O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou no dia 17 de junho o plano americano para reforma do setor financeiro, após anos de desregulação, destacando que se trata da mais ampla reforma desde a Grande Depressão ocorrida nos anos 30.

“Não fomos nós quem escolhemos a forma como surgiu esta crise, mas podemos escolher os meios para lidar com ela”, declarou Obama ao apresentar o projeto considerado uma das prioridades de seu governo.

No centro do plano está o Federal Reserve (Fed, banco central americano), que terá "superpoderes" para supervisionar as maiores instituições financeiras e intervir caso sejam identificados riscos sistêmicos. E o plano prevê ainda a criação de uma agência para proteger o consumidor de produtos financeiros.

O programa atinge não apenas bancos. Servirá também para seguradoras, empresas do setor de crédito e gigantes das áreas industrial e comercial, como General Electric, Ford e Wal-Mart -que se prepara para criar um grande braço financeiro em suas operações.
Qualquer empresa que tiver atividades financeiras, mesmo que para financiar seus consumidores, poderá ficar sob o guarda-chuva do programa.

Como resultado das reformas, que terão de ser aprovadas pelo Congresso, poderão surgir ainda restrições aos pagamentos de executivos de Wall Street (o que muitos congressistas apoiam) e limitações maiores do que as propostas pela administração Obama.

Na base do pacote federal, há três pontos principais:
1) Maior poder de intervenção do governo no mercado financeiro, com autoridade para assumir empresas consideradas "grandes demais para cair";

2) Mais transparência e aumento das necessidades de capital nos bancos para que resistam a novas crises; além de controle nas chamadas "operações exóticas" com derivativos e outros instrumentos;

3) Mais proteção aos consumidores de produtos financeiros (de empréstimos ao consumo e imobiliários, via cartões de crédito ou para o ensino).

No lançamento do programa, Obama chegou a qualificar como "contratos ridículos" as cláusulas hoje impostas aos consumidores. Segundo sua administração, os bancos terão de transformá-los em algo "totalmente transparente".

O discurso de Obama
Para o governo americano, as décadas de "erros e oportunidades perdidas" e a falta de um marco regulatório apropriado foram os grandes vilões da atual recessão. Segundo Obama, o sistema financeiro foi construído sobre "areia movediça". E o apetite pelo risco desenfreado levou as entidades de crédito "a diminuir seus padrões para atrair novos mutuários". E, quando os mercados começaram a desmoronar, a falha não foi dos indivíduos, "foi uma falha de todo o sistema". "Chegou a hora de mudar isso", acrescentou.

Mas Obama garantiu que as novas regras não tirarão o incentivo à inovação. "As reformas vão permitir que nossos mercados impulsionem a inovação e desencorajem abusos." E garantiu que o sistema não será engessado. O objetivo é estabelecer um "cuidadoso equilíbrio". "O livre mercado foi e continuará a ser o motor do progresso americano." Mesmo porque, segundo Obama, o setor privado é mais eficaz para criar empregos do que o público.

Para o presidente americano, o plano não só procura fazer com que os reguladores se preocupem com a solidez das instituições, mas também, "pela primeira vez, com a estabilidade do sistema em seu conjunto".

Vigilância
A finalidade das propostas, que ainda terão de ser aprovadas pelo Congresso, é dar mais poder ao Banco Central (Federal Reserve, Fed) para fiscalizar as maiores instituições financeiras do país cuja falência afetaria a economia americana. A Casa Branca destacou que a reforma permitirá introduzir mais disciplina e transparência nos mercados financeiros.

Como havia sido anunciado anteriormente, o projeto também incluirá a criação de “uma nova e poderosa agência com um único trabalho: o de proteger os consumidores”, encarregada de supervisionar especificamente os créditos imobiliários e os créditos ao consumo. “Esta nova agência terá o poder de fixar padrões de modo que as companhias concorram ao oferecer produtos inovadores que os consumidores de fato queiram e entendam”, ressaltou.

A reforma deverá, ainda, incluir a criação de um conselho de vigilância dos serviços financeiros. Este órgão, que será presidido pelo Departamento do Tesouro, será encarregado de avaliar os riscos que ameaçam o conjunto do sistema financeiro e de coordenar as ações empreendidas pelos diferentes organismos de regulação para enfrentar estes riscos. Ao anunciar o plano, Obama salientou a falta de uma base apropriada para lidar com abusos e excessos.

O presidente americano também lembrou que nos últimos anos houve multiplicação dos instrumentos financeiros complexos, como os ativos respaldados por hipotecas, com o objetivo de distribuir o risco, mas que acabaram por concentrá-lo — esquemas estes que, nas palavras dele, “foram construídos sobre areia movediça, alimentando o apetite de risco desenfreado, levando as entidades de crédito a diminuir seus padrões para atrair novos mutuários”. “Muitos americanos compraram casas e pediram dinheiro emprestado sem se informar de forma adequada sobre os seus termos e sem arcar com suas responsabilidades, com frequência, uma falha de todo o sistema”, complementou.

