ORQUESTRA

de Romano Dazzi

 

Novo documento em branco.  Em branco, viu? Totalmente em branco.

Não sei por que escolhi esta profissão.

Precisa ser muito burro, para imaginar que diariamente, às nove da manhã, baixaria no meu espírito uma aura de inspiração.

É uma tarefa ingrata procurar todos os dias  um assunto novo a ser explorado, uma nova estória cômica, ou romântica, ou patética, que seja capaz de interessar o leitor, pelo menos algum leitor; boa o bastante para fazer vibrar sua alma, fazê-lo tocar aquele instrumento secreto, que cada um de nós conserva, quietinho, em seu coração.

 

Ponho-me a imaginar qual é o instrumento que toca em cada pessoa que conheço. .

E, como sou metódico, penso logo em classificá-las, inicialmente,  por setor:

As madeiras: Aqui classificaria as três empregadas domésticas da vizinhança, que aproveitam qualquer ocasião para dialogar em notas rápidas e baixas, como cuidadosos mas agitados  contra fagotes;

Meninos indo apressadamente para a escola são como alegres e saltitantes flautins; e as suas mães, seriam oboés e clarinetes, com notas destacadas, seguras de si, dando o tom, o tempo e o andamento da melodia.

Aquele rapaz magro, solitário, distraído, tem seguramente um triste oboé, um instrumento que só  se escuta em raríssimos solos.

Alguns deixam dúvidas: aquele azedo e mal encarado dono da banca de jornais, na esquina, não pode ter um violino na alma; talvez um impertinente corno inglês, alertando que já começou a caça à raposa... ou será um surdo, praguejando – em surdina – contra os males do mundo?

As cordas, para mim, são aquelas meninas românticas e sensíveis (na verdade quase não existem mais, nesta época); elas têm sabor de violino, com notas agudas, estridentes, que parecem  sempre a ponto de fugir do pentagrama, de desafinar; e você as vê, aos poucos, transformarem-se em violas, e em violoncelos, em suas medidas, na voz, na expressão, e por fim, quando viram belicosas sogras, em  contrabaixos, solistas prepotentes.

A percussão:  o garoto meu vizinho, tão barulhento e inconveniente, deve ter tirado de dentro (mais facilmente da barriga, que da alma) a bateria completíssima que usa, nos seus exercícios matinais,  com outros instrumentos de tortura ..... digo, de percussão.

E depois, quando vamos à cidade, toda a sorte de instrumentos acorda, vive e se agita, à sua volta, com tímpanos, triângulos, pratos, bumbos, empurrando-nos o  seu ritmo e escorraçando de seus domínios qualquer indesejável intruso.

 

Mas a maioria das pessoas entra na grande família dos metais.

Executivos de gravata e paletó, como trompetes e trombones, que dão volume e vivacidade à música, chamando toda a atenção sobre si, às vezes espalhafatosos, gritantes, insuportáveis; inventando variações insuspeitadas; quase mandando  o resto da orquestra calar a boca. Porque se acham os verdadeiros donos do palco e desafiam o maestro o tempo todo.

Velhos desocupados, fumando seus cachimbos, sentados nos bancos da praça, me parecem tubas tranqüilas, limitando a três ou quatro notas – sempre repetidas -  sua partitura cansada.     

Mas eu gosto do fim de noite; quando acabam todas as ocupações, os serviços, o trabalho, e meus pensamentos vão dar uma voltinha, saindo pela janela, rumo às estrelas; e você vem sentar perto de mim, tranqüila,  carinhosa, e tira de sua alma aquela harpa, que me deixou apaixonado, tantos anos atrás. Esqueço o mundo, me deixo levar e adormeço  feliz.   

Viu? Sem que eu percebesse, a minha fantasia escreveu a crônica de hoje. 

Deus abençoe !!!