OPRESSÃO E PODER EM MISSA DO GALO

Eliane Cristina Chieregatto[1]

                Resumo:  Este trabalho tem por objetivo realizar uma análise da posição da mulher na sociedade brasileira, tomando como objeto de estudo a obra de dois autores da literatura brasileira. Lygia Fagundes Teles e Machado de Assis,  que em períodos diferentes escreveram a obra: Missa do Galo. Ao propor um estudo critico sobre a mulher e sua posição e aceitação na sociedade,  buscamos conhecer todo processo de opressão e discriminação que a tem seguido no decorrer da história. Estaremos, portanto, realizando uma abordagem sobre a mulher a partir do século XIX, visando acompanhar a evolução feminina até a pós modernidade para que possamos compreender a mulher contemporânea em busca de sua identidade.

Palavras chaves- Mulher, política, poder, opressão.

Abstract: This work has for objective to carry through an analysis of the position of the woman in the Brazilian society, taking as study object the workmanship of two authors of the Brazilian literature Lygia Fagundes Telles and Machado de Assis, who in different periods had written the workmanships Missa do Galo. When considering a critical study on the woman and its position and acceptance in the society, we search to know all process of oppression and discrimination that has followed it in elapsing of history. We will be, therefore in this work carrying through a boarding on the woman from century XIX aiming at to follow the feminine evolution until after- modernity so that let us understand the woman contemporary in search of its identity.

Word Keys- Woman, politic, power, oppression.

A mulher do conto.

                O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, foi publicado em 1899 em pleno período realista no Brasil. O realismo brasileiro foi marcado por uma necessidade urgente de engajamento ideológico onde tudo adquiria caráter de denuncia social. É neste contexto que nasce por meio da literatura “Conceição”. O conto descreve as memórias do personagem narrador “Nogueira” sobre uma conversa com Conceição, mulher de um escrivão, ocorrida na noite de natal enquanto o personagem aguardava a hora da missa do galo.

                Esta é uma narrativa linear de tempo cronológico, analisá-la requer compreender a ironia do autor para com os assuntos levantados na obra, conforme vamos perceber esta ironia paira sobre um titulo inocente, uma missa, uma espera, uma conversa. Inocente, mas não ingênuo.

                Os personagens convidados pelo autor para dar forma a este conto se compõem por um marido infiel o Sr. Menezes, Conceição a “santa” esposa, a mãe de Conceição, as criadas e Nogueira um estudante de medicina. Com exceção de Nogueira e Conceição os demais personagens servem apenas como pano de fundo para esta intrigante história. Partiremos, portanto, para o nosso objeto de estudo que é neste primeiro momento a figura feminina retratada por Machado de Assis.

                A personagem Conceição neste conto exemplifica a mulher em pleno momento de cisão cultural, sexual, econômica e política, era ela uma mulher casada, traída, infeliz, mas que a sociedade conceituava com “santa”, esta figura submissa recebe uma leitura que explica com muita clareza sua posição dentro do cenário de opressão.

               “Boa Conceição! Chamavam-lhe “Santa” e fazia jus ao titulo, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos... aceitaria um harém com as aparências salvas. Deus que me perdoe se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo, não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar”.[2]

                Para a estética realista é importante observar a ironia do autor para com o casamento, e para com os ideais do cristianismo que subordinava a mulher à condição de inexistência, sabemos que no referido período tratado pelo conto, a mulher era considerada um patrimônio do marido, assim como os escravos, as fazendas ou outros bens. Neste sentido Lima argumenta que (...) no clã família, por exemplo, a mulher perde sua identidade como membro espécie, aparecendo como apêndice, ao adotar o nome do marido (...)[3]. Convém salientar que até bem pouco tempo, a mulher praticamente não existia como pessoa, apenas como gênero, a mulher de família, criada para casar servia apenas para procriação, e a da rua apenas para o sexo, no geral ambas estavam condicionada a sua condição de gênero.

                No conto de Machado de Assis século XIX pelo retrato que o autor faz de Conceição, percebemos tal qual era a mulher, e que conceito recebia da sociedade. De comportamento exemplar a personagem se enquadrava na figura honrada, mas com a debilidade de quem de nada participava a não ser dos serviços da casa, único lugar onde reconhecidamente era aceita como mulher e exercia o papel que lhe competia o de “rainha do lar”.

