Oralidade Cultural e Literatura 

   Felisberto  Vasco Gonçalves[1]

1. Introdução

Antes da invenção da escrita, todo o saber era transmitido oralmente. A memória humana (essencialmente a auditiva) era o único recurso de que dispunham as culturas orais para armazenamento e transmissão do conhecimento às futuras gerações. O dom da fala, enquanto seqüência conexa de sons que objetivassem possibilitar a comunicação numa gama complexa de situações, possivelmente despontou junto com os primeiros espécimes de Homo Sapiens.  A base da oralidade certamente levou milhares de anos para se consolidar como linguagem fluente. É interessante supor a importância atávica da oralidade nos primitivos grupos humanos que habitavam cavernas.  Não é difícil imaginar o grande número de relatos de caçadas, lutas e descobertas de um clã ou comunidade ao pé do fogo numa noite fria. Como parte possível de relatos da experiência humana na Terra, a paleo-escrita ideográfica foi, na aurora dos tempos, esboçada nas paredes das cavernas, com mãos tateando e delineando cenas impressas com gordura animal, carvão e óxidos minerais, como se a mente, a boca e o gestual não bastassem, para exprimir toda a emoção da oralidade. O périplo humano no planeta Terra não poderia prescindir da oralidade como recurso para o florescimento de importantes culturas e suas expansões. As mais antigas lendas e sagas, apenas “recentemente” codificadas pela escrita, viajaram pelo tempo através do veículo da oralidade cultural. Destaco aqui o importante papel da oralidade em ensinamentos antigos que mudaram a face da humanidade através de relatos como a epopéia do Gilgamesh, os códigos de Hamurabi e de Manu, o Mahabharata, o Tao Te King, o Rubayat,  os ensinamentos de Budha, de Zoroastro, de Moisés, de Jesus e muitos outros sábios que não tendo escrito uma linha sequer influenciaram toda a humanidade com sua potente oralidade.

            Na digressão da espécie humana através dos milênios, considerando que a popularização da escrita é fato recente, quantos belos poemas de amor e glória brotaram do silêncio, da saudade e da distância, quantas poderosas preces foram proferidas para remover montanhas, quantas fórmulas mágicas “abre-te sésamo!” foram proferidas, quantas maldições druidescas foram vociferadas  ao vento, quantas pragas das velhas senhoras medievais queimadas em fogueiras, quantas bênçãos verbalizadas por mulheres aflitas em praias ibéricas aos filhos, noivos e maridos que se lançavam ao estrepitoso mar tenebroso. Quanta sorte foi mudada pelas previsões e relatos orais das sibilinas gregas, das sacerdotizas de Osíris, das feiticeiras de Évora, Salem ou Avalon...

            As lendas e narrativas,  receitas de culinária, secretas poções curativas, rezas e encantamentos tem proliferado em todos os povos, inclusive os ciganos, notadamente sem registros escritos, mas que em sua sabedoria, magia, música, canto e dança têm contribuído para o extenso mosaico cultural humano. Todas as culturas conhecem a fórmula mágica do “era uma vez...” ao iniciar uma narrativa. Das nonas italianas, às babushkas eslavas, às oba-san japonesas, em todas a oralidade floresceu e de todas se alimentou do alento, da saliva e do amor ao ter junto aos seus os pezinhos dos pequeninos se aquecendo sob um aconchegante cobertor em noite fria.

 A própria Sherazade e sua fabulosa habilidade de narrar e encenar  histórias encantou o califa inimigo, que lhe havia prometido a morte, mas que ao final de 1001 noites, não só lhe concedeu a liberdade como se apaixonou por ela, dando-lhe metade de seu reino. 

O narrador, revestido da autoridade que a história lhe confere, magnetiza seus interlocutores numa relação atávica, como que atraídos por labaredas de fogueiras primitivas. O gestual, as entonações, as rimas, as mudanças nas tonalidades de voz deslancham a força quase hipnótica de provocar empatia com os personagens, induzir piedade, desabrochar paixões, revoltas, ódios, lágrimas, humor e gargalhadas, situações do ridículo, do bizarro ou que atiçam o romance e o amor.

A inteligência estava intimamente relacionada à memória. Os mais velhos eram reconhecidos como os mais sábios, uma vez que detinham o conhecimento acumulado. A figura do mestre nas corporações, aquele que transmite seu ofício ao aprendiz, também exerce um papel importante nas sociedades orais.

