ORÇAMENTO PÚBLICO E A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

O orçamento público é o tema deste artigo, no qual sua importância se verifica na destinação de recursos para as políticas públicas de saúde. Dentro do tema, será abordado o princípio da reserva do possível, muito utilizado nas discussões sobre a oferta de subsídios para a saúde pelo Estado.

A reserva do possível consiste em atender aos direitos fundamentais de acordo com a disponibilidade de orçamento, ou seja, quando há receita para tanto. O Estado é obrigado a garantir o mínimo existencial, com políticas públicas de saúde adequadas a atender o maior número de pessoas de forma equilibrada, com igual volume de recursos. É importante a compreensão do conceito e espécies de orçamento público para o estudo da teoria da Reserva do Possível, tema abordado neste artigo.

 

1. Conceito de orçamento público

O conceito atual de orçamento sofreu mudanças desde sua origem. Basicamente, orçamento é um documento contábil que contém a previsão de receitas e a autorização de despesas. Porém, nem sempre as finanças do Estado foram previstas em um documento assim. Na antiguidade, as finanças do rei confundiam-se com as do Estado, e este passava a controlar os recursos públicos como parte de sua fortuna (OLIVEIRA, 2011, p. 344).

O marco histórico para a origem do orçamento público está na Inglaterra, em 1215, através da Magna Carta, que previu a elaboração do orçamento diante dos excessos tributários e arbitrariedades impostas pelo Príncipe João Sem Terra. Assim dispõe o art. 12 da referida Carta:

Nenhum tributo ou auxílio será estabelecido no nosso reino sem o consentimento do conselho dos comuns do nosso reino, a não ser que se destine ao resgate da nossa pessoa, à entrada em cavalaria do nosso filho mais velho e ao casamento da nossa filha mais velha, por uma única vez, e em tal caso apenas será lançado um auxílio razoável; o mesmo sucederá com todos os auxílios da cidade de Londres.

A Magna Carta permitiu que os tributos passassem por um conselho, para avaliar os gastos do reino. Assim, foi a primeira vez que houve o controle dos tributos através de um conselho, inspirando as Constituições que se seguiram. O orçamento era um instrumento político, que servia como escudo contra os governos.

A partir do regime representativo os gastos públicos passaram a ser controlados através do Parlamento, que passou a ser um órgão de controle do rei, e consequentemente teve o propósito de discutir o destino dos recursos públicos, já que inicialmente o parlamento tinha apenas a função de autorizar as receitas. (OLIVEIRA, 2011, p. 344 -345). 

Para Aliomar Baleeiro (2010, p. 521), orçamento é o "ato pelo qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei".

Devido às mudanças históricas, o orçamento teve seu conceito alterado, deixando de ser mera peça contábil e financeira, passando a ser um programa de governo, de caráter político.

 No Brasil, desde a edição da Lei nº 4.320/64 foi adotada a ideia do orçamento-programa, que tem como principais características o elo entre o planejamento e ações governamentais, a destinação dos recursos públicos atrelada ao alcance de objetivos e metas, as despesas agrupadas não só pela natureza econômica, mas também segundo as funções e programas do governo e avaliação da eficiência e efetividade das ações governamentais (FURTADO, 2010, p. 49).

Na verdade, o orçamento é um documento que tem fundamento na democracia, já que “é o dispositivo que instrumentaliza a satisfação das necessidades dos cidadãos, manifestadas através de seus representantes, os quais, em um regime democrático, são eleitos pela vontade soberana do povo” (FURTADO, 2010, p. 60).

Em uma democracia, o orçamento é um documento que vincula uma ação do Estado, de modo a atender os anseios sociais. Regis Fernandes de Oliveira ensina:

Com a assunção de novas responsabilidades, a estrutura do Estado moderno cede a imperativos de boa administração. Já não bastam boas intenções. O Estado, por meio de seus governantes, tem o dever de planificar a peça orçamentária, de forma a identificar a intenção de cumpri-la. Não pode estabelecer previsões irreais ou fúteis, apenas para desincumbir-se de determinação constitucional. A peça orçamentária há de ser real. (OLIVEIRA, 2011, p. 369, grifo do autor).

Por isso, é importante que existam mecanismos de legitimidade à participação popular no controle orçamentário. Cidadão é mais do que ser titular de direitos políticos. O exercício da cidadania significa a participação direta na política, fiscalizando e contribuindo com atos do Estado.

