Observações sobre o papel da linguagem mural através das concepções de Ricardo Carpani

Por Michele Philomena*

Após o advento do Muralismo Mexicano, houve uma expansão pela américa latina da arte mural. Podemos perceber que algumas cidades mantiveram essa produção em continuidade, como Buenos Aires por exemplo, que vai se valer de um discurso de apoio à prática. Dentre àqueles que contribuíram para esse discurso, está o “Movimento Espartaco”[1] (1959-1968), o qual se encontrava Ricardo Carpani[2], membro exponencial do Movimento. Escreveu vários livros, entre eles Arte e Revolução na América Latina, onde criou uma defesa à produção mural, baseado na premissa de que a arte latino-americana deve ser revolucionária, pública, de fácil compreensão, ajudando a sensibilizar as massas para a mudança, pois a realidade latina é oposta à dos EUA e da Europa e que a função da pintura mural na América Latina é agir como elemento de reflexo e interesses de comunicação de massa, através da narrativa do muralismo.

Carpani busca em seu livro demonstrar como deve ser a arte legítima da América Latina, para ele “A arte é ao mesmo tempo uma expressão individual, nacional e universal. ” [3] A sociedade modela o indivíduo e os problemas humanos são universais:

“As mais representativas criações artísticas da humanidade expressam o espírito do meio que nasceram.[4] Portanto, além de ser expressão social é também uma expressão nacional.

Artista e sociedade se divorciam nos períodos de transição e recentemente, isso ocorreu devido ao desenvolvimento do capitalismo e sua concepção individualista. A obra então deixou de ser um bem social para se transformar em mercadoria, luxo de poucos. Interessa a esse sistema uma arte abstrata, a “A arte pela arte”, onde não é possível formar uma posição coletiva. Daí advém o triunfo das obras formais despidas de narrativas. Atualmente poderíamos falar da obra discurso, onde é impossível uma ampla compreensão se não levarmos em consideração todas as ideias e sistemas produtivos que englobam sua execução, todo o seu “campo”, como diria Bourdieu. Porém não vamos aqui nos deter na contemporaneidade, já que Carpani não se referia a mesma.

Algumas artes se espalham mais por suas campanhas do que por sua qualidade. A arte europeia se difundiu com as campanhas militares e com a expansão de seu comércio. O mesmo vale para o poderio norte americano. Pollock foi totalmente “projetado” para representar uma arte verdadeiramente estadunidense, o que é uma ironia, já que aprendeu o “Dripping” com Siqueiros, um muralista mexicano. Ocorre, portanto, que muitas vezes as culturas nacionais dos países menores são destruídas por interesses das grandes potencias comerciais e acabam assim consumindo uma cultura importada. Carpani buscava uma “Arte Nacional” e criar uma arte nacional não significa resgatar a arte “antiga” da época da colonização ou dos povos que ocuparam primordialmente a América Latina. Não é uma arte que parte do passado, mas sim uma arte que caracteriza o momento atual do artista.

            Carpani ressalta que o mercado validador da arte atende aos interesses imperialistas, selecionando unicamente a arte que serve a eles e á burguesia. Sendo assim o artista renuncia sua “liberdade criadora para acomodar-se aos gostos e exigências daquela classe” [5], buscando inserir-se no circuito da arte.  Acaba desse modo se afastando do popular e da realidade.

Para ele, deve-se criar uma arte que nos liberte dos exploradores econômicos e por isso deve ser de fácil acesso ao povo, diferente da arte pura: “A arte pura é o refúgio dos trepadores e conformistas mais ou menos conscientes, arbitrariamente colocados acima da sociedade e da história. Valor absoluto, falso como todos os valores absolutos, como toda a abstração sem bases materiais. O puro não existe, porque se é puro não é arte e se é arte não é puro. Os elementos plásticos, as palavras, os sons por si mesmos, em estado de pureza não bastam para configurar uma obra artística. Esta surge unicamente quando o homem os organiza em função de uma expressão transcendente”[6]. Aqui percebe-se claramente um ataque ao Neoplasticismo à Mondrian, bem como a Arte Abstrata proveniente do EUA, levando em consideração que Carpani vai construir o seu discurso em teor libertário da dependência dos países economicamente dominantes, que exportam e impõem sua cultura. Embora o discurso de Carpani tenha sido construído na década de 60, infelizmente, os parâmetros econômicos não mudaram o suficiente para considerá-lo desatualizado.

A forma sem conteúdo não é arte. Quando não há como questionar a forma de um pintor revolucionário, os servidores das classes dominantes atacam ao tema, que evidentemente é extra pictórico.

Sobre a arte revolucionária Carpani diz que o meio mais adequado para seu desenvolvimento são os murais e os cartazes e que murais públicos em locais controlados pela classe dominante não se caracterizam como revolucionários, pois atendem aos desejos dessas classes. Esses devem estar em locais de passagem do povo trabalhador, pois “Somente através de uma intensificação do contato entre a obra artística e a sociedade, que exercite de maneira constante a sensibilidade dos homens, familiarizando-os com as novas formas criadas pelo artista, se conseguira superar a incompreensão do que é esse objeto”[7].·.

