Os ancestrais da musicalidade brasileira
Os povos indígenas que habitavam o território brasileiro antes da chegada dos europeus compreenderam uma grande variedade de tribos e nações, de cultura material e espiritual também bastante diversificada, apesar de haver pontos comuns quanto ao estilo de vida (FAUSTO, 1997).
No vasto universo cultural encontramos a música indígena brasileira, com seus sons melodiosos, de características próprias e nativas, que associados ao canto e a dança se torna importantíssima na socialização das tribos.
"Antes de mais nada, será preciso compreender que a música indígena é, fundamentalmente, um fenômeno social, coletivizado tanto na sua produção como na sua escuta. Vale dizer, na música indígena todos participam simultaneamente como produtores e fruidores da música (...). A música indígena integra-se quase sempre a um evento coletivo ou a uma função social importante para toda a comunidade ? como uma festa, um canto de trabalho, uma incitação à guerra, um ritual de passagem, um encantamento, um exercício de memória coletiva, uma dramatização mitológica. (...) Deve-se ainda acrescentar que a poderosa dimensão social da música indígena não necessariamente tem de tomar a forma de uma manifestação coletiva. O canto emitido individualmente também tem o seu lugar, mas é preciso compreender que esse canto atende sempre a uma função social bem marcada: pode ser o fio condutor de um encantamento utilizado para curar doenças, ou evocar a chuva, no benefício de toda a comunidade, ou pode ser a canção que se abre para o registro da memória coletiva, ou para a dramatização de um mito através de cuja reprodução a comunidade inteira procura uma forma de autoconhecimento". (José D? Assunção Barros).

Nesse sentido, com a chegada dos europeus ao território brasileiro, muitas das tribos que existiam à época de Pedro Alvares Cabral, desapareceram e/ou foram absorvidas pela sociedade dos colonizadores, ou ainda, aniquiladas pela violência a que foram submetidos durante os últimos cinco séculos, tais como, morte por doenças e fome depois que suas terras foram tomadas e seus meios de sobrevivência destruídos. Podemos citar ainda, a catequização, que levou ao desaparecimento de suas crenças religiosas e outras tradições culturais.
Segundo Vasco Mariz, em sua obra História da Música no Brasil , "os jesuítas utilizaram a música como instrumento de conversão dos gentios" e sob a forte influência européia as crianças indígenas aprendiam a cantar, dançar e tocar (flauta, gaitas, tambores, violas e até cravo) e nas aldeias já civilizadas existiam escolas de música. Em 1578, na Bahia, os padres já formavam os primeiros "mestres-das-artes". Instruidos a tocar instrumentos e a prática do canto coral de repertório tradicional da igreja (cantos gregorianos do gênero renascentista), vê-se o nosso indígena sucumbir ante influência tão poderosa, o que provocou a "deculturação da música indígena brasileira". Em contrapartida, a música brasileira recebeu uma riquíssima contribuição africana, através dos escravos negros. Muito embora, a mescla entre o folclore musical africano e a avassaladora cultura músical europeia tenha sido lenta, porque tudo que vinha dos escravos era desprezado, e significativa contribuição será reconhecida somente após a libertação dos escravos.
"Dizia que o papel do negro e sobretudo do mulato era importante porque cedo os indígenas se tornaram esquivos e se retiraram para regiões remotas do Brasil. O escravo e seus descendentes cada vez mais claros se tornaram em breve os personagens mais significativos no terreno da música, uma vez que ainda naquele tempo o músico era nivelado aos criados ou empregados. "
"A música no período colonial, portanto, permaneceu essencialmente européia apesar de quase exclusivamente interpretada por mulatos e negros. As atividades musicais foram de maior vulto na Bahia e em Olinda, embora não se deva menosprezar o que ocorria no Rio de Janeiro, em São Paulo, Paraná, Maranhão e Pará."
Durante todo o século XVIII novas influências vão sendo agregadas à música brasileira, criando-se novos gêneros, ritmos e instrumentais. Surgiram as bandas de coretos e militares e o choro; a modinha ? importante gênero musical criado em Portugal, responsável pelos aspectos melodicos e romanticos de grande influência até a Nova República; a produção de música religiosa, ou lírica; o lundu africano ? dança africana de meneios e sapateados, será um dos elementos de formação do samba. Também as valsas, as polcas e os tangos de diversas origens estrangeiras encontram no Brasil uma nova forma de expressão. Essa diversidade de gêneros foi se formando, e lentamente se infiltrando, a partir do constante tráfico de escravos africanos, que embora tivessem suas manifestações religiosas e folclóricas reprimidas nos primeiros séculos, não foram dizimadas como a cultura indígena, e explodiram após a abolição da escravatura.