Em verdade, a população consciente há de organizar-se em entidades legitimadas a pressionar os agentes públicos a que disponibilizarem dados e informações, para que possam exercer efetivo controle sobre o gasto público e que possam participar da elaboração de projetos de interesse da cidadania. (Ob. Cit., p. 357).

O maior exemplo disso é o orçamento participativo, pelo qual a consulta à população sobre suas necessidades é obrigatória.  Essa consulta ocorre no âmbito municipal, e tem fundamento no art. 29, inciso XII da CF, que prevê a cooperação das associações representativas no planejamento municipal.

Assim, a participação popular na elaboração do anteprojeto orçamentário é essencial para a democracia, visando refletir os reais interesses da comunidade.

  1. 2.        Competência para a elaboração do orçamento

Segundo a Constituição Federal de 1988, pelo artigo 165, cabe ao Poder Executivo a iniciativa das leis orçamentárias:  plano plurianual, de diretrizes orçamentárias e de orçamentos anuais, através do Presidente da República, que encaminhará ao Congresso Nacional os respectivos projetos de lei e as propostas (CF, Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: XXIII - enviar ao Congresso Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstos nesta Constituição). Esses projetos e propostas, por sua vez, devem estar de acordo com os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.

Portanto, compete ao Executivo a iniciativa de elaboração do orçamento, em parceria com o Legislativo, a quem compete a sua aprovação, através de Lei Complementar (art. 165, § 9º, CF).

Nesse sistema o orçamento realiza sua função política, seguindo a harmonia e fiscalização mútua dos Poderes. Enquanto o Poder Executivo elabora a proposta orçamentária, o Legislativo atua como freio e contrapeso, autorizando, ou não, as despesas planejadas pelo Executivo (FURTADO, 2010, p. 50).

Em decorrência da forma federativa do Estado brasileiro, o orçamento tem sua elaboração descentralizada, para que haja a melhor consecução das políticas e ações públicas formuladas. Assim, os entes federativos podem atender as necessidades em nível local, regional ou nacional. (FURTADO, 2010, p. 59).

O orçamento é dividido, conforme a Constituição Federal, em três leis orçamentárias. Elas têm vigência temporária e características próprias, são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, a quem incumbe encaminhar as propostas ao Legislativo.

O plano plurianual é elaborado no primeiro ano da gestão do chefe do Poder Executivo, e tem a duração de quatro anos, sendo os três últimos anos do seu mandato e o primeiro ano de mandato do seu sucessor (ou seu segundo mandato, caso seja reeleito).

Essa peça contém o plano de governo, através de diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal, estadual e municipal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. É o que estabelece o art. 165, §1º da CF, que só menciona a administração pública federal, porém, por simetria, a norma é aplicada também para os Estados e Municípios.

No âmbito federal, o plano plurianual tem a função de promover o desenvolvimento econômico, o equilíbrio entre as regiões do País e a estabilidade econômica (FURTADO, 2010, p. 101).

Através dessa lei que são estabelecidos os princípios que orientam a execução dos programas do governo, os objetivos e metas a serem alcançados, além dos programas sociais, como por exemplo, o programa “Bolsa Família”, que resultam em prestação de serviços à comunidade, pagamento de benefícios e encargos financeiros (FURTADO, 2010, p. 100-101).

As despesas de capital são aquelas que aumentam o patrimônio público a fim de implantar ou expandir os serviços públicos, e as decorrentes dela são as despesas necessárias com a manutenção desses serviços e programas.

Segundo a CF, art. 165, § 7º, “Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade”. Isso quer dizer que a lei orçamentária não poderá conter nenhum investimento com duração superior a um exercício financeiro que não esteja previsto no plano plurianual.

A lei de diretrizes orçamentárias é uma inovação da Constituição Federal de 1988, inspirada nas experiências da Alemanha e França. Trata-se de lei anual, que cuida do planejamento de curto prazo, elaborado pelos entes federativos e de iniciativa privativa e vinculada do Chefe do Poder Executivo (FURTADO, 2010, p. 104).

A lei deve traçar regras gerais para a aplicação do plano plurianual e orientar os orçamentos anuais, e compreenderá as metas e prioridades contidas no plano plurianual, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, além de dispor sobre alterações na legislação tributária e estabelecer a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento (CF, art. 165, §2º).

