OCULARCENTRISMO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CONCEITO ANTROPOLÓGICO DE CULTURA.

           O presente trabalho se propõe a analisar o conceito de cultura em seu viés antropológico. Busca também, analisar de que forma a construção do conceito influencia a perspectiva contemporânea do termo. Na busca pela elucidação do controverso conceito de cultura, se faz necessário uma análise crítica que tenha como referência a percepção dos termos etnocentrismo e mais detidamente oocularcentrismo no labor antropológico. O referencial teórico para a reflexão proposta é Roque de Barros Laraia, a partir de seu livro: Cultura: um conceito antropológico. Nele, o autor apresenta sua percepção do conceito de cultura, dividindo sua reflexão em dois blocos. Sendo que o primeiro investiga o conceito por um viés histórico, a questão da cultura que se percebe a partir da natureza, ou em contrapartida a cultura como evolução da natureza humana. Segue-se que o autor elege seis sub-tópicos como forma de desmistificar em vários aspectos a noção ou senso comum do conceito em questão. O segundo capítulo por sua vez, preocupa-se em entender a cultura em seu aspecto operacional na humanidade.

            De acordo com a análise dos costumes dos Lícios, pelos gregos o que mais se percebeu como fato relevante foi a predominância da figura materna, e isto, de forma etnocêntrica. Pois os gregos com seu ocularcentrismo faziam sua observação e crítica, a partir de sua percepção da cultura patrilineal grega como sendo natural e comum ao resto do mundo. Outro exemplo pode ser dado a partir da abordagem do padre José de Anchieta diante dos Tupinambás. Este povo indígena brasileiro tinha costumes patrilineares em que as filhas dos irmãos eram tidas como parentes, mas as filhas de suas irmãs não. Outro costume dos Tupinambás foi analisado por Montaigne, no caso o da antropofagia, que afirma:“não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos.” Montaigne consegue perceber que a antropofagia Tupinambá não era mais escandalosa do que as mortes e inúmeros suplícios cometidos em nome da fé cristã na Europa. Dessa forma, cada qual considera bárbaro todo costume que não é comum em sua terra.

            Diante dos conceitos afirmados no texto em questão, é possível perceber que no que se refere aos costumes, uma sociedade analisa os hábitos alheios sempre tendo como parâmetro seus próprios costumes. Não há uma suspensão de valores no momento da análise, na realidade a observação da cultura estranha é perpassada pelo etnocentrismo. A antropologia moderna indica justamente o contrário no processo de observação e análise das culturas. A tentação do ocularcentrismo. (de acordo com essa perspectiva toda abordagem é realizada através do olhar viciado do pesquisador) é algo que incidia sobre as análises antropológicas dos séculos XVI, XIX.

            Outro aspecto relevante é o determinismo geográfico, nesse aspecto acredita-se que há certa influência da localização geográfica no desenvolvimento ou não de certos comportamentos e habilidades de determinados povos. Segundo ele, Marcus V. Pollio arquiteto romano afirmava a crença de que os povos localizados mais ao sul do globo são mais inteligentes, enquanto os do norte são mais preguiçosos.Já o filósofo árabe do séc.XVI Ibn Khaldun, cria na natureza passional dos habitantes das regiões de clima quente, enquanto que os de clima frio faltavam-lhes vivacidade.Contudo, esses e outros exemplos do gênero não respondem ao dilema proposto inicialmente pelo autor, e para tanto, ele cita D’Holbach: “Será que o sol que brilhou para os livres gregos e romanos emite hoje raios diferentes sobre seus degenerados descendentes.”Dessa forma, afirma-se a crítica de que a localização geográfica de determinado povo, tenha influência sobre seus comportamentos, hábitos e  costumes.