Exigências
Para garantir a estabilidade do sistema, o governo elevará a exigência de capital em posse de todas as instituições financeiras. Os fundos especulativos, que fogem ao controle das autoridades, terão que se registrar em um órgão regulador. Também serão editadas normas para a operação que consiste em transformar ativos financeiros em títulos. Essa operação foi parcialmente responsabilizada pela disparada dos créditos imobiliários de risco que provocaram a crise atual. As agências de classificação, acusadas de má avaliação dos riscos inerentes a estas operações, também serão supervisionadas. E a reforma deverá dar ao governo meios para permitir um desmantelamento “suave” das grandes instituições financeiras ameaçadas de bancarrota.

Assumir riscos
Outro elemento importante do pacote é que os bancos e instituições que atuarem no mercado de securitização de dívidas terão de ficar com pelo menos 5% desses papéis.

A securitização ocorre quando débitos de terceiros, como financiamentos imobiliários, são "embalados" em novos produtos e vendidos no mercado a investidores. A ideia central é que os bancos assumam uma parcela do risco dessas operações, levando-os a serem mais conservadores.

Boa parte da atual crise está enraizada nesse mercado. As dívidas imobiliárias "subprimes" (de mutuários sem bom histórico de crédito) foram "empacotadas" em produtos financeiros e vendidas ao redor do mundo. A remuneração desses papéis era, em parte, a prestação que o mutuário pagava.

São esses títulos que se transformaram nos "ativos tóxicos" que hoje entopem as carteiras de crédito dos bancos. Como os preços dos imóveis nos EUA seguem em queda e mutuários deixaram de pagar suas dívidas, esses ativos permanecem cada vez mais "tóxicos".

Foi em grande medida por conta desses papéis (quase sem valor hoje) que o governo dos EUA teve que assumir o controle de algumas das maiores financeiras do país, como a seguradora AIG, as gigantes do setor imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac e o Citigroup.

A concordata e a estatização da GM têm também ligação com isso, já que a "secura" no crédito bancário ao consumo derrubou a venda de veículos no país. Juntos, esses problemas causaram a maior recessão e explosão do endividamento estatal do pós-Segunda Guerra.

Todo o poder para o FED
O plano propõe dar ao Fed maior poder de supervisão sobre as grandes instituições bancárias e não-bancárias (como seguradoras ou administradora de recursos de terceiros), podendo até liquidá-las.

Separadamente, a instituição que garante os depósitos nas instituições bancárias dos EUA, a Federal Deposit Insurance Corporation, ganhará o poder de intervir em grandes conglomerados financeiros que estejam atravessando dificuldades (como o segmento de hipotecas) e quebrar este conglomerado em empresas independentes, de modo a isolar o problema.

O Office of Thrift Supervision (que supervisiona a poupança) será extinto e suas funções incorporadas ao novo Supervisor Nacional Bancário, que incluirá as funções do Office of the Comptroller of the Currency (que supervisiona as trocas de moeda dos bancos no exterior).

O maior poder de intervenção do Federal Reserve é considerado um dos pontos altos do pacote regulatório anunciado por Obama. Segundo economistas, o poder do Fed limitava-se aos bancos comerciais, o que impediu uma ação mais rápida na crise financeira que nasceu no berço americano. Aqui no Brasil, os juros altos e o controle maior exercido pelo Banco Central (BC) sobre os bancos inibiram o surgimento de operações financeiras mais complexas e arriscadas, o que permitiu que o setor se mantivesse sadio, mesmo com a quebradeira nos Estados Unidos e Europa:.

Com o plano, o Fed poderá intervir em bancos de investimento, seguradoras e outras empresas não-bancárias que representarem risco para o sistema. O exemplo mais citado da limitação do Fed no auge da crise foi com a seguradora AIG. Com a queda do preço dos ativos em sua carteira, a seguradora foi salva pelo Tesouro Americano. O Fed nada fez, já que não tinha poder para intervir fora do ambiente dos bancos comerciais.

Outro fator que garantiu solidez ao sistema brasileiro foram as regras rígidas do BC. O BC brasileiro exige dos bancos, por exemplo, Índice de Basiléia (razão entre o patrimônio e o volume de empréstimos) mínimo de 11%, enquanto o nível recomendado internacionalmente é de 8%. No Brasil, a alavancagem dos bancos não ultrapassa seis vezes o seu patrimônio, enquanto nos EUA havia instituição emprestando 50 vezes mais do que tinha.

