Olhar noturno da cidade

A noite cai. Gatos brancos, negros, rajados e cinzas saem sorrateiros de suas casas. Os donos nem percebam. São os donos da noite. Vagueiam pela penumbra sobrepondo muros, andando como bailarinos dos telhados. De casa em casa seguem um caminho sem rumo. Param, observa e miam. Parecem se comunicar uns com os outros. Somente as estrelas são testemunhas dos seus passos. Os carros cortam as ruas com os faróis acesos e deixam os olhos dos felinos mais brilhantes. Um cachorro revira uma lata de lixo a procura de restos de comida. Leva sorte e encontra uma grande quantidade de ossos de galinha que o dono do restaurante na avenida principal tinha acabado de deixar no latão de cor verde ao lado da calçada. Ao avistar o cão, um gato cinza fica eriçado. Acuado e sem ter aonde ir, o felino dá meia volta e continua sua saga. De casa em casa rompe o horizonte na noite escura e fria. Parece não se importar. Percebe que está longe demais. Olha para trás. Parece querer desistir. Mas não. Segue em frente. Caminhando lenta e silenciosamente. A cidade parece povoada por gatos. Na verdade são os donos da noite enquanto a cidade adormece. Mas os felinos de variadas cores não estão sozinhos na noite clareada pelas luzes da cidade. As estrelas enfeitam o céu. Enquanto isso, os cães vagueiam pelas ruas. Machos e fêmeas andam rapidamente de um lado para outro em busca de alguma sacola ou saco de lixo sortida com algum alimento. Eles sempre têm sorte: encontraram numa sacola branca restos de um lanche. Rapidamente devoram tudo. Não sobra nada. A sacola fica jogada no meio da rua. O vento trata de soprá-la para o longe. Os cães parecem saciados. Sentam-se e passam a observar o movimento. Carros passam em alta velocidade. Os cruzamentos e semáforos parecem nem existir mais. Não é por menos. Todos estão com pressa. Saíram do trabalho. A noite é fria. Todos querem chegar logo em casa. Estacionar o veículo e seguir direito para um banho quente para então debruçar-se sobre a cama e puxar o cobertor felpudo para mais uma noite de sono.   Mas a vida na rua é muito diferente. Enquanto muita gente segue acelerando e fazendo os veículos grunhirem na noite, muitos trabalhadores estão apenas iniciativa suas rotinas. É o caso dos fazedores de lanche na avenida principal da cidade. A noite fria não é problema para esses profissionais. Postados diante a uma chapa quente, fritam ovos e hambúrgueres para compor lanches de centenas de moradores que estão confortáveis em suas residências ansiosos e pensantes em uma mordida no pão que leva ainda calabresa, bacon, alface e tomate. Para o lanche chegar às mãos dos clientes famintos, o chapeiro afasta-se um pouco e enfia a mão no bolso de uma espécie de jaleco. Empunha o celular como se fosse uma espada de um guerreiro da idade média e começa a discar. Jesse Stone. Em poucos instantes uma moto de cor escura mal cuidada estaciona pega a pesada sacola com cinco lanches e segue em disparada. É mais um homem da noite, que compõem a rotina da cidade. Assim que recebe o pedido e o endereço, acelera sua moto rompendo a grande e clara avenida graças às luzes para receber o Natal. Ele parece entender que os clientes estão com pressa. Querem comer logo para aproveitar um pouco mais a noite fria. Parece nem se importar com a baixa temperatura. O termômetro marca quatro graus. Em poucos minutos buzina à frente do endereço combina. Uma mulher morena, pele clara abre o portão. Ela está bem agasalhada apenas com o rosto e mãos de fora. Seus cabelos soltos ao vento frio dão mais sensualidade ao momento. Mas seus olhos, porém, estão fixados apenas na encomenda. Passa o dinheiro ao motoqueiro, que confere. Eles despedem-se. O homem com a moto já está na esquina enquanto ela fecha a porta e segue para a mesa. O marido, um filho e dois sobrinhos estão agasalhados e ansiosos para saborear o lanche preparado pelo homem da noite. O motoqueiro cumpriu a rigor sua missão. Retorna para casa. Observa o celular para certificar que não tinha nenhuma ligação perdida. Conforta-se no sofá. Puxa um cobertor. Repousa enquanto espera por mais um cliente. A grande panela larga no fogo incandescente não possui escala de trabalho. Os clientes parecem nem observar a grossa camada de gordura incrustrada nas bordas. O que lhes interessada é o que a grande panela os proporcionará em questão de minutos. A gordura está bem quente. A senhora com toca, mas de cabelos grisalhos, graças aos tufos teimosos que insistem em escapulir do pequeno tecido, mergulha os primeiros pastéis na gordura. Parecem que foram jogados em um vulcão em erupção. A gordura borbulha. Os pastéis se movem de um lado para outro. Parecem espernear-se. A sensação, quando a gordura branda, é que morreram. Em alguns instantes os três exemplares de pastéis de carne, queijo e frango agora flutuam sobre a gordura quente. Os clientes da madrugada fria correm suas línguas de uma ponta à outra dos lábios. Estão ansiosos para cravar os dentes naquela massa crocante até atingir o recheio que cabe em uma colher de refeição. Para os homens parece uma grande refeição. Estão fervorosos. Vieram do segundo turno de uma jornada de trabalho cansativa regrada a copos de água e café. O estresse e o cansaço dos últimos dias sem folga estavam cobrando seu preço. Fundas e visíveis olheiras rodeavam seus olhos, e mesmo sentados, suas posturas curvadas retratavam que o corpo clamava por repouso.  A senhora lhes direciona os pastéis conforme o pedido. Para os homens, o tempo parece uma eternidade. Eles estendem o braço em direção à atendente. Seus olhos estão vidrados no pastel. Os homens fecham os olhos. Como se fosse a última refeição de suas vidas abocanha ferozmente o papel. Primeiro a mordida e o pleno sabor provoca um mix de sensações que os fazem viajar. Em poucos instantes devoram seu lanche e limpam suas bocas engorduradas com um pequeno guardanapo. Em seguida, uma xícara de café. Estão saciados. Tiram do bolso notas de dinheiro suadas. Agradecem e vão embora sorridentes e saciados. Os feirantes nem se dão conta, mas sua movimentação e o burburinho da feira compõem uma das cartografias da vida urbano-rura Enquanto permanecem no espaço, os homens caminham enroscando-se em volta dos prédios e casas centenárias e serpenteando por becos estreitos calçados por paralelepípedos. Um a um vão se despedindo à medida que chegam a suas residências. Para estes homens, mais uma noite chega ao fim. Concluíram mais uma jornada de trabalho. Enquanto isso, a pequena e pacata cidadezinha com identidade nada industrial e lampejos turísticos segue tomada pela névoa espessa. Ruas são engolidas pela cortina branca. Os homens da noite aproveitam o clima favorável para tomar banho e repousa em suas camas. Não sem antes dar um beijo na esposa que descansa desde às 21 horas. carinho é retribuído e todos fecham os olhos e passam a imaginar o quão bom é estar em casa debaixo de cobertores aquecidos. A vida noturna na cidade, porém, não é afetada.