                Embora a narrativa de Machado tenha deixado evidente a ânsia que a mulher tinha de mudar, declarada no ato de ir até a sala vestida de roupão dialogar com um rapaz de dezessete anos, como está na narrativa, “Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas de alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra tinha um ar de visão romântica(...)”[4]. Mesmo que o objetivo da personagem fosse o de seduzir o rapaz como fica evidente no conto, isto nada mais seria do que a demonstração clara que a mulher tinha de estabelecer sua identidade como pessoa.

                As características da repressão sexual são marcantes nesta narrativa, e a personagem feminina é o modelo típico desta repressão que subjugou o corpo feminino e suscitou a figura do homem como dominador e por isso, detentor do poder. No decorrer da longa história de repressão a personagem Conceição representa a cisão sexual que de fato ocorreu e vem se tornando uma conquista das mulheres desde o século XIX e claramente tem deixado marcas na sociedade moderna ou pós-moderna.

                Esta cisão de que trata a obra é marcada pelos acontecimentos da época, desde o inicio do século XIX a mulher vinha tentando superar as limitações que lhes eram impostas, e talvez o que o autor tenha buscado mostrar seja justamente esse retrato da mulher que já não conseguia mais viver sob o prisma da dominação. Observamos que esta necessidade era também uma exigência social, a mulher deixava de administrar o lar onde era rainha para administrar o mercado de trabalho e neste contexto podemos citar as lutas feministas que incentivavam a mulher assumir a condição de gênero não somente no lar, como também na política e na sociedade. Segundo Rago:

“(...) É visível então, a luta que essas feministas empreendiam para abrir e ampliar o espaço de participação da mulher fora da vida privada, no mesmo movimento em que dignificavam a função doméstica e materna. Se elogiavam a atividade de dona-de-casa  esposa-mae, reivindicavam, por outro lado, uma figura feminina que tivesse projeções em outros âmbitos da vida social”.[5]

Setenta e oito anos depois...

                Setenta e oito anos depois a autora Lygia Fagundes Telles, Escreve “Missa do Galo”, agora sob a ideologia do modernismo, a autora reconta a historia sob a visão de uma personagem onisciente, mas que sugere e brinca com a imaginação do leitor, ocorrendo isto que Umberto Eco chama de intertextualidade, esta negociação que a autora faz no conto, o dialogo com a obra de Machado que obrigatoriamente devolve ao leitor as reflexões do passado.

                Nesta narrativa, a autora explora o que o leitor tinha no imaginário quando da Missa do Galo de Machado, as novidades são traçadas como uma necessidade de preencher um vazio do passado que tenha ficado na memória, assim como na obra anterior, observamos a presença do tempo cronológico marcado pelas horas  á espera da missa. Lygia usa os flashback para atualizar o leitor aos acontecimentos narrados.

                Para Conceição, Lygia atribui nesta narrativa uma dose maior de erotismo, a personagem feminina recebe esta conotação erótica com mais vigor do que a personagem do primeiro conto e a mulher aqui retratada já não é mais a mesma, ela perdeu a condição de subjetividade mesmo estando nas mesmas circunstancias. Eis o retrato desta nova mulher:

“Mas foi Conceição que entrou na sala da casa antiga. O andar é lerdo, os pés ligeiramente abertos, num maneio de barco, ancas fortes. Ombros estreitos. Os seios em liberdade com  uma certa arrogância dos seios das estatuas... É ela que responde com sua presença, acabou de chegar arrastando o roupão e a indolência. Senta levanta, faz perguntas e assim que vem a resposta já esta pensando em outra coisa. É atenta mais inquieta. Quando os olhos se reduzem parece dormir, mas esta em movimento(...)”[6]

                Esta personagem do conto de Lygia, é a mulher que vive em épocas diferentes situações iguais, embora tenha deixado de ser subjetiva, vive em confronto com as mesmas situações, dividida entre o antagônico papel que o mundo masculinizado a fez cumprir por tantos anos e a necessidade de ocupar seu espaço na sociedade.

                A questão a ser analisada nesta retrospectiva é a percepção de que a mulher passou por uma evolução em seu desenvolvimento, a preocupação deixou de ser com seu bem estar, fato que verdadeiramente sempre foi retrogrado e passou a se preocupar com sua auto-suficiência e igualdade de direitos e deveres. Ou seja, o que a mulher busca hoje é o poder, como forma de mostrar que tem condições de exercer qualquer função e atuar em todas as áreas do mercado de trabalho.