O "pensamento mágico", a despeito dos aspectos teológicos, desempenha uma função mnemotécnica nas sociedades sem escrita. O mito encarna, através dos deuses, dos feitos de seus heróis e ancestrais, as principais representações de uma comunidade. Para PIERRE LÉVY, esse tipo de narrativa era a melhor estratégia de codificação à disposição das culturas que não possuíam outro instrumento de inscrição além da própria memória.

Alguns autores também denominam as sociedades que antecedem à escrita como sociedades tradicionais, uma vez que nelas o conhecimento é passado de geração a geração por meio da tradição. Para que determinado saber ou fazer se perpetue é necessário que seja escutado, observado, imitado, repetido e reiterado. Nas sociedades ágrafas, como não existia a separação entre o escrito e o falado, a palavra possuía um estatuto bem diferente daquele que lhe é atribuído após o surgimento da escrita. Dessa forma, PIERRE LÉVY prefere fazer a distinção entre a oralidade primária, na qual a palavra, por ser o único canal de informação, é responsável pela gestão da memória social; e a oralidade secundária em que a palavra (falada) tem uma função complementar à da escrita (e posteriormente à dos meios eletrônicos), sendo utilizada basicamente para a comunicação cotidiana entre as pessoas.

Para CLANCHY, o surgimento da escrita é resultado da necessidade em fixar mensagens inicialmente orais e para SCHOLZ o seu surgimento está vinculado ao desenvolvimento do comércio, das comunicações e do direito; é importante observar que tais definições se complementam.

ZUMTHOR nos chama atenção para o fato de que o domínio da escrita era extremamente difícil e de que não era estimulada entre todas as camadas sociais: “escrever é um ofício árduo, cansativo, um artesanato organizado” (1993, pg. 100). Essas dificuldades vão sendo minimizadas com o passar dos anos e o incentivo à escrita vai ocorrer somente a partir do século XX. O trabalho do escriba era restrito a uma elite: chancelaria pontifícia, de bispados, de prefeituras. As oficinas dos copistas adquiriam, inclusive, celebridade pelo exercício desse ofício, tamanho o seu grau de dificuldade. Essas dificuldades inerentes à escritura, determinada pelo período histórico, vão influenciar a sua decodificação, pois muitos sabiam escrever, mas não ler: eram dois aprendizados distintos. (Observar tabela anexa ilustrando a evolução da escrita a partir do século XIII segundo PAUL ZUMTHOR no capítulo V de “A Letra e a Voz”.)

Alguns autores vêem a escritura como o poder de apoiar seu discurso: é o próprio atestado da verdade que vai acrescentar eficácia ao governo dos homens. A palavra, afinal, é o meio pelo qual o homem se manifesta plenamente; não podemos ignorar, entretanto, que para os iletrados, a letra é inacessível, imaterial, mágica.

2. Intérprete e Ouvinte

Ao discutir a função do intérprete e do ouvinte, ZUMTHOR vai conceituar o primeiro como sendo “o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista” (1997, pg. 225) e o segundo como aquele que “possui dois papéis: o de receptor e de co-autor” (1997, pg.242). A relação entre ambos é indissolúvel, pois só há intérprete se houver um ouvinte e vice-versa, mesmo numa relação unilateral quando somos ouvintes de nós mesmos.
       Para ZUMTHOR, o papel do intérprete é mais importante do que o do compositor, pois é a sua performance, o seu desempenho que propiciarão reações auditivas, corporais, emocionais do ouvinte. A poesia oral assume um caráter de anonimato.  A performance do intérprete é a responsável pela sua força enquanto disseminador do texto oral. A intimidade do intérprete com o poema ou do narrador com o que está lendo vai ser avaliada pelo efeito que sua performance terá sobre o público ou sobre o ouvinte: de convencimento, de emoção, de desprezo. Não podemos ignorar, portanto, que nem sempre o que está sendo dito ou interpretado está adequado ao ouvinte ou ao público ali presente. É necessária uma empatia entre intérprete e ouvinte para que haja um resultado final qualitativo; o público alvo deve ter interesses compatíveis com os do intérprete. É curioso observarmos que na Europa, até o período contemporâneo, acreditava-se que a cegueira, por impossibilitar a escrita, dava maior vocação e aptidão ao poeta oral.