No mesmo período os músicos começam a se organizar, e pequenas orquestras e corais desenvolviam grande atividade musical em festas de todo gênero, e muito embora as apresentações ainda modestas, as igrejas e as casas urbanas ou de fazendas, se tornaram pequenas, motivando a construção das primeiras salas de concerto chamadas "casas de ópera". O repertório adotava modelos napolitanos da "opera buffa" (obra sobre um assunto cômico, onde geralmente se utiliza o diálogo falado) e surge o primeiro compositor brasileiro, Antonio José da Silva (1705-1739), cognominado "o Judeu", que apesar de alcançar grande sucesso em Lisboa com seu teatro satírico, custou-lhe a ira da Inquisição e como punição foi degolado e queimado. (MARIZ, 2008)
Enquanto isso, a Capitania das Minas Gerais vive seu período áureo da mineração, ou seja, com a riqueza oriunda da mineração do ouro e diamantes, a capitania passa a atrair uma grande população, o que vai proporcionar seu desenvolvimento urbano e, conseguintemente, emerge uma burguesia e se torna um celeiro de artistas, dentre os quais, músicos vindos da Bahia e de Pernambuco, quase todos mulatos e os poucos padres-músicos, que se instalam em Ordens Religiosas ou Irmandades.
Segundo Kurt Lange, a música surgiu em Minas assim que foram formados os primeiros arraiais e erigidas as primeiras capelas de taipa. Estava presente não só nas cerimônias religiosas e oficiais, mas também no lazer, nas ruas e nas casas. Muito melhor organizados, os músicos mineiros organizaram conservatórios abertos aos mais humildes e mesmo escravos. Limitados à música religiosa foram comparados aos grandes compositores europeus da música sacra da época, também estavam familiarizados com as cantatas, sonatas e rondós. Destaque para José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, mulato e de origem humilde, para Lange, "possuía uma técnica extraordinariamente expressiva e avançada para sua época".
No final do século XVIII, com o esgotamento das riquezas minerais e os problemas políticos com Portugal, começa o fim do profissionalismo musical em Minas e os músicos migram para o Rio de Janeiro e São Paulo, onde foram surpreendidos pela modéstia musical que só vai se alterar com a chegada de D. João e a família real. E apesar das diversas camadas sociais existentes, ainda que europeizadas, a colônia ia construindo seu próprio caminho musical à medida que suas vilas se desenvolviam. (LIMA)
Em 1808, com a vinda da família real e consequentemente, a transferência da Metrópole para a colônia, os primeiros atos de D. João foram, abertura dos portos, a criação de escolas, hospitais, bibliotecas, teatros, Banco do Brasil, entre outros, tudo para satisfazer as necessidades e caprichos da própria família e a suntuosa corte, alterando toda a vida cotidiana da pacata cidade do Rio de Janeiro, que teve no período Joanino intensa atividade musical, muito embora já existisse uma vida musical significativa.

Fontes:
MÚSICA INDÍGENA BRASILEIRA ? FILTRAGENS E APROPRIAÇÕES HISTÓRICAS. Proj. História, São Paulo, (32), p. 153-169, jun. 2006. A Dimensão Social da Vida Indígena p.160-163.
MARIZ, Vasco. HISTORIA DA MÚSICA NO BRASIL. RJ: Ed. Nova Fronteira, 2008.
500 ANOS DE MÚSICA BRASILEIRA - http://www2.uol.com.br/uptodate/500/index3.html - acesso em 16/10/10.
Renato Roschel. Almanaque - http://almanaque.folha.uol.com.br/musicapopulardobrasil.htm - acesso em 16/10/10.
LANGE, Francisco Kurt. Os Compositores na Capitania Geral das Minas Gerais. Revista de Estudos Históricos, SP. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, n. 3 e 4, 1965. Separata.
REVISTA TEXTO DO BRASIL, nº 12, Música Erudita Brasileira - http://www.dc.mre.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portugues/edicao-numero-12 - acesso em 16/10/2010. "A Modinha e o Lundu", Edilson Vicente de Lima, autor de "As modinhas do Brasil" - Edusp 2001.