Crédito ainda pouco robusto foi desestímulo a derivativos
Outro fator de resistência do sistema financeiro brasileiro foi a falta de robustez do crédito, diz Araújo. Ainda incipiente, não permitiu que produtos financeiros mais complexos, como derivativos de crédito e hipotecários, fossem desenvolvidos.

Análise do mercado
Seis meses atrás, alguns observadores estavam prevendo que os EUA trariam de volta, em alguma forma, a Lei Glass-Steagall, cuja revogação, em 1999, rompeu a barreira que separava os bancos de investimento dos bancos de varejo, mais conservadores. O desaparecimento dessa distinção é visto por muitos como uma das causas dos excessos que resultaram na atual crise financeira.

O projeto divulgado dia 17 de junho, fruto de meses de apressada colaboração entre o governo do presidente norte-americano, Barack Obama, e representantes do setor financeiro, é prova concreta da arte do possível no reino da política. O texto não faz nenhuma menção ao retorno de um sistema bancário dividido, solução que havia sido recomendada por muitos observadores, entre os quais Paul Volcker, assessor econômico de Obama e antigo presidente do Fed (o BC dos EUA).

E o estudo tampouco exibe qualquer traço do plano original de produzir uma consolidação drástica no número de agências regulatórias que agem sobre o sistema bancário. Em lugar de seis agências para o setor, agora existirão cinco.

Como declarou Obama anteontem, "nós queremos fazer as coisas da maneira correta.
Queremos agir com cuidado. E não queremos enfrentar moinhos de vento". O resultado é uma série cuidadosamente articulada de compromissos entre uma constelação diversificada de agências regulatórias, barões do Congresso e grupos de lobby setoriais. Determinar que proporção desse acordo cuidadoso sobreviverá aos debates para sua aprovação no Congresso continua a ser uma questão em aberto.

É seguro que a maior parte da comunidade financeira e do lobby que representa o setor está satisfeita com a proposta.

Talvez o elemento mais vulnerável na proposta de reforma seja a ideia de conferir ao Fed poderes novos sobre instituições consideradas como grandes demais para quebrar. Se considerarmos que o Fed é visto como responsável por alimentar a bolha de ativos que deu início ao processo, muitos legisladores, entre os quais aliados do presidente, consideram que isso seja o equivalente a recompensar o fracasso.

"Poder econômico demais concentrado em um lugar só é algo que coloca em risco o nosso sistema de governo. Os pais fundadores dos EUA se opunham a concentrações de poder econômico, ou de outra ordem, e favoreciam um sistema de equilíbrio e de controles recíprocos", afirmou o democrata Mark Warner, membro da Comissão Bancária do Senado.

Os republicanos são ainda mais estridentes em sua oposição a uma ampliação dos poderes do Fed. "A vasta expansão do balanço do Fed nos últimos meses pode ser vista como fonte muito mais significativa de risco sistêmico para a economia do nosso país do que o colapso de qualquer instituição financeira específica", disse a liderança republicana no Congresso recentemente.

Críticas
O plano apresentado pelo governo de Barack Obama para regular o sistema financeiro americano foi recebido com ressalvas por alguns especialistas. Mesmo os que fizeram elogios não deixaram de criticar alguns pontos do projeto, que deverá sofrer alterações no Congresso.

Talvez a crítica mais forte tenha vindo de Simon Johnson, ex-economista-chefe do FMI. Para ele, o plano "constrói as fundações para a próxima crise financeira, que, todas indicações apontam, será mais forte e provocará muito mais danos que a de 2008/09. Mas, pelo que tudo indica, até lá os autores não estarão mais no governo".

O Prêmio Nobel Paul Krugman disse que é "muito fraca" a exigência de instituições manterem em suas contas 5% do valor de hipotecas. Mas aplaudiu a ampliação da regulação para todas as instituições financeiras.

David Hirschmann, da Câmara de Comércio dos EUA (o maior grupo de lobby empresarial americano), também fez ressalvas. "Estamos preocupados que, de modo geral, a proposta só aumenta camadas no sistema sem atingir os problemas básicos e fundamentais."

Já Dean Baker, do Centro de Pesquisa e Política Econômica, também disse que a proposta tem pontos positivos, porém afirmou que, "no final das contas, ela não vai tornar o sistema financeiro mais seguro pelo simples motivo de esconder responsabilidades em vez de tornar os reguladores responsáveis pelos fracassos".

Bibliografia
Jornal Folha de S. Paulo de 18 de junho de 2009
Jornal O Estado de S. Paulo de 18 de junho de 2009 Jornal Correio Braziliense de 18 de junho de 2009
Jornal O Globo de 18 de junho de 2009