de um sistema socialista, considerado em seu sentido estrito, que não se coaduna com a propriedade privada, sobretudo as dos meios de produção, considerando-os inerentes a função social. (MARTINS, MENDES e NASCIMENTO, 2010, p. 328)

O equilíbrio proporcionado pela ordem econômica nacional à sociedade é fundamental para a sua constante evolução e para que o Estado consiga proporcionar a todos os cidadãos as garantias e direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico vigente. A partir desse pressuposto tem-se que não é justo satisfazer as vontades privadas se estas prejudicarem ou influenciarem nas condições sociais de toda a população. Senão veja-se o entendimento de Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho:

Esse equilíbrio está patente no texto constitucional aprovado em 1988, em que se declara, depois do preâmbulo – em que se assenta que o Estado brasileiro é destinado a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” -, que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna”, “conforme os ditames da justiça social” e observados os princípios orientadores, em que acham a “propriedade privada” e a “função social da propriedade privada” (art.170, II e III). (2003, p. 156)

A partir dessa análise resta evidente que a propriedade não pode mais ser restringida por um interesse particular. Percebe-se que esta é de extrema importância para os interesses de toda a sociedade, tendo em vista os efeitos causados frente à ordem econômica e financeira do país. Evidente que essa situação não merece prosperar, e deve-se buscar uma solução adequada para que não ocorra esse tipo de conflito no âmbito judiciário. Em acordo com esse posicionamento:

Há, portanto, necessidade de compatibilização entre os preceitos constitucionais, o que significa dizer, em ultima instância, que a propriedade não mais pode ser considerada em seu caráter puramente individualista. A essa conclusão se chega tanto mais pela constatação de que a ordem econômica, na qual se insere expressamente a propriedade, tem como finalidade “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (caput do art.170). (TAVARES, 2006, p. 595)

Importa, sobretudo, enfatizar que o interesse que predomina na ordem econômica não é somente o interesse financeiro, mas sim, tudo que envolver o bem estar da sociedade. Há busca constante por um equilíbrio que leva a economia nacional a proporcionar os direitos garantidos na Constituição Federal e qualquer impasse poderá lesar não só um indivíduo, mas todos os quais dependem da prestação estatal para garantir seus direito fundamentais. Por isso, deve ser observado o benéfico para todos, sem analisar somente a vontade privada. Desse modo, assevera-se:

A ordem econômica embora alicerçada em valores de natureza capitalista, prioriza o trabalho humano e a iniciativa privada, fundamentos da Republica Federativa do Brasil (art. 1°, IV, CF/88), sendo consequente a proteção econômica à propriedade privada e, ainda, à função social da propriedade, e que, por meio da intervenção estatal ao domínio econômico, sejam assegurados os direitos econômicos, em prol de uma existência digna a todos. (COSTA, 2006, p. 227)

Portanto, resta evidenciado que a vontade do particular não poderá prevalecer sobre o interesse da população como um todo.  Quando a questão envolver os direitos decorrentes de sucessão testamentária, as restrições devem ser analisadas frente aos princípios constitucionais, devendo haver uma ponderação de interesses para que sejam tomadas decisões que satisfaçam a vontade privada, porém sem prejudicar os interesses sociais e o bem estar dos herdeiros, que devem sempre prevalecer.