Outra idéia que pode nos ajudar a compreender as diferenças entre ler uma história em voz alta e contá-la livremente é a observação de ZUMTHOR de que quando alguém canta ou recita, seja um texto improvisado ou decorado, “sua voz, por si só, lhe confere autoridade”.  “Sem dúvida a palavra cresce para dentro, quando os olhos não vêem” (ETCHEBARNE, 1991:13). E ainda: “escutar um contador de histórias envolve interpretação e a criação de novas imagens no olho da mente, a partir de velhas concepções e visualizações” (GRAIGNER, 1997:41).

A qualidade da performance está vinculada à completa interação entre intérprete, texto e ouvinte. RICHARDEAU vai estabelecer dois fatos relativos ao ato do leitor que corresponde, neste caso, ao do ouvinte: “distinguir entre as várias espécies de leitura aquelas que diferenciam ao mesmo tempo a natureza do texto-alvo, a função que lhe atribui o leitor e a capacidade de memória” (1993, pg.104).

 A memorização e o prazer do auditório ou do leitor estão vinculados, assim, com o contexto sócio-mental em que está inserido o ato de ler ou de ouvir. Nossa memória faz um registro eterno quando compreendemos o que está sendo lido ou dito de forma espontânea e prazerosa. O ouvinte e o texto sofrem adaptações à medida que se estabelece uma relação entre eles, logo, as alterações da performance vão alterar a reação do ouvinte. A memória coletiva captura os fragmentos significantes e os transforma em elementos de tradição. É o resultado de uma seleção, conseqüência de uma vontade de esquecimento. A manutenção da poesia, inclusive, se dá pela reminiscência, pelo costume e pelo esquecimento, permitindo ao passado permanecer vivo.

Todo grupo tem um saber cumulativo de si oriundo da memória e que são empregados na linguagem, pois o tipo de cultura é determinado pelo uso que uma sociedade faz da memória. As tradições orais são fundamentais para a manutenção dos costumes e servirão de alicerce para a constituição da história de uma sociedade. Sendo a tradição “uma colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas atuais” (ORTEGA Y GASSET, apud ZUMTHOR, 1997 b, pg. 13), o esquecimento é necessário a partir do momento em que nenhuma compreensão é total e toda interpretação é fragmentária, os vazios tornam-se, pois, primordiais para a continuidade da história. É um ritual aderir à tradição e submeter a ela o seu discurso.

 

3. Oralidade e Literaturas Populares

É na oralidade, hábito entranhado nas diversas culturas, que repousa o traço ancestral das literaturas populares. Por isso, e por outras razões, não posso dizer que os meios de comunicação de massa vieram suprir, com exclusivismo, a necessidade do povo em abastecer-se de notícias, tampouco ocupar o espaço de fruição dessas mesmas notícias, produzido pelo povo e para consumo próprio, acessíveis aos estratos sociais pobres.

 O formato tradicional do livrinho é, sem dúvida, um elemento de atração, sobretudo pelo apego às vivências de infância, freqüente entre os leitores de cordel. Contribui no chamamento a apresentação da capa, oferecida em diversas cores (predominaram as suaves: branco, amarelo, rosa, verde azul, creme), e com variedade de ilustrações (xilogravura, fotografia, fotomontagem, desenho com bico de pena e técnica mista).

As “fôrmas” poéticas, tão do agrado de consumidores de folheto, aliam-se à rima, ritmo e métrica. O tom com que o poeta trata o tema confere à obra o status de obra singular, atraente, pelas peculiaridades impostas pelo estilo do criador, associado à quantidade e qualidade de informações que detém. No âmbito da aceitação popular, as formas fixas propiciam a declamação, a memorização e a transmissão oral. É uma linguagem a que o povo está habituado a apreciar e, por isso mesmo, favorece o ato de apreensão da realidade.

4. Folheto de Acontecido

Os estudiosos que se preocuparam em elaborar classificações temáticas dos folhetos de cordel catalogaram uma modalidade usada com freqüência por determinados autores. É a que registra as notícias, como a morte de Getúlio Vargas, o menino que foi comido pelo leão do circo Vostok, um desastre de ônibus em Tacaimbó, as cheias do Capibaribe e as secas do sertão; enfim, acontecimentos que, mesmo apresentados em versos, são vistos sob a perspectiva do jornalismo. Com grande aceitação popular, alguns dos tais folhetos chegaram a surpreender pelo tamanho das tiragens.