Para ele, a verdadeira arte revolucionária deve surgir das massas, mas há a exceção de sua ocorrência no México que por suas massas campesinas e pobres culturalmente, encontraram motivação pela burguesia com interesses opostos ao sistema dominante. O Abstracionismo e o Realismo Socialista não podem assim caracterizar uma arte nacional nos países da América Latina, pois são expressões originárias de outros lugares e são carentes de sentido artístico revolucionário. O Abstracionismo é o retrato de uma burguesia decadente, da crise do capitalismo e do individualismo. Reflete a burguesia em retirada onde não há interesse que as massas tenham acesso á uma arte portadora de significado. Não há sentido para essa arte na América Latina, pois aqui não se realizou totalmente a revolução burguesa. Ela serve “somente a quem tem interesse de manter a arte a margem da sociedade e dos problemas do homem”.[8] Ela impede que o homem reflita sobre seus problemas. Isso não quer dizer que não haja pesquisas válidas no campo formal, mas essas servem somente como pesquisas plásticas e não como arte final.

Já sobre o Realismo Socialista, Carpani diz que ele “manifesta no terreno artístico as limitações e o reacionarismo da burocracia soviética”.[9] Ele cita uma passagem de Trotsky que diz que o Realismo Socialista “ consiste na imitação de daguerreótipos provincianos do final do século passado (XIX) ... representa acontecimentos que nunca se realizaram... A arte do período stalinista cairá como a mais franca expressão da profunda decadência da revolução proletária.”[10]  Nesse período toda a arte que não fosse considerada real socialista era acusada de burguesa, limitando assim a produção artística. O Realismo era apenas um testemunho fotográfico, sem razão de ser, mas a arte deve ser interpretativa e não representativa e para isso não deveria se eliminar das produções artísticas os vestígios burgueses, mas sim promover o socialismo.

Na América Latina esse tipo de influencia fez os artistas acreditarem que faziam uma arte revolucionaria através de narrativas negativas, quando na verdade atendiam aos interesses do Partido Comunista contra os interesses populares. 

Fica evidente que o discurso que Carpani emprega, visa defender uma arte que se destina às ruas, mas que não é vazia de significados, pois procura atingir diretamente a grande massa da sociedade. Para ele, essa arte seria legitimamente latina. Nesse sentido a Arte Mural vai buscar o papel de agente transformador da sociedade e não apenas como relator. O público a que se destina não é o público elitizado, frequentador de galerias. A comunicação da linguagem mural deve, portanto, ser direta, acessível e clara.  Embora o discurso seja baseado na defesa da produção mural dos anos 70, não se pode excluir sua validade na arte atual. A produção mural que por muitas vezes foi dada com linguagem ultrapassada, continua por ser produzida em larga escala por diferentes grupos pela américa latina, que utilizam desde adesivos, até a composição com mosaicos, mas sem perder a característica da composição pictórica e o estudo da monumentalidade. A linguagem, porém, é pouco explorada no meio acadêmico local, onde não há uma bibliografia substancial aos que queiram se aprofundar no assunto, sendo necessário se recorrer a bibliografias internacionais. A produção mural no Brasil teve pouca expressividade no cenário artístico internacional, fator que obviamente contribui para a falta de bibliografia na área. Porém faz-se mister a compilação de materiais informativos e uma pesquisa mais elaborada no assunto técnico e teórico das influências e dos artistas que utilizaram essa linguagem.

Março 2016

*Michele Philomena é natural de Porto Alegre – Bacharel em Artes Plásticas e Licenciada em Educação artística (UFRGS). Participa da Associação de Artistas Atêlie1, e do Núcleo de Pesquisa e Produção Mural.

 

Bibliografia



[1]                      Movimento Espartaco ou "Grupo Espartaco" (1959-1968). Foi um movimento de artistas argentinos que promoveram a arte social na década de 60, rejeitando o colonialismo cultural.

[2]                      Ricardo Carpani nasceu em 1930, no Tigre, província de Buenos Aires. Aos 22 anos começa sua formação Artística com o mestre Emilio Pettoruti. Em 1959 participa da fundação do “Movimento Espartaco”. Logo realiza vários murais para sindicatos e cartazes para a CGT. Publica Arte e revolução na América Latina em 1961. (...) Morreu em Buenos Aires em 9 de setembro de 1997.

[3] Pg. 22; CARPANI, Ricardo, Arte y Revolución En America Latina.  BIBLIOTECA DEL PENSAMIENTO NACIONAL – Buenos Aires -Argentina, 64 p. Edición:2011

[4] Pg. 30

[5] Pg. 30

[6] Pg. 36

[7] Pg. 46

[8] Pg. 50

[9] Pg. 59

[10] Págs. 59-60