O dia 05 de novembro de 2008 despertou defrontando-se com um acontecimento referido como marco histórico: os Estados Unidos da América, potência mundial, haviam eleito para a presidência Barak Obama. Não só pelo momento delicado decorrente de uma crise financeira sem precedentes, ou pela guerra sem sentido no Iraque, problemas que devem ser enfrentados pelo novo presidente americano eleito, a aleição foi acompanhada e comemorada (em quase todo o mundo) por um fato singular: foi a eleição do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos.

Que significa isso?

Para a discussão que nos propomos, quais os impactos sobre a identidade negra? Afinal, Obama não se elegeu com um discurso que o alinhasse às reivindicações dos negros americanos: seu discurso foi universalista – a nação americana deveria mudar. São os negros dos vários pontos do mundo que reivindicam Obama, assim como os cubanos, povos africanos e, também, setores da sociedade brasileira. Para esse contingente e para os afro-americanos dos Estados Unidos, a vitória de Obama foi paradigmática: um afro-descendente chegou à presidência de um país que até a década de 1960 segregava, legalmente, todo e qualquer afro-descendente, ou negro.

Aí vem a discussão: que significa ser negro. Tanto lá, nos Estados Unidos, como cá, no Brasil? Em seguida à eleição de Obama, muitas pessoas opinaram sobre sua negritude: o ministro Barbosa, do STF, afirmou que Obama é negro e que isso é uma conquista para o povo negro; Caetano chama Obama de mulatinho, Berlusconi, na França, afirma que Obama é bronzeadinho; a Klu Klux Klan (KKK) afirma que Obama... não é negro. Sim, para a KKK Obama não pode ser considerado negro pelas seguintes razões: sua mãe era branca; sua educação foi de branco; viveu em uma "cultura" de brancos. Logo, não é negro. Sim, para a KKK, a organização racista mais famosa e conhecida por seus mantos e capuzes brancos e pelas cruzes flamejantes (fundada em 1867), e também para Roberta McCain, mãe do candidato derrotado John MacCain, Obama não é negro (a senhora Roberta chegou a afirmar que Obama é mais branco que ela, sobretudo por ter estudado em Harvard). Em uma afronta ao princípio birracial cultivado há séculos, que afirma que todo aquele que tiver ¼ (25%) de sangue negro é negro. Ou seja, segundo esse princípio, deve-se observar a ascendência até à terceira geração para se definir quem é ou não negro. Seria uma definição do tipo racial pela origem e, não, pela "marca", conforme Oracy Nogueira.

Segundo Nogueira, essa a distinção entre a classificação e decorrente discriminação racial no Brasil e nos Estados Unidos. Aqui, segundo Nogueira, o preconceito racial seria de "marca", o que significa que leva em conta os traços fenotípicos do sujeito (cor da pele, tipo de cabelo, grossura dos lábios, formato do nariz...); já nos Estados Unidos, o preconceito racial seria de origem, o que significa que leva em conta o aspecto genético e, não, fenotípico: se um dos pais ou avós era negro, o sujeito é negro. Isso, até Obama.

Não obstante, o que se encontra em jogo é a vida pública do indivíduo. A determinação da privacidade a partir de sua publicização ou de sua discussão no espaço público: o indivíduo deve se conformar com o que o grupo quer, uma vez que é o grupo quem fornece elementos para a socialização e individuação do sujeito? Ou o indivíduo deve confrontar o coletivo, de forma a que sua privacidade diga respeito somente a si?

No caso de Obama, não lhe foi perguntado se acata o padrão racial norteamericano ou se se alinha com o padrão racial brasileiro, onde impera o gradiente de matizes: negro, mulato, moreno-escuro, moreno-claro, branco... Aliás, não foi perguntado a Obama, sequer, se quis pautar sua campanha pela raciologia. De qualquer forma, não se pode desconhecer que boa parte dos eleitores de Obama nele votou por identificação com fatores que não têm a ver, diretamente, com convicções político-partidárias ou ideologias político-governamentais: votaram nele porque o consideram negro. E ponto. Muitos se vêem refletidos em Obama, que pode ser considerado aquilo que os americanos designam de "melting pot" – um cadinho de mistura. Para o historiador francês Jean-Louis Beaucarnot, Obama é, do lado paterno, 50% queniado, do lado materno, 36% inglês, 5% alemão, 2% cherokee e 1% francês. Isso, além de ter nascido em Honolulu (Havaí) e morado um bom tempo na Indonésia.