Conforme o pesquisador Roberto Benjamin, “João José da Silva chegou a produzir 200 milheiros de um único folheto de atualidade, sobre a morte do presidente Getúlio Vargas. Olegário Fernandes da Silva disse ter feito 24 milheiros d’A morte do coronel Ludugero”. Um poeta, ao identificar-se intuitiva e plenamente com essa modalidade, passou a auto-denominar-se “poeta-repórter”. Foi o paraibano José Francisco Soares (1914 – 1981), radicado em Pernambuco desde1949, quem publicou, dentre outros títulos, Ludugero, morto ou vivo?, A cheia do Capibaribe, A gripe inglesa passeando no Brasil, O homem na lua, A morte de Juscelino Kubistchek.

Na classificação popular, coletada por Liêdo Maranhão, encontrei o folheto de acontecidos ou de época, cuja característica “é o seu aspecto jornalístico” e os poetas mais representativos são “Joaquim Batista de Sena, do Ceará; Rodolfo Coelho Cavalcanti, da Bahia; José Soares, do Recife; e Francisco de Paula”, conforme registra Liêdo. Nos ciclos definidos por Ariano Suassuna, situados a partir de dois grandes grupos por ele propostos (o tradicional e o de “acontecido”), há o ciclo histórico e circunstancial. Para Roberto Benjamin, os fatos de época ou de acontecido são classificados como folhetos informativos. Na classificação de MANUEL DIÉGUES JÚNIOR, os fatos circunstanciais ou acontecidos subdividem-se naqueles de natureza física, repercussão social, cidade e vida urbana, crítica e sátira, elemento humano. ORÍGENES LESSA considera os casos de época dentre os temas efêmeros que não sobrevivem a reedições. No catálogo de literatura popular da Casa de Rui Barbosa, basicamente elaborado por CAVALCANTI PROENÇA, tais folhetos encaixam-se na categoria “reportagem”.

 

5. Resenha Histórica da Literatura Popular

          As manifestações culturais de cada povo, de cada nação, de cada tribo,  sempre ocorreram seguindo o curso da evolução do pensamento, da criatividade e da possibilidade de adequar-se aos novos desafios, por parte dos habitantes, nas mais diversas situações de vida, de ambiente e de circunstâncias que cada comunidade apresenta.  Existem várias versões sobre o surgimento da literatura de cordel, mas a maioria apresenta afirmações comuns em dois pontos básicos: (a) Que essa modalidade cultural surgiu na Europa feudal por volta do século XII; (b) Que os menestréis, trovadores e jograis (três tipos de poetas andarilhos), registravam, mesmo que de forma sutil, a luta entre opressores e oprimidos, ou seja, animavam as festividades nos palácios, cantando as peripécias e os fatos inusitados acontecidos com o povo que vivia em regime de servidão total; e uma vez ao lado desse, registravam em suas trovas o esbanjamento e a luxúria que existia por parte da nobreza e do clero, que eram, em grande parte, os mesmos senhores feudais.

Como o povo durante toda a Idade Média agrária e estamental, não tinha direito ao estudo, não possuía a liberdade de ir e vir, só saía dos seus feudos para guerrear ou para fazer peregrinações a lugares sagrados, torna-se fácil compreendê-lo nas suas manifestações orais e artísticas.  LUYTEN afirma que "Nas viagens de peregrinações existiam três focos de concentração de pessoas:

a)     Provença - Sul da França, onde os peregrinos reuniam-se antes de atravessarem o Mar Mediterrâneo para chegar à Palestina;

 b) Lombardia - Norte da Itália, por onde se tinha de passar para chegar a Roma;

c)      Galícia - Onde ficava o santuário de Santiago." Id. ibid. p: 16.

      A Literatura de Cordel surge nesses três lugares, cujo trabalho dos poetas nômades era semelhante ao jornal de hoje, noticiando os últimos acontecimentos e cantando poemas de aventuras e bravezas. Esse caráter informativo e jornalístico do cordel, ainda continua a existir, mesmo em tempos modernos.  

Com a invenção da imprensa e as grandes descobertas marítimas, posteriormente, com as Revoluções Francesa e Industrial, burgueses e mercadores introduziram novas formas de sobrevivência e o cordel tomou novo rumo, inclusive, espalhando-se pela América, trazido pelo  colonizador.