            Diante disso, na busca pela elucidação do dilema da transmissão genética ou da teoria do determinismo biológico. Teoria esta que, afirma que cada grupo étnico possui características próprias, que são transmitidas geneticamente. Ainda por esse viés, os judeus são avarentos e comerciantes enquanto os norte-americanos são empreendedores e interesseiros, por sua vez os portugueses são muito trabalhadores e de inteligência limitada. Com isso, certos comportamentos culturais eram creditados a transmissão hereditária de genes. Contudo, os antropólogos rejeitaram totalmente essa perspectiva, pois entendem que qualquer ser humano de qualquer etnia pode ser transportado, educado e se adaptar a qualquer sociedade. Em suma, ficam descartadas as duas teorias de determinismo, o biológico e geográfico.

Abre-se com isso, o questionamento diante das inúmeras diferenças desenvolvidas pelos seres humanos ao longo de sua construção histórica e de suas diferenciações dos outros animais do planeta. A possibilidade primeira que o autor encontra é que o humano é um ser de cultura. Nesse ponto, se faz necessário uma busca de uma definição etmológica do termo cultura. Segundo o autor a primeira definição do termo em questão, foi apresentada por Edward Tylor (1832-1917) em seu livro Primitive culture. Ele na realidade utilizou-se dos termos germânico Kullur, o de origem francesa Civilization e vocábulo inglês Culture na compreensão e definição do termo cultura como utilizado na atualidade.

A compreensão de cultura como fenômeno natural encontrava muita resistência da sociedade do séc.XIX. Sociedade essa que, ainda sustentava a idéia de natureza sagrada do ser humano. Nesse sentido essas afirmativas se confrontavam com as pressuposições teológicas e metafísicas comuns à sua época e sociedade. Nesse contexto então, o autor cita Tylor:

O mundo como um todo fracamente preparado para aceitar o estudo geral da vida humana como um ramo da ciência natural. Para muitas mentes educadas parece alguma coisa repulsiva e presunçosa o ponto de vista de que a história da humanidade é parte e parcela da história da natureza, que nossos pensamentos, desejos e ações estão de acordo com leis equivalentes àquelas que governam os ventos e as ondas, a combinação dos ácidos e das bases e o crescimento das plantas e animais. [...] Felizmente não é necessário adicionar mais nada à lista de dissertações sobre a intervenção sobrenatural e causação natural, sobre liberdade, predestinação e responsabilidade. Podemos rapidamente escapar das regiões da filosofia transcendental e da teologia, para iniciar uma esperançosa jornada mais prática.(TYLOR apud LARAIA,2005, p.31,32)

As questões acima citadas, na atualidade poderiam ser suprimidas em afirmativas da antropologia, mas no contexto de Tylor eram de muita relevância devido à força da religião e de suas pressuposições. Segue-se então que, conforme o autor é necessário observar todo o contexto em que Tylor estava inserido, para compreender sua perspectiva acerca do seu  conceito de cultura.Para elucidar tal conceito, faz-se necessário uma percepção da relação dos termos que se seguem, a igualdade da natureza humana e a diversidade cultural. Nessa abordagem, a primeira teoria pode ser melhor observada na comparação das “raças do mesmo grau de civilização”.

Contudo, cabe a antropologia moderna especificar seu conceito de civilização, para que seja possível ordenar grau de comparação entre as mais diversas civilizações a que se tem acesso. Pois a concepção da sociedade européia do séc. XIX era etnocêntrica, visto que se percebia no mais alto grau de civilização enquanto as tribos indígenas eram tidas como o extremo oposto. Contudo, fica claro que para uma compreensão do pensamento de Tylor, faz-se necessário uma visão do contexto que marcava a década de 1860. Década influenciada pela Origem das Espécies de Charles Darwin, e pela teoria do evolucionismo unilinear. Dessa forma, a antropologia desse período seguiu o mesmo caminho, afirmando na maioria de seus trabalhos a evolução uniforme da cultura.

