"Linguagem e a identidade possível de ser narrada"

"O conceito de identidade tem sido examinado de vários pontos de vista. Os
dois mais destacados são o ontológico e o lógico. O primeiro é patente no chamado princípio ontológico de _identidade (_a igual a _a), segundo o qual qualquer coisa é igual a si mesma. O segundo é o chamado princípio lógico de identidade, o qual é considerado por muitos lógicos de tendência tradicional como o reflexo lógico do princípio ontológico de identidade,
e por outros lógicos como o princípio "_a pertence a qualquer _a" (lógica do termos) ou como o princípio "_s _p (onde _p simboliza um enunciado declarativo), então _p" (lógica das proposições". No decurso da história da filosofia ambos os sentidos se têm entrelaçado e confundido com frequência." (MORA, 1978, p. 132)

Desde que a Ontologia foi se configurando como uma disciplina que tentava explicar o ser, surgiram muitos questionamentos sobre este "dizer" o ser, pois alguns dos aspectos gerais nos meios utilizados para a identificação do mesmo poderiam estar contaminados por fatores externos ao ser e que por sua vez invalidariam qualquer que fosse a sentença final sobre o assunto.
Uma das principais questões à cerca do assunto é o da Linguagem e a busca de uma compreensão hermenêutica da identidade do ser, ou seja, seria mesmo possível se dizer o ser através da linguagem, sabendo que a mesma provém do observador e não do ser investigado? Como conciliar o ente em si mesmo com os condicionamentos próprios de quem investiga, resultando em uma formulação que possa de fato exprimir com fidelidade o que é o ser?
Nesse sentido comecemos por Heidegger que em sua ontologia, definida mais como uma metafísica da ciência, diz que o que torna possível a existência é o ente, mas que o mesmo não pode ser dito, pois "(...) a linguagem aparece, primeiro, sob a forma da tagarelice como um dos modos como se manifesta a degradação ou inautenticidade do homem." (MORA, 1978, p.170)
Por outro lado temos a figura de Wittgenstein que identifica essa linguagem como uma trama de significações interligada à nossa vida, que por assim dizer também poderia ser vista como outra trama.

"Para Wittgenstein, a linguagem aparece primeiro como uma espécie de impedimento para conseguir a "linguagem ideal" onde a estrutura da linguagem corresponde á realidade. Ao abandonar esta noção de linguagem ideal, Wittgenstein lançou a investigação da linguagem por outras vias. No seu livro INVESTIGAÇÕES filosóficas, afirma que o mais importante na linguagem não é a significação mas o uso. Para entender uma linguagem deve-se compreender como funciona. Ora, pode comparar- se a linguagem a um jogo; há tantas linguagens quantos os jogos de linguagem. Portanto, entender uma palavra numa linguagem não é primeiramente compreende a sua significação, mas saber como funciona, ou como se usa dentro de um desses jogos." (MORA, 1978, p.170)

É com o termo "jogos de linguagem" que o autor refere-se às forma vitais do quotidiano, onde o indivíduo pratica seus atos de fala, de maneira específica, condizente com sua realidade, lugar e tempo que ocupa. Desse modo, é necessário que se valha de uma hermenêutica (1) para que se possa interpretar o discurso que está imerso nestes "jogos de linguagem" e que tenta, à sua maneira, dizer a verdade presente na realidade.
Como resolver este problema?
Surge então Paul Ricoeur (1915-2005), que com magistral criatividade demonstra uma saída genial que pode identificar, ou ao menos dar pistas para que se tenha alguma segurança na narração da identidade do ser. E assim ele desenvolve uma filosofia do sujeito e da ação, com ênfase na perspectiva e nos sentidos.
Seu principal trabalho se resume na sentença "Sí-mesmo como um outro", que discorre sobre a identidade do ser em quatro questões distintas, a saber: quem fala?; quem age? quem é descrito? Quem é o sujeito moral da imputação?
Na questão de quem fala, Ricoeur diz que no que se pergunta, busca-se aqui identificar sobre o que o indivíduo tem a pretensão de discorrer, ao mesmo tempo que se tenta individualizá-lo a partir de sua predicação, denominação e indicação. Sendo que, quando se diz algo sobre o ser sempre se deve ter em conta que este é uma pessoa, ou seja, a coisa da qual se fala, e de um corpo que em si referencia a coisa da qual se fala.