NOAH GORDON, em seu livro “Xamã” (São Paulo:Rocco, 1994) cita a presença de vendedores ambulantes que cruzavam a América em carroças e que, para vender seus produtos de cidade em cidade, utilizavam-se de apresentações públicas onde o talento da oralidade ajudava a promover as virtudes de tônicos, poções e quinquilharias, aumentando consideravelmente as vendas. O mesmo GORDON, em “O Físico” (São Paulo:Rocco, 1992), destaca a importância dos cantos e récitas do almuadem nas torres das mesquitas como uma forma de conclamar espiritualmente as comunidades muçulmanas  através da oralidade.

 

 

6. O Cordel no Brasil

         A modalidade escrita da literatura popular é registrada através do famoso folheto de cordel que ganhou esse nome por ser pendurado nas feiras livres em cordas ou barbantes. O cordel apresenta uma estrutura formal muito simples. Geralmente impresso  em papel jornal e apenas a capa em pergaminho, impressa pelo método de xilogravura, os folhetos são escritos em sua maioria em versos de 07 sílabas poéticas com estrofes de 06 ou 07 versos. Apresentam uma estrutura formal bem característica, compêndios de 08 (oito), 16 (dezesseis) e 32 (trinta e duas) páginas, onde os dois primeiros tipos são considerados folhetos e o último é também chamado de romance.

Mesmo com as dificuldades e os percalços de ordem econômica, encontramos no Brasil uma infinidade de poetas populares, gente de todas as idades, que produz textos poéticos sobre os mais variados assuntos, empregando grande criatividade, demonstrando uma forma de compor e de se expressar muito particular. Em nosso país, como modalidade escrita e impressa, o surgimento da literatura de cordel data da última metade do século XIX e estende-se até os dias atuais, cujos tempos áureos aconteceram nos anos 40 e 50 do século XX, onde essa modalidade cultural atingiu  sua fase de ouro,  mergulhando posteriormente em profunda crise. Entre os fatores considerados como possíveis causadores dessa crise estão:

-                              o aparecimento do rádio de pilha, instrumento de fácil acesso às populações rurais;

-                              a penetração da televisão no interior e a atração que exerceu sobre sua população;

-                              a elevação dos preços do material empregado pelas tipografias, especialmente o do papel;

-                              a queda da participação popular na vida do país;

-                              a introdução, no campo, de valores de uma cultura urbana, não popular, atingindo principalmente as novas gerações;

-                              a introdução de modas, heróis, costumes, muitos dos quais importados do estrangeiro. 

-                              a introdução de CD’s piratas nas feiras livres, que podem ter substituído o gosto pelo cordel.

   Acontecimentos históricos como o fenômeno do Cangaço, a atuação de Padre Cícero como líder religioso, a Sedição de Juazeiro, a Coluna Prestes, a história de Canudos e o suicídio de Getúlio Vargas, entre outros, são alguns dos tantos assuntos tratados que foram registrados na memória do povo através da oralidade e da literatura de cordel, às vezes com espírito humorístico e/ou fanático, mas sem fugir da verdade dos fatos.

 Não tenho dúvida em afirmar que a literatura popular, através do cordel, ajudou a formar o pensamento político, participativo e organizacional da juventude dos anos 60, tão firme em seus propósitos e tão clara em seus ideais! Pois, em sua grande maioria, os folhetos de cordel estão carregados de uma forte ideologia engajada e transformadora que os poetas populares, verdadeiros porta-vozes do povo, acumulam, vivenciando e ouvindo o clamor dos menos favorecidos nas mais variadas situações de exploração por parte dos patrões, dos descalabros administrativos proporcionados pelos governantes e toda essa saga de luta e trabalho forçado que é a vida do trabalhador.

 

 

 

 

7.  Oralidade, Memória e Dinamismo da História

   A oralidade é a expressão da visão que o povo tem das suas vidas e do mundo que o cerca. É uma espécie de célula mãe que vitaliza e impulsiona a propagação dos fatos que marcam a história de um povo. A memória é a base que mantém a história atual e dinâmica. São tantos os ataques às formas populares de expressões que se não fosse a oralidade e a memória do povo, muito outros elementos culturais como costumes, lendas, rituais, etc., já teriam desaparecido do convívio de vários grupos sociais. Uma sociedade como a nordestina ainda conserva, mesmo que com algumas modificações, muitos dos rituais, crenças e valores medievais. Esses valores foram transmitidos através da oralidade e da memória para as novas gerações, marcadas pela simplicidade, pelas condições climáticas, ambientais e econômicas, pelo estilo de vida, pela religiosidade.