Por isso, a lei de diretrizes orçamentárias tem natureza transitória, vinculada a um exercício financeiro determinado. Segundo Ricardo Lobo Torres (2007, p. 174), “é simples orientação ou sinalização, de caráter anual, para a feitura do orçamento”.

Importante ressaltar que a lei de diretrizes orçamentárias “não cria direitos subjetivos para terceiros nem tem eficácia fora da relação entre os Poderes do Estado” (TORRES, 2007, p. 174). Assim, não se pode exigir o cumprimento das disposições nela contidas, já que não se trata de lei material, apenas formal.

A lei de diretrizes orçamentárias é de grande importância para a elaboração do orçamento anual, pois fixa as despesas executadas no ano subsequente, escolhendo dentre os programas contidos no plano plurianual quais serão os prioritários na execução do orçamento (FURTADO, 2010, p. 106).

 Tanto o plano plurianual como a lei de diretrizes orçamentárias são fases anteriores de planejamento governamental, que serão executados pela lei orçamentária anual, e não vinculam o Congresso Nacional quanto à elaboração do orçamento.

A lei orçamentária anual, assim como as outras leis orçamentárias, é de competência privativa e vinculada do Chefe do Poder Executivo, nas três esferas de governo. Ela compreende o orçamento fiscal dos Poderes da União e órgãos da administração direta e indireta, o orçamento de investimento das empresas estatais e o orçamento de seguridade social (CF, art. 165, §5º).

Sua vigência é de um ano, ou melhor, de um exercício financeiro, compreendido entre 1º de janeiro a 31 de dezembro, e seu projeto deve ser encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro anterior (31 de agosto), devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa (22 de dezembro). Isso no âmbito federal, porém, os Estados e Municípios devem adotar procedimento equivalente nas constituições estaduais e leis orgânicas (FURTADO, 2010, p. 119).

A lei orçamentária anual consiste em uma peça única, em observância ao princípio da unidade, que contém todas as receitas e despesas de todos os Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, consagrando o princípio da universalidade (OLIVEIRA, 2011, p. 393).

Segundo J. R. Caldas Furtado (2010, p. 115), “não se pode dizer que o princípio da unidade implica a existência do orçamento consubstanciado em um só documento, mas, sim, que os diversos orçamentos sejam harmônicos entre si e constantes de uma lei única.

Portanto, as leis orçamentárias estão em harmonia, pois as receitas e despesas da lei orçamentária anual devem estar de acordo com metas estabelecidas pela da lei de diretrizes orçamentárias, que por sua vez tem os programas, objetivos e metas do plano plurianual.

3. O dever de destinar recursos para a saúde

A Constituição Federal, no art. 23, estabelece que é competência comum da União, Estados Distrito Federal e Municípios a saúde pública, educação, dentre outros serviços relevantes, e o orçamento é de grande importância para a definição das ações governamentais dos entes da Federação (FURTADO, 2010, p. 58).

O orçamento público, em regra, não vincula receita de impostos a nenhuma despesa, órgão ou fundo, de acordo com o art. 167, IV, CF. Este é o chamado princípio da não afetação, um dos princípios orçamentários, que garante a disponibilidade do dinheiro arrecadado sem haver desfalques. Porém, esse princípio comporta exceções e a destinação de recursos à saúde é uma delas. Segue a redação do referido artigo:

Art. 167. São vedados: IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo.

Essa exceção comportada pelo artigo veio com a EC 29/2000, que alterou os artigos 34, 35, 156, 167 e 198 da Constituição Federal para vincular e dar prioridade à destinação de recursos públicos para a saúde.   

A partir dessa reforma, o orçamento deixou de ser aquela peça onde os gastos eram discricionários, que ensejavam opções aos políticos na escolha e destinação das verbas, para um documento vinculado aos preceitos que o legislador constituinte elegeram como primordiais para o desenvolvimento da sociedade (OLIVEIRA, 2011, p. 372).

A Lei nº 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) instituiu o Sistema Único de Saúde – SUS, que consiste no “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público” (Lei 8.080/90, art. 4º).

A lei também fala sobre a destinação de recursos para a saúde. Assim dispõe:

“Art. 31. O orçamento da seguridade social destinará ao Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, previstos em proposta elaborada pela sua direção nacional, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias.”

O orçamento da seguridade social é o previsto na Constituição Federal, art. 165, § 5º, III, que compõe a lei orçamentária anual, conforme descrito no item anterior. A seguridade social significa os planos de atuação do Estado relativamente à saúde, à previdência e à assistência social (art. 194 da CF).