A crítica ao método comparativo afirmava a necessidade de comprovação dos dados de determinada cultura antes de submetê-los a qualquer comparação. Mais do que isso, propôs como alternativa a teoria evolucionista da cultura, uma comparação dos resultados obtidos por meio de pesquisa histórica, e considerou também as condições psicológicas e do meio ambiente no desenvolvimento da cultura.Sua pesquisa se desenvolveu e ficou conhecida como Particularismo histórico, ou Escola Cultural Americana.Perspectiva esta que, afirmava a particularidade do desenvolvimento cultural de cada civilização, por conta de eventos históricos próprios. Segue-se com isso que o evolucionismo unilinear pôde ser superado pelo modelo multilinear.

Não obstante, o grande salto na afirmação da evolução da cultura como responsável pela sobrevivência da espécie humana é encontrado nas pesquisas de Alfred Kroeber (1876-1960). A principal preocupação de Kroeber é distinguir entre o aspecto orgânico e o cultural na formação evolutiva do humano. Contudo, a diferenciação entre um aspecto e outro, não são tão claramente percebidos, por isso Kroeber tenta apresentar sua percepção acerca de suas multiplicidades nas diversas civilizações. Ele utiliza a comparação entre a evolução genética dos demais animais diante da evolução cultural do ser humano, e afirma que o humano não se altera geneticamente justamente por sua capacidade de superação e evolução cultural.Sobretudo nesse aspecto, conforme Kroeber é que está a diferença máxima entre o humano e os demais animais com os quais divide seu meio ambiente.

Diante disso, pode-se afirmar que a cultura determina os comportamentos humanos mais do que a herança genética. Consequentemente, suas ações são influenciadas por seus padrões culturais, segue-se então que os instintos foram suprimidos no processo evolutivo. A cultura é a forma pela qual o humano se adapta ao seu meio ambiente, e é por conta da mesma que os desafios encontrados são superados. Percebe-se então que, o aprendizado do humano se tornou mais relevante do que sua transmissão genética. Nesse processo, a experiência histórica dos antepassados acumula-se com as experiências do presente, proporcionando uma ação criativa individual. Em suma, mesmo as realizações dos indivíduos geniais da história são fundamentadas e só foram possíveis a partir das inúmeras experiências anteriores que foram acumuladas no decorrer da evolução humana.

Não obstante, é possível concluir que a origem da cultura é um tema complexo, que se abre a várias perspectivas de pensadores diversos para poder chegar a uma conclusão ampliada acerca do tema proposto. Dessa forma, essa perspectiva aborda a teoria de Richard Leackey e Roger Lewin que afirmam que o desenvolvimento do humano é conseqüente da vida arborícola de seus antepassados. Segundo eles, o humano foi perdendo o faro devido a essa vida arborícola, o que proporcionou o desenvolvimento de uma visão estereoscópica, aliou-se a esse fato a possibilidade de utilização das mãos para pegar e examinar os objetos á sua volta.

Contudo, o bipedismo enquanto característica exclusiva dos primatas, isto é, entre os mamíferos, é resultado de um processo evolutivo na busca pela sobrevivência. Não obstante, a postura ereta é entendida como a responsável pelo avanço da habilidade manual, devido aos estímulos proporcionados pela postura. Mais relevante do que as argumentações da paleontologia, se apresentam as afirmações antropológicas de Lévi-Strauss que partem do pressuposto que, a partir da primeira interdição é que a cultura tem seu início.Segundo ele, a primeira interdição foi a do incesto, categoria essa que se percebe em todas as culturas.Diferentemente, Leslie White afirmava que a transição do estágio animal para o humano se deu quando o mesmo foi capaz de criar símbolos. Laraia em conformidade com White cita-o:

Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais antropóides em homens e fê-los humanos. Todas as civilizações se espalharam e perpetuaram somente pelo uso de símbolos...Toda cultura  depende de símbolos.É o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação.Sem o símbolo não haveria cultura e o homem seria apenas animal, não um ser humano... O comportamento humano é um comportamento simbólico. Uma criança do gênero Homo torna-se humana somente quando é introduzida e participa da ordem de fenômenos superorgânicos que é a cultura. É a chave deste mundo, e o meio de participação nele, é o símbolo. (WHITE apud LARAIA,2005,p.55)

          Fato é que, nas diferentes perspectivas acerca do surgimento da cultura, pode-se analisar criticamente a possibilidade de que o tema em questão tenha ocorrido de forma instantânea ou mesmo isolado. Nesse ponto, Laraia retoma e critica Kroeber em sua aceitação de um ponto crítico de uma eclosão da cultura, enquanto salto quantitativo na filogenia dos primatas.Dentro dessa perspectiva, seria possível um alinhamento conceitual com alguns pensadores católicos interessados em defender a teoria de que o homem adquiriu cultura no momento em que o Criador lhe concedeu uma alma imortal.