Segundo LUYTEN (1983:21), "...na literatura popular como na erudita temos dois aspectos fundamentais: a prosa e a poesia":

a)                          Prosa - constituída pelos contos populares, provérbios e teatro popular, a prosa oral é muito necessária para a formação das crianças. Esses elementos devem ser mais utilizados em sala de aula no cotidiano escolar para que suas múltiplas utilidades possam ser aproveitadas na transmissão do conhecimento. A comunidade escolar já é familiarizada com esses tipos de manifestações culturais, pois geralmente já entra na escola, sabendo de muitos contos, cantigas, quadras que aprendeu com a família ou com os vizinhos na sociedade.

b)                         Poesia - mesmo sendo registrada ou não, a poesia oral tende a perdurar e ser repassada de geração em geração.

Para LUYTEN (1983:24), existem dois tipos de poesia oral: a fixa e a móvel. A parte fixa da oralidade na poesia seria aquela que é decorada pelo público e é retransmitida ao longo do tempo. Exemplo: as cantigas infantis de ninar e algumas quadras que caem na memória do povo. Ao passo que a poesia oral móvel é sempre criada ao prazer do momento, fenômeno que o povo chama de repente. Geralmente ritmada, e feita de improviso pelos violeiros, cantadores de coco e emboladores, a poesia oral móvel flui como bolhas de sabão, por isso não há uma preocupação em registrá-la, pois os poetas sabem que sempre aparecerão muito mais.
           "Os fatos podem ser apresentados de várias maneiras e através de poesias que se classificam nos conteúdos temáticos abaixo".

"Líricas, filosóficas, humanísticas, contemplativas, descritivas, narrativas, apologéticas, de agradecimentos, picantes, epigramáticas, humorísticas, mistas, condoreiras, de bravuras ou vantagens, disparates, satíricas, de raciocínio matemático, de trocadilhos, de trava-línguas, de súplicas, de lamúrias, de mensagens ou recados, etc.". (Dantas, 1998: 249).

Com essa riqueza e diversidade temática a poesia oral móvel é solta e descomprometida. Alguns cantadores são verdadeiras enciclopédias ambulantes que versejam sobre os mais variados acontecimentos ocorridos na História da humanidade, cantam a Literatura, a música e as artes, conhecem livros importantes como a Bíblia, Os Lusíadas e muitos outros.

          "Dentre as quarentenas modalidades da cantoria, destacam-se as seguintes muito usadas e conhecidas atualmente: quadra, sextilha, setissílabos, decassílabos, martelo agalopado, martelo alagoano, Brasil caboclo, galope à beira-mar, treze por doze, quadrão, coqueiro da Bahia, trava-língua, rojão pernambucano". (Dantas, 1998: 249).

Para efeito didático decidi mostrar um pouco das formas utilizadas no dia-a-dia pelos poetas de cordel e trovadores:

a) Quadra: muito aplicada em prosa, poesia popular, literatura de cordel, sendo os versos com quatro linhas (ou pés), de sete sílabas, com a deixa livre ou rimando com a próxima estrofe, podendo ter um esquema de rima bastante variado.

Nesse mundo turbulento
Escravo do capital
Eu quase que não agüento
Carregar meu ideal.

Luto, luto a cada dia...
Porque lutar não faz mal.
Meu maior sonho seria
Ver o mundo mais igual.
(Valentim Martins)

b) Sextilha: gênero preferido pela maioria dos poetas de cordel e violeiros contendo versos de sete sílabas e estrofes de seis linhas:

É a pobreza aumentando
Numa proporção veloz
Quando ficamos calados
Alguém decide por nós
É por isso que eu digo
Temos que ter vez e voz.
(Valentim Martins)

c) Setissílabos: também chamados de heptassílabos são versos de sete sílabas que podem ser apresentados em estrofes com sete, oito, e dez linhas:

Lágrimas, sonhos, sorrisos...
Temos sempre eu e você
É difícil a caminhada
Nessa arte de viver
Desde os atos mais medonhos
Menor do que nossos sonhos
Sei que não podemos ser...
(Valentim Martins)

d) Decassílabo: dez linhas e dez sílabas:

Quando chove meu sertão é tão bonito
Com a vida presente em cada flor...
Mas depois da alegria vem a dor
É a seca trazendo o esquisito
Chora o pobre faminto e aflito
Ao perder toda sua plantação
E aqueles que dirigem a nação
Nunca querem tomar as providências
É preciso, irmão, de paciência...
Pra lutar por melhoras pro sertão.
(Valentim Martins)

e) Galope na beira do mar: estrofes de 10 linhas, 11 sílabas métricas deixa livre ou a 9ª rima com o primeiro verso da estrofe seguinte, e o 10º verso finalizando com "cantando galopes na beira do mar":

Eu sou professor, vivo sem sossego
Andando depressa qual Judeu errante
Em duas escolas, no mesmo instante...
Procurando meios e não tenho apego
Querendo entender onde foi meu erro
Cumprindo o dever não posso parar
Não me sobra tempo nem pra estudar
Percebendo pouco, coberto de conta
Falando sozinho de cabeça tonta
"Cantando galope na beira do mar".
(Valentim Martins)

f) Trava-língua: Exemplos de autoria de José Alves Sobrinho (1988:247).

"Passa o praça com o preso.
Para o presídio da praça,
O praça, o preso empurrando...
O preso pede a quem passa:
Prenda o praça e solte o preso
Solte o preso e prenda o praça".

g) Rojão pernambucano

Numa noite sertaneja
De uma lua prateada
Eu arranjei uma amada
E começou a peleja:
Eu tomei uma cerveja
E fui atrás de Maria
Eu entrava, ela saía...
Ela saia, eu entrava
Quando eu ia, ela voltava
Quando eu voltava, ela ia.
(Valentim Martins)

 

 

8. Considerações Finais

Com o advento da migração do homem do campo para as cidades e a mudança total nos hábitos da população, chegou-se a decretar a extinção do cordel como forma de expressão literária. Graças à ação de vários estudiosos do assunto e da memória popular, há uma base que mantém firme a oralidade e o cordel. A preocupação maior, no momento,  é que a cultura popular que está sendo produzida chegue ao convívio das massas trabalhadoras, como no passado. Mesmo ciente das dificuldades devido à concorrência com a televisão e com a internet, acredito que a partir da publicação em massa e da divulgação através das novas tecnologias, além das formas tradicionais de se produzir literatura popular, tanto o folheto, como a parte da oralidade ganhará novo impulso.

Quando a escola enfatizar mais assuntos ligados à cultura popular como um todo, colocando o aluno como centro de um processo histórico, pesquisando o que há de importante e de extraordinário na vida daqueles que representam nossas raízes culturais, teremos, sem nenhuma dúvida, um maior envolvimento por parte dos alunos com as aulas e, por conseguinte, uma situação de aprendizagem bem mais favorável.

A falta de formação cidadã e de consciência política da maioria dos professores são muito bem assimiladas por parte dos alunos, pois essa prática tem ao seu favor toda a estrutura social, econômica e ideológica do Brasil. O sistema capitalista abraça esse ideal de menosprezo,  discriminação racial e feroz  competitividade. Como se não bastasse, uma parcela significativa dos professores não tem nenhum compromisso com a ética, difundem a idéia de que "uma mão lava a outra!" "Vamos pegar, depois a gente racha no meio!". E as gerações futuras vão sendo influenciadas por toda sorte de práticas destrutivas que está tornando o país numa das nações mais corruptas do mundo.

Defendo a arte de contar histórias, de fazer versos, de dançar forró, de ouvir concertos, de valorizar o negro, o branco, o índio, as várias formas de opção sexual, de acreditar no fazer dessa gente que tem nos ofícios de bordar, tecer, rezar, trabalhar no roçado, nas construções e nas fábricas, a razão de toda a sua existência.

O povo nordestino amarga a discriminação por parte dos sulistas e outras regiões do país. O Nordeste é tido como a terra seca, os seus habitantes como os cabeças chatas, os comedores de farinha e rapadura, os flagelados em tempo de seca. E em particular a cultura também é mal vista, apesar de lançar para o Brasil e para o mundo grandes poetas, excelentes romancistas, ótimos pensadores, incomparáveis músicos e artistas em geral, recebe um rótulo de vulgaridade, de falta de expressividade, de cultura menos elaborada, principalmente, a cultura popular porque não move muito dinheiro.