                Nesta narrativa,  esta nova Conceição recebe uma comparação muito significativa “ (...) a dona Conceição, imagine! Tão apaziguada ( ou insignificante?) durante o dia, quase invisível no seu jeito de ir e vir pela casa. E agora ocupando todo espaço, grande como um navio, a mulher é um navio(...)”[7]  Uma metáfora que a autora usa talvez pra explicar esta nova mulher, que era insignificante nos afazeres domésticos e agora toma a forma de navio, um grande navio que ocupa todo espaço, este navio que nos remete ao sentido da navegação, da conquista do novo, quem sabe aqui traçando  o perfil desta mulher moderna que luta para abrir espaços na sociedade, espaços que precisavam ser preenchidos, não somente pela necessidade da efetivação da mulher, mas porque a sociedade precisava de novos posicionamentos.

                O grande mistério em ambas as narrativas, esta centrado no fato de não ter acontecido nada, a mulher que foi para a sala, eroticamente vestida, cuja intenção era seduzir o jovem, e que poderia ter seduzido a ate chegou a fazê-lo, mas no momento de consumar o fato, simplesmente encerra sua participação deixando no leitor a incógnita, a pergunta, por que não acontece nada? E poderíamos dizer que aconteceu tudo, pois a cisão temporal que dividiu a mulher de antes e a mulher de depois fica marcada na cena seguinte: “(... ) durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez entre mim e o padre; (...) – “Ela fecha o livro. Ela tranca a porta.  Ainda ouve os passos dos dois amigos se afastando rapidamente. Olha ao redor, a mariposa sumiu. Quando volta ao quarto, pisa na tábua do corredor, aquela que range. Rangeu, mas agora esta desinteressada da mãe e da tábua”.[8]

A EVOLUÇÃO FEMININA NA VIDA E NA ARTE

                A  pergunta que se faz dentro de uma expectativa sociológica para a aquisição de uma resposta possível para explicar o fenômeno vivido pela figura feminina retratada em ambas as obras poder ter varias respostas, objetivamos aqui, portanto um estudo da evolução social da mulher até a contemporaneidade.

                Para isso, retomamos a descrição psicológica da personagem  de Machado onde ainda a mulher era considerada um adereço, “(...) Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras da família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas que eram nada.(...)”[9]  Aqui o autor retrata a mulher insatisfeita com sua atuação e reflete a necessidade que ela tinha de participar mais ativamente da sociedade. E então temos a narração de Lygia que apóia este pensamento “(...) numa das voltas, passou a mão no vidro do armário e queixou-se do envelhecimento das coisas, chegou a ter um gesto de insatisfação, tanta vontade de renovar(...)”.[10]

                Talvez tenha sido a insatisfação pessoal da mulher com sua condição de dona-de-casa em conjunto com outros motivos da época que tenha transformado a mulher numa presa fácil para o capitalismo. Lima observa que provavelmente a liberdade feminina seja a conseqüência de uma grande jogada do capitalismo no interesse de obter da mulher mão de obra barata, como observa Lima: (...)devido a necessidade que o sistema capitalista teve de engajar a mulher na produção (sociedade de consumo, mão de obra barata, convocação dos homens para a guerra, etc.) levou o establisment a promover o desenvolvimento da mulher, fato que cria um reação em cadeia capaz de levar a mulher a procurar sua própria liberdade(...)[11] e neste contexto conhecemos as histórias das fábricas, a lutas das mulheres operarias no Brasil e a condição de exploração do trabalho/ corpo feminino.

                As diferenças sexuais foram determinantes para muitas ações discriminatórias para  a mulher das ultimas décadas ,  Alvin Toffler faz a seguinte consideração “ Não admirava que as mulheres que deixavam o relativo isolamento da casa para se empenharem em produção independente fossem muitas vezes acusadas de terem perdido a feminilidade, ficando frias, rudes e objetivas”.[12] Voltando a ironia de Machado de Assis, compreendemos a critica sobre o casamento e a condição da mulher como rainha do lar.