            Por fim, as teorias modernas sobre cultura, que tem início com a proposta do antropólogo Roger Kessing em seu artigo Theories of Culture. Teorias essas, que se alinham em alguns pontos com White, Sahlins, Harris dentre outros teóricos. Todos eles possuíam a percepção de que: Culturas são sistemas ou padrões de comportamento que são socialmente transmitidas por grupos humanos, e que a mudança cultural é afirmada primariamente como um processo de adaptação equivalente a seleção natural. A seguir, a teoria de Kessing tematizada, é aquela que se refere às teorias idealistas de cultura que são subdivididas em cultura como sistema cognitivo, cultura como sistemas estruturais, e por último, cultura como sistema simbólicos.

            Outro ponto de notada importância é aquele que percebe cultura como fator de condicionamento da visão de mundo do humano, nesse aspecto o ocularcentrismopode ser acentuado. Dessa forma, a herança cultural desenvolvida através de inúmeras gerações, condiciona o indivíduo a reagir de forma negativa ou depreciativa diante de comportamentos que diferem do padrão de seu grupo. Alguns exemplos se fazem necessários, como forma de elucidação dessa afirmação. Os exemplos podem ser os listados por Marcel Mauss em seu Noção de Técnica Corporal.  Para Mauss, certas diferenças comportamentais em seus grupos são tidos como naturais, tais como as técnicas de nascimento e obstetrícia. Enquanto para os indianos seria natural o parto com a postura reta agarrada a um galho de árvore, para os ocidentais a posição correta seria a mãe deitada de costas. Por sua vez, algumas tribos brasileiras entendem que a posição de cócoras é a correta.Outro exemplo de diversidade cultural é o da gastronomia e ainda a tão controversa utilização do corpo na questão sexual.O que se conclui é que os comportamentos etnocêntricos, resultam de fato em compreensões preconceituosas dos padrões comportamentais de povos diferentes.

            Contudo, o comportamento extremo contrário ao etnocentrismo é a apatia social, indivíduos que são desterrados, são brutalmente deslocados de seu convívio social podem perder a crença em seus valores e consequentemente perder o sentido da vida. Fato que possibilita a incidência de suicídios em vários grupos devido a uma forte apatia, saudade ou mesmo sentimento de desterra mento ou deslocamento social extremo. Exemplo disto é o banzo que é uma forma de morte causada pela decorrente apatia. nos africanos que foram removidos violentamente de seus grupos e de seus costumes, línguas próprios. Observando também, a perda dos benefícios de suas crenças específicas, que lhe possibilitavam curas reais ou imaginárias por meio de sua fé em aspectos religiosos de seu grupo.

             Em uma perspectiva moderna de cultura, não mais é possível fazer uma escala de sistemas de cultura em que haja uma valoração que classifique em termos de lógica e pré-lógica, evoluída e primitiva. Desta forma, um trabalho antropológico somente pode ser creditado de forma coerente, a partir de sua percepção de inserção na cultura analisada. Partindo dessa inserção, a análise pode ser entendida de forma coerente quando entende as particularidades de cada grupo. Isso implica em entender uma lógica própria de cada sistema cultural, produzidas e legitimadas por cada grupo.Observando ainda que, cada povo possui sua dinâmica própria, sendo esse comportamento antropológico moderno, uma forma de preparar o humano para entender e aceitar esse mundo sempre novo, o mundo do outro.

REFERÊNCIAS

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005.