Ao lado dos reflexos políticos, esse quadro traz reflexões psicossociais e antropológicas: como se dá a construção da identidade de uma pessoa? E, por outro lado, será que a forma como a identidade é compreendida pelo conjunto da sociedade favorece ou impede seu desenvolvimento e empoderamento? Em outras palavras, será que o fato de a discriminação racial ser mais aberta, nos Estados Unidos, funcionou como um fator de união e luta por mais espaço político e econômico por parte das minorias, sobretudo os negros? Sim, é certo que a realidade dos dois países é diferente: lá, a abolição foi resultado de uma luta popular, uma guerra entre os apoiadores e os opositores do escravismo; aqui, a abolição resultou de um ato governamental legal, no esgotamento de um sistema econômico; lá, apesar da abolição em meados no século XIX (efetivamente em 31 de janeiro de 1865), determinados governos sustentaram e promulgaram leis racistas e discriminatórias até a última metade do século XX; aqui, apesar da abolição em fins do século XIX (efetivamente em 13 de maio de 1888), não se prolongaram muitas leis racistas e discriminatórias explícitas ou com participação efetiva de governos. Essas distinções, dizem, levaram a dois tipos de racismo e discriminação, vingando, no Brasil, o que se convencional chamar de "racismo cordial": o afro-descendente não é vítima do preconceito ou do racismo porque "conhece o seu lugar". Só vai sentir a discriminação racial (o racismo) quando avançar para além de fronteiras estabelecidas no imaginário e nas convenções sociais.

Feliz ou infelizmente, o indivíduo não se constrói sozinho, mas em sociedade. E a sociedade, não raras vezes, cobra um ônus sobre o lugar que concede ao indivíduo. Certo, a sociedade é um ente abstrato, que só tem substrato na existência concreta dos indivíduos que, juntos, constituem-na. Porém, para que se reconheçam como sociedade, esses indivíduos compartilham categorias mentais, uma cultura, valores, ideais... Mas o indivíduo não é o resultado automático da sociedade onde se encontra. Tem, mesmo que a contragosto, sua liberdade, ainda que possa renunciar a ela e acatar, submissa ou alienadamente, tudo aquilo que encontra no cosmos onde se radica.

O belo e trágico de nossas sociedades (ocidentais) é que, a seu modo, cada qual efetiva a tarefa assinalada por Sartre, segundo o qual o ser humano está condenado a ser livre. E a identidade de cada um, embora não pareça, é resultado dessa condenação. Sim, porque ser condenado não significa que se está determinado ou preso a uma determinação ("ter de" ou "dever" ser assim), mas que a pessoa tem à sua disposição uma infinidade de possibilidades, mesmo quando se recusa a tomar uma decisão ou a optar... Mesmo assim, já fez sua opção. E o processo de construção de identidade, que é uma negociação com as identificações mais significativas para o sujeito, vai se efetuando ao longo de sua história e se realiza ou culmina com sua morte. Até lá, o sujeito vai se aperfeiçoando, construindo, fazendo-se. Nem sempre, porém, a pessoa pode ser aquilo que almeja ou deseja – e o entrave está, não raro, na cultura, na sociedade onde se encontra... no outro. Daí o mesmo Sartre afirmar que o inferno são os outros, quando eles se configuram nos obstáculos ou empecilhos para a realização dos projetos existenciais do sujeito.

É por essas e outras que, mesmo diante de tantas demandas e interpelações externas, a resposta de alguém sobre si só pode provir de dentro. É por isso que, por mais que muitos segmentos sociais e contingentes populacionais desejem, somente a Obama cabe responder quem ele é e quem ele quer ser. Talvez o maior desafio de Obama seja provar que ele é, como dizia Nietzsche, "humano, demasiado humano". Se, além disso, negro, só quem pode dizer – e assumir – é o próprio Obama. Ninguém mais.