(1) HERMENÊUTICA (in. Hermeneutics; fr. Herméneutique, ai. Hermeneutik; it. Erme-neutica). Qualquer técnica de interpretação. Essa palavra é freqüentemente usada para indicar a técnica de interpretação da Bíblia (ABBAGNANO, 1998, p.106)
Ricoeur ainda explica que dentro desta questão haveria dois tipos de identidade que poderiam ser explicitadas por quem fala, a saber: a "identidade Idem" que seria a "mesmidade" da pessoa que é esta coisa investigada. Em outras palavras, ele explica que esta pessoa possui um corpo que é re-identificável independentemente de tempo e lugar, mostrando ao observador sempre o "mesmo" de si. Outra seria a "identidade ? ipse", que distingue o ser por sua "ipseidade", o outro de si que é mutável e variável. É na auteridade de si mesmo, onde o ser coloca-se a si mesmo no lugar do outro, comparativamente com o outro.
Na sequência o próprio Ricoeur vem nos elucidar o como se dá a interação destes dois aspectos da identidade:

"Como é que a noção de si-próprio, de ipseidade, se cruza com a de mesmidade? O ponto de partida do desenvolvimento da noção de ipseidade deve se procurar na natureza da questão à qual o si-próprio constitui uma resposta, ou um leque de respostas. Esta questão é a questão quem, distinta da questão o quê. É a questão que colocamos de preferência no domínio da acção: procurando o agente, o autor da acção, perguntamos: quem fez isto ou aquilo? Chamamos adscrição [ascription] o assinalar de um agente a uma acção. Através disso, atestamos que a acção é a posse daquele que a pratica, que é sua, que lhe pertence propriamente. Sobre este acto ainda neutro do ponto de vista moral enraíza se o acto de imputação que reveste uma significação explicitamente moral, no sentido em que ela implica acusação, desculpa ou absolvição, censura ou louvor, em suma, estimação segundo o «bom» ou o «justo»." (RICOEUR, 1988, P. 299)

No entanto Ricoeur ainda afirma que esta ação de quem fala traz consigo também uma intenção, e esta deve ser interpretada compreendendo-a sob uma perspectiva. Ele diz que toda ação é intencional, intenção esta que é criada por alguma razão, que por sua vez decorreu de um julgamento feito sob certa perspectiva como dissemos. Assim sendo, a compreensão de um discurso sobre o ser depende de como o mesmo se coloca diante do mundo, e ainda, é necessário colocar-se a si mesmo no lugar do outro, tendo de ante-mão a idéia de que isso pede a compreensão do que esse outro tem como intenção fazer no mundo a partir de sua própria individualidade.
"Têm razão, por conseguinte, Heidegger e Gadamer quando proclamam que a linguagem é o solo da cultura, entendida esta, não apenas como a capacidade de participar de um número cada vez maior de valores intelectuais ou artísticos, mas antropologicamente, como acervo de tudo aquilo que a espécie humana veio acumulando ao longo de sua experiência histórica. Daí poder-se dizer que o ser do homem é o seu dever-ser consubstanciado na linguagem que o tornou capaz de realizar-se como pode e deve fazê-lo. Parece-me essencial essa dupla compreensão do ser humano em seu dever ser através da linguagem." (REALE, 2002)




















REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MORA, J. ? Dicionário de Filosofia, Traduzido por Antonio José Massano e Manuel Palmerim, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1978.

ABBAGNANO, N. ? Dicionário de filosofia ? Martins Fontes, 1998.

REALE, M. ? Artigo Cultura e Linguagem, publicado no site www.miguelreale.com.br, 2002.

RICOEUR, P. - "L?identité narrative", Esprit 7/8, 1988.