O art. 195 da CF estabelece que a seguridade social seja financiada pelos recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de contribuições sociais previstas nos incisos do referido artigo. Ou seja, todos os recursos destinados a ela devem estar contidos nos orçamentos.

4. Histórico da reserva do possível

A reserva do possível tem origem na década de 1970, no direito alemão, em um famoso julgamento sobre vagas nas universidades do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Caso Numerus Clausus I, BVERFGE 33, 303, do Primeiro Senado em 18/07/72).

O caso refere-se a uma reclamação de um estudante sobre o ingresso nas Universidades da Bavária e de Hamburg, que alegava ter direito à livre escolha de sua profissão, e para isso, gostaria de ocupar uma vaga em uma dessas universidades, já que a graduação era necessária para o exercício profissional. Porém, o número de vagas era limitado, e não atendia a todos os estudantes que concluíam os estudos de nível médio (Hochschule).

O Tribunal Constitucional Federal Alemão decidiu que o estudante não teria direito de demandar do Estado uma vaga, alegando que “a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sobre a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 188).

A partir dessa decisão, a doutrina majoritária e a jurisprudência alemã entendem que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros do Estado, chamando esse instituto de “reserva do possível” (Der Vorbehalt des Möglichen). Essa disponibilidade financeira está sintetizada no orçamento público, e depende da discricionariedade das decisões governamentais e parlamentares. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 188).

5. A reserva do possível e sua tríplice dimensão

A teoria da reserva do possível guarda estreita relação com os direitos fundamentais, que exigem prestações positivas do Estado, e consequentemente, disponibilidade financeira e política para tanto.

A Constituição Federal brasileira traz em seu art. 5º, § 1º que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Como lidar com essa aplicação imediata diante da limitação dos recursos?

A “reserva do possível” tenta minimizar os efeitos desse paradigma, buscando o equilíbrio entre a realização dos direitos fundamentais e um limite para essa prestação de direitos.

Antes de se falar em limitação financeira, vale ressaltar que os preceitos e fundamentos da Constituição Federal devem ser respeitados, principalmente no tocante ao art. 3º e aos direitos fundamentais. Nesse sentido:

Importa, portanto, que se tenha sempre em mente, que quem “governa” – pelo menos num Estado Democrático (e sempre constitucional) de Direito – é a Constituição, de tal sorte que aos poderes constituídos impõe-se o dever de fidelidade às opções do Constituinte, pelo menos no que diz com seus elementos essenciais, que sempre serão limites (entre excesso e insuficiência!) da liberdade de conformação do legislador e da discricionariedade (sempre vinculada) do administrador e dos órgãos jurisdicionais. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 194).

Vale destacar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADI 2010-MC, cujo Relator foi o Ministro Celso de Mello:

RAZÕES DE ESTADO NÃO PODEM SER INVOCADAS PARA LEGITIMAR O DESRESPEITO À SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - A invocação das razões de Estado - além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de justificação de medidas legislativas - representa, por efeito das gravíssimas conseqüências provocadas por seu eventual acolhimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização político-jurídica. Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental. A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus agentes, com a Constituição, há de ser, necessariamente, uma relação de respeito. Se, em determinado momento histórico, circunstâncias de fato ou de direito reclamarem a alteração da Constituição, em ordem a conferir-lhe um sentido de maior contemporaneidade, para ajustá-la, desse modo, às novas exigências ditadas por necessidades políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a prévia modificação do texto da Lei Fundamental, com estrita observância das limitações e do processo de reforma estabelecidos na própria Carta Política.

Para a jurisprudência alemã, não existe uma obrigatoriedade por parte do Estado de prestar a todo custo os direitos fundamentais, pois “mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 189).

“A teoria da Reserva do Possível somente poderá ser invocada se houver comprovação de que os recursos arrecadados estão sendo disponibilizados de forma proporcional aos problemas encontrados” (SARLET, 2009, p. 265).

De acordo com as lições de Ingo Wolfgang Sarlet, a chamada reserva do possível possui uma dimensão tríplice, incluindo:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 189, grifos meus).

Sobre os direitos sociais, grande parte da doutrina acredita que “a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se aloque algum recurso”. Porém, mesmo que a prestação não seja diretamente de cunho financeiro, ela precisa de recursos materiais e humanos, que dependem da receita tributária e outras formas de arrecadação pelo Estado (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 187).

