191 - OH, MEU DEUS !

 

 

- Oh, meu Deus! Tudo parado, de novo! Assim não vou conseguir chegar nem às dez! É  hoje, o João Carlos vai me matar! –  Aquele cão de guarda, incapaz, insolente; ele vai me matar, na certa!.

Aflita, Fernanda remexia-se no assento do carro, como se tentasse fazer avançar o veiculo, encalacrado no trânsito.   

Remexeu na bolsa até encontrar o celular:

-“Oi, Emilia, sou eu de novo, meu bem. Ainda estou na Rebouças. Tudo parado. Não sei o que faço. Chame o João Carlos, e diga-lhe que vou atrasar. Eu sei, eu sei; mas explique-lhe de novo a minha situação. Tem uma maré de carros, não consigo ir para  frente nem para trás. Diga-lhe que lamento. Quando conseguir chegar, falo com ele. Ah, outra coisa: mande a Luisa levar aquele  envelope amarelo, que está em cima de minha mesa, ao dr. Ancona, lá em baixo, no sétimo. Já, por favor. É urgente. Não se esqueça. Tchau.  Alô, alô! Eu ia esquecendo: se chegar um vendedor da Aliança, marca com ele para amanhã, à mesma hora, tá? Ah, que sei eu; inventa uma história qualquer. Diga que cai da escada; que fui ao médico, que furei o pneu; que me pegaram no bafômetro... Acorda, inventa alguma coisa, menina!...,

Jogou de novo o celular na bolsa e ficou tamborilando com os dedos no volante.

Já era o seu segundo telefonema à Emilia, sua assistente, nos últimos dez minutos.

Os carros continuavam parados, pacientes, passivos; - “alguém tem que fazer alguma coisa, nesta cidade. Não se pode continuar assim!” pensava ela em voz alta;  Mas ninguém parecia estar com pressa naquela manhã; só ela, Fernanda, recém promovida a gerente editorial. 

O motorista do carro à sua direita, tranqüilo, ouvia no rádio uma música pasteurizada.

Na esquerda, um jovem executivo dedilhava a calculadora e dava ordens no celular.

Uma moça loira, no carro de trás, retocava a maquiagem, fazendo caretas com a boca para espalhar o batom.

 Enfim, todo o mundo conformado, menos ela, a Fernanda.

 

Agora ela já estava inventando algum meio para resolver o problema:.

 - invento uma hora legal imediata, atraso todos os relógios de uma hora;

 - roubo uma ambulância, e abro caminho a toque de sirene;

 - melhor: transformo este pesadelo em um sonho; e de repente acordo, e é feriado e posso ficar mais duas horas na cama...

 

Estes pensamentos a fizeram reconsiderar um pouco a sua vida; filha única, de família quase pobre; esforçada, paciente, inteligente; formada  com louvor em marketing  

Contratada imediatamente  pela editora, com mil promessas e... parada, estacionada desde então,  esperando a carreira desabrochar.

“Certo” – comentava em voz alta, conversando com seu amigo imaginário – “ acabei de ser nomeada  gerente editorial; mas só porque meu antecessor se aposentou; para subir mais um degrauzinho, tenho que esperar a aposentadoria do João Carlos, daqui a 29 anos!  Tenho motivos de sobra para ficar descontente!”

“ Por outro lado “ – ponderou – “ em cinco anos de casa, aprendi um bocado de coisas; posso não ter feito carreira, mas tenho uma boa profissão e  um bom nível...”

“ Mas a pressão é demais. Tudo é comigo; estou dando o sangue; dez horas por dia,   sem parar,  um ouvido no telefone e outro ao vivo, um olho num manuscrito e outro no computador. Ninguém reconhece meu trabalho, ninguém se importa comigo... E o João Carlos, por cima, me aborrecendo, exigindo tudo com urgência!.... “

Agora a sua agitação era evidente. O executivo do carro a esquerda tinha parado de fazer cálculos e a espiava, atento, preocupado. 

O celular tocou; Fernanda começou a procurar na bolsa, acabou virando todo o conteúdo no assento, com raiva, para poder localizar finalmente o telefone.

“Alô! Sim,Claudia, já acertei com o Alberto o assunto dos brindes. Fale com ele, seja mais eficiente, puxa! .... Tudo é sempre comigo! ....Sim. Está bem, até logo.”

Suas queixas continuavam “ Tenho compromissos demais “ – falava alto, agora, desligada de tudo – “calculo, prometo, e não cumpro; preciso de desculpas o tempo todo!....”  

E este trânsito que não anda!.

“Ou será que....Sou eu  que não me organizo bem; sou ineficiente; não sei estimar corretamente os tempos; imagino precisar de meia hora e uso duas!!

Não. Não é verdade.  Tenho problemas demais nas costas. Vou delegar; vou distribuir o trabalho e supervisionar, em vez de carregar o fardo todo sozinha.

Mesmo arriscando  que alguém me puxe o tapete. Risco calculado.

Ela já estava pulando no carro, de tanta agitação.  Não se controlava mais.

E o trânsito sempre parado....

Falava alto, sozinha; nem o amigo imaginário a escutava mais.

E depois, tem a minha vida pessoal, afetiva. Estou levando o Henrique a tiracolo há três anos. Sem a mínima satisfação.  No ultimo feriado,  tive que voltar correndo, três horas de pois de chegar ao Guarujá. Problemas na redação. Quem agüenta? 

Mas hoje, alguém vai me escutar. Ah, se vai me escutar!...

 

Subitamente, uma buzinada arrogante cortou-lhe o raciocínio. Na frente do seu carro, duzentos, trezentos metros de asfalto, sem nenhum carro. Todos tinham passado e ela tinha ficado para trás, concentrada nos seus pensamentos.  

 

Eram mais de nove e meia, quando Fernanda atravessou a portaria. Nem parou na sua sala. Foi diretamente falar com o João Carlos; enquanto atravessava o corredor, , pediu à  secretaria um expresso, com açúcar, rápido.

Sentou-se na poltrona, mas com o jeito de uma ocupação militar.

O João Carlos apontou-lhe o dedo e começou dizendo: -“ Escute aqui, mocinha!”  – mas foi só isso,  que conseguiu dizer.

“Escute aqui, você!”- respondeu ela. E soltou sobre ele uma coleção de queixas, impropérios, reclamações;  parecia que tinha trazido todos os sapos engolidos durante os cinco anos de trabalho.  

No fim, reivindicou, reivindicou, reivindicou. O salário dela, das meninas, dos boys; a admissão de mais gente, computadores mais rápidos, mais prazos para a  analise dos manuscritos,  e iluminação melhor,  e divisórias, e lanches reforçados para a noite.   José Carlos ficou estático, de queixo caído, engolindo em seco.

Ela arrematou, decidida:

-“E se não estiver satisfeito, é só dizer. Saio por essa porta e não volto mais!!”.

Uma salva de palmas festejou o fim do discurso.

Ambos tinham esquecido que a porta estava aberta e o escritório inteiro ouvira tudo. Não havia como voltar. João Carlos encarou a realidade e reconheceu que as reclamações procediam.  Precisava só uma Fernanda estressada pelo trânsito, para jogar tudo pelo ar.

- Muito bem, Fernanda, - disse ele  no fim.-  Pode sair por aquela porta, mas volte dentro de trinta minutos, com um relatório  de tudo o que disse,. Tenho reunião da diretoria ao meio dia e vou apoiar seu pedido. Totalmente.  

Dispensada!

“ Oh meu Deus! “ disse ela – “Finalmente o trânsito desentalou!”