A oralidade e a literatura de cordel têm demonstrado através dos tempos que são importantes ferramentas no repasse dos valores cidadão e ético para construção da cidadania.  As tentativas de encontrar saídas para resolver a crise educacional são várias e teoricamente inúmeros esforços são empreendidos. A  Lei de Diretrizes e Bases da educação promulgada em 1996,  até agora não tem atingido seus fins porque sempre existiu uma política educacional tendenciosa e viciada, inexistindo uma política cultural voltada para a massificação da cultura.

De um lado professores mal preparados, mal assistidos e mal pagos, cuja grande maioria não possui sequer as condições de assinar revistas informativas, jornais ou adquirir livros diversos e atuais; do outro lado uma clientela que está preocupada em desenvolver técnicas de sobrevivência, enfrentando crises e mais crises sociais, sem falar nos programas desenvolvidos pela mídia que se encarregam de desvalorizar instituições sociais importantes como a família e a própria escola, buscando através do erotismo e do sensacionalismo banalizar a sexualidade e a vida.

É fundamental que cada educador possa refletir e questionar-se sobre sua prática pedagógica, sobre seu plano de ação nesse campo minado de batalhas ideológicas, sobre seu papel como formador de opinião e, principalmente sobre a desconstrução dos paradigmas vigentes, para que se repense a formação coletiva, cidadã e a realização pessoal dos educandos.

Como todos sabemos a competição e o egoísmo do sistema capitalista não nos permite essa abertura com facilidade. Se formos esperar por benevolências vindas do sistema educacional, nossas chances de melhorias são poucas ou quase nenhuma. Faz-se necessário uma ação coletiva, gerada nas bases, com firmeza, consistência e poder de discernimento capaz de buscar alternativas e empreender ações que visem o bem-estar social e educacional para todos.

 

Notas de Referência:

 

(1)       APPLEBEE, Arthur: The Child´s Concept of Story. Chicago:University of Chicago Press, 1989.

(2)      BAKHTIN, M (Volochinov): Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1990.

(3)      BENJAMIN, Roberto. “Os folhetos populares e os meios de comunicação social”. Symposium: Revista da Universidade Católica de Pernambuco. Recife, ano XI, nº 1, set./69.

(4)      BENJAMIN, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Universitária, 2000. 150 p.

(5)      BENJAMIN, Walter: “O Narrador”. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.

(6)      BRUNER, Jerome: Actual Minds, Possible Worlds. Cambridge:Harvard University Press, 1986.

(7)      CALVINO, Italo: Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

(8)      CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. Rio de Janeiro: Ouro, 1965.

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(11)    DYSON, Anne H. e GENISHI, Celia, (orgs): The Need for Story :cultural diversity in classroom and community. Nova York:Teachers College-Columbia University, 1994.

(12)   ENGEL, Susan: The Stories Children Tell: making sense of the narratives of childhood. Nova York: Freeman, 1999.

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(14)   FOX, Geoff e GIRARDELLO, Gilka: “A Narração de Histórias na Sala de Aula”, em Teatro-Educação- Comunidade (org. Beatriz Cabral e John Sommers). Florianópolis:UFSC/Capes/Conselho Britânico, 1999.

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(16)   GORDON, Noah. Xamã. São Paulo:Rocco, 1994, 484p.

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(19)   LÉVY, Pierre. "As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática". Tradução Carlos Irineu Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993 (Coleção TRANS) p. 83.

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(28)  SARAIVA, Arnaldo. Literatura marginalizada. Porto:Roca Ares Gráfica, 1975. 172 p.

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(30)  STERN, Daniel: “Crib Monologues from a Psychoanalytic Perspective”. In: K. Nelson (org.): Narratives from the Crib. Cambridge: Harvard University Press, 1989.

(31)   SUTTON-SMITH, Brian: The Folkstories of Children. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1981.

(32)  VIGOTSKI, L.S.: O Desenvolvimento Psicológico na Infância. São Paulo:Martins Fontes, 1999.

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[1] Licenciado em Normal Superior/Pedagogia pelo Instituto Superior de Educação (ISED-Porto Seguro); Pós-Graduado em Língua Portuguesa e Literatura (ISED).