O princípio da proporcionalidade possui dupla acepção, e deve agir como proibição do excesso e da insuficiência na alocação de recursos, bem como “atuar sempre como parâmetro necessário de controle dos atos do poder público, inclusive dos órgãos jurisdicionais, igualmente vinculados pelo dever de proteção e efetivação dos direitos fundamentais” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 192).

Com isso, discute-se a disponibilidade fática e jurídica dos direitos sociais, ou seja, se existem recursos disponíveis, se o destinatário da norma está obrigado a prestar o que a norma lhe impõe e se o Estado tem o poder de dispor, senão de nada adianta ter recursos financeiros. Então, a reserva do possível não está relacionada somente a possibilidades financeiras, mas também a disponibilidade jurídica e da proporcionalidade da prestação.

Portanto, pode-se afirmar que a reserva do possível atua como um limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, e também, como garantia dos direitos fundamentais, observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos fundamentais (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 189).

6. A reserva do possível nas ações judiciais

O Poder Judiciário também está vinculado ao dever de proteger e efetivar os direitos fundamentais, em especial os direitos sociais, já que no caso desses direitos a insuficiência ou inoperância, em virtude da omissão plena ou parcial do legislador e administrador, causa impacto mais direto e expressivo (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 192-193). 

Nas ações que envolvem um direito subjetivo a determinada prestação social, os magistrados deverão agir com extrema cautela e responsabilidade ao conceder ou negar esse direito, para que não haja a violação da democracia e do princípio da separação dos Poderes (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 190-191).

Para isso, os juízes, bem como todos os responsáveis pela efetivação dos direitos sociais, devem observar os “critérios parciais da adequação (aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada), necessidade (menor sacrifício do direito restringido) e da proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da equação custo-benefício)” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 193).

Ocorre que é comum encontrar nas contestações dos entes estatais a alegação da reserva do possível como forma de fugir das responsabilidades sociais, sem restar comprovado que há realmente uma limitação fática e jurídica para cumprir a prestação social pleiteada. Dessa forma, entendem Sarlet e Figueiredo (2008, p. 191):

[...] vale destacar que também resta abrangida na obrigação de todos os órgãos estatais e agentes políticos a tarefa de maximizar os recursos e minimizar o impacto da reserva do possível. Isso significa, em primeira linha, que se a reserva do possível há de ser encarada com reservas, também é certo que as limitações vinculadas à reserva do possível não são, em si mesmas, necessariamente uma falácia. O que tem sido, de fato, falaciosa, é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social. (grifo meu).

A reserva do possível não pode ser vista dessa maneira, como uma “desculpa genérica” para se esquivar das obrigações sociais. Cabe ao Poder Público comprovar a falta efetiva dos recursos para os direitos e prestações, bem como a correta aplicação desses recursos.

Um bom parâmetro e ferramenta para minimizar o impacto da reserva do possível é a observância do mínimo existencial quando da alocação e destinação de recursos para as políticas públicas. Com isso, ao perceber alguma falha nessas escolhas políticas, pode haver o controle jurisdicional dessas decisões de caráter político, no sentido de preencher as omissões estatais e cumprir os deveres constitucionais. 

Outra maneira de reduzir os efeitos da reserva do possível é “o controle judicial das opções orçamentárias e da legislação relativa aos gastos públicos em geral”. O magistrado tem a opção de obrigar os Poderes Legislativo e Executivo a observar as escolhas orçamentárias para o exercício subsequente, com o objetivo de suprir a falta daquela política pública.

 Assim, além de conceder o direito naquela situação específica, o magistrado pode garantir que nos exercícios seguintes, não haja mais a omissão estatal do direito em questão, evitando mais situações semelhantes e o mais importante, cumprirá sua função de proteger e efetivar os direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

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BRASIL, Constituição Federal. Disponível em:

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 28962/MG, 2009/0037261-9, Relator: Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, Data do julgamento: 25/8/2009, DJe 03/9/2009.

FURTADO, J. R. Caldas. Elementos do direito financeiro. 2. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

INGLATERRA. Magna Carta. Disponível em: <georgelins.com/2009/08/09/a-magna-charta-de-joao-sem-terra-1215-a-peticao-de-direitos-1628-e-o-devido-processo-legal/>. Acesso em: 17 set. 2013.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública, p. 179, 2008. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/DOUTRINA_9.pdf>. Acesso em: 10 set. 2013.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 14ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.