A MULHER COMO SUJEITO DA SUA PROPRIA HISTORIA

                A obra de Lygia datada do ano de 1977 nasce do âmbito dos estudos para a renovação do novo Código Civil Brasileiro, para a nossa análise um dado importante a partir deste código promulgado em 2002, fica facultativo aos noivos a troca de identidade na cerimônia de casamento, conforme o artigo 1º do capitulo IX  “Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro.”[13]  Embora este não seja o marco do fim das lutas femininas, pode ser considerado como principio da liberdade do mundo masculinizado no qual a mulher figurou durante tantos anos como objeto e patrimônio adquirido no ato do casamento assim como percebemos  na obra de Machado. Segundo Swain:

 (...) A constituição do sujeito mulher atravessou toda uma reflexão teórica articulada aos movimentos feministas, em diferentes países  ocidentais, e empenhou-se em desmantelar a construção natural do feminino enquanto, apenas, o Outro do homem. A busca de um significante geral para a multiplicidade do ser-mulher colocava a afirmação de um sujeito em si e não apenas reflexo invertido ou construção do olhar masculino.[14]

                Em contrapartida a objetividade de Conceição que agora ocupa todo espaço como um grande navio é o retrato da mulher contemporânea que tem cada dia mais adentrado no mercado de trabalho e aprendido lidar com as questões sexuais que delimitam os espaços no campo profissional, e vem fazendo parte de um processo continuo que tem marcado a nossa época. Conforme Rago:

Em relação a esse aspecto, vale notar que, hoje não apenas as mais jovens entram de outro modo no mercado de trabalho e no mundo publico, isto é, com mais autonomia do que as moças experimentavam em décadas anteriores, como também se encontram em condições de estabelecer relações de gênero bastante relaxadas e bem menos hierarquizadas, se compararmos novamente, com aquelas vivenciadas pelas que tinha 20 anos na década de 1960.(...)[15]

                A mulher como proprietária de sua identidade oscila hoje entre as velhas e conhecidas atividades domesticas e o mercado de trabalho cada vez mais exigente. Do período Machadiano até o de Lygia, e porque não até os dias de hoje a mulher ainda luta pelo reconhecimento dentro do contexto sociológico, embora possamos dizer que a figura masculina já não seja mais exclusivamente detentora do poder. De fato hoje podemos considerar que a mulher esteja mais próxima da desconstrução da figura de gênero, pois é evidente a efetiva atuação da mulher no mercado de trabalho.

REFERENCIAS:

ASSIS, Machado – Contos, editora Ática – São Paulo SP.2001

LIMA. Lauro de Oliveira. Os mecanismos da liberdade – Polis, São Paulo – SP 1980.

_______Novo Código Civil – Brasília 2003.

RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. Paz e Terra, São Paulo – SP 2001.

RAGO, Margareth. Poéticas e políticas feministas. Editora Mulheres – Florianópolis-  SC, 2004.

SWAIN, Tânia Navarro. Feminismo, corpo e sexualidade IN: Genealogias do Silencio: Feminismo e Gênero. Editora Mulheres, Florianópolis – SC – 2004.

TELLES, Lygia Fagundes. Os melhores contos – seleção Eduardo Portela – Global – São Paulo – SP, 1997.

TOFFLER, Alvin. A Terceira Onda. Record. São Paulo, 2001

 

 

 



[1] Eliane Cristina Chieregatto – Professora formada em Letras pela UNEMAT, especialista em Gestão Escolar.

Nota – As obras de Machado de Assis e Lygia Fagundes Teles serão citadas da seguinte forma – MG Assis, M. e M. G. TELLES, L.

[2]M.G. – ASSIS, M. 2001, P 99

[3] LIMA, 1980, p.82

[4] M.G. – ASSIS, M. 2001, p. 100

[5] RAGO, Margareth. 1991, p. 71

[6] M.G. TELLES, L. 1997, Pp. 120, 122

[7] M.G. TELLES, L. 1997, p. 121

[8] M.G. TELLES, L. 1997, p. 104

[9] ASSIS, M. 2001, p.103

[10] TELLES, L. 1997, p.121

[11] LIMA, L. 1980, p. 82

[12] TOFFLER, Alvin. A  terceira Onda. 2001, p. 57

[13] Novo Código Civil. 2003, p. 279

[14] SWAIN. Tânia Navarro. Feminismo, corpo e sexualidade. 2004, p. 184

[15] RAGO, Margareth. Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos. IN Poéticas e políticas feministas. 2004, p. 32