RESUMO
Este estudo se trata de uma proposição analítica acerca de uma das obras mais doces que a literatura africana já pode dispensar aos apaixonados pela arte da palavra - Mar me quer, do inovador Mia Couto. Tem-se como objetivo mostrar quão significativa é a descoberta da essência da palavra dentro de si própria, que é a chave para a compreensão do que sentimos e de como transmitimos esses pequenos fragmentos de nós mesmos ao que nos rodeia. O amor tão singular e encantador de Luarmina e Zeca Perpétuo são aqui, pontos cizados para esse raciocínio - compreender que a palavra está no mais infame instinto humano, que nós somos palavras soltas ao desconhecido e guiadas simplesmente pelas nossas atitudes. Nessa verdadeira epopéia de Mia, a ideia de amar está co-relacionada ao mar por pequenas teias do imaginário, que nos permitem ver além dessa imensidão azul. Mia nos remete ao maravilhoso, contrastando com o viver simples do qual parecem pretender ascender grandes personagens com um 'quê' de poético, oriundos do imaginário, do sonho - são verdadeiras bênçãos da ação narrada. Mar me quer funda a magia com o real numa tradição bem africana pautada por uma linguagem coloquial cativante, hipnotizando com a liberdade de amar, quando o sentimento preenche de alguma forma a alma e o corpo e não somente por alguns minutos, mas por muito tempo, quiçá eternamente enquanto dure e permeie continuamente nas lembranças e memórias. Este estudo faz parte do Núcleo de Pesquisa em Identidades e Estudos em Cultura do IFRN ? campus Ipanguaçu.

PALAVRAS-CHAVE: amar, mar, imaginário e emocional.

O VENTO, A PALAVRA E O MAR: A LINGUAGEM DAS FORMAS FLUÍDAS EM ?MAR ME QUER?.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho se trata de um estudo analítico da obra literária "Mar Me Quer", inicialmente discutido em sala de aula, do escritor moçambicano Mia Couto, natural da Beira e considerado como um dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos de língua portuguesa. A escrita tem sido uma paixão constante em sua vida, desde a poesia, na qual se estreou em 1983, com A Raiz de Orvalho, até à escrita jornalística e à prosa de ficção. Do universo de Mia Couto, das viagens pela infância, do contato com o mar, de regressos ao passado se constrói essa narrativa singular. São apresentados nessa obra o imaginário do sonho e o amor quase imperceptível, ao primeiro inalar, de Luarmina e Zeca Perpétuo.
A história se dá, em toda sua extensão, diante do mar. É um conto ?doce? de se ler e que nos põe diante da interpretação dos nossos próprios sentimentos por meio do poder da palavra. Poder esse demonstrado em vários pontos-chave da história, como as insinuações do boêmio Zeca para a Luarmina, que às rebatia muito bem, mas às vezes deixando implícito o verdadeiro sentimento que nutria pelos galanteios do pescador. Um texto marcado pela simplicidade e pelo coloquialismo, que atrai o olhar do leitor desde a primeira ate a última palavra, uma leitura realmente emocionante que vem, acima de qualquer outro ensinamento, mostrar quão próximas estão a palavra e a alma.



TEXTO
"Agora não há outra música senão a das palavras." (SARAMAGO, 1995, p. 290.)
Não se pode falar da literatura africana sem se falar de Mia Couto; A literatura africana de expressão portuguesa nasce de uma situação histórica originada no século XV, época em que os portugueses (cronistas, poetas, historiadores, escritores de viagens, homens de ciências e das grandes literaturas europeias) iniciaram a rota de África, continuando depois pela Ásia, Oceania e América. A literatura africana combate o exotismo sob todas as formas, quer se apresente recuperando narrativas tradicionais, quer utilize ritmos significantes emprestados das culturas populares.
Entender o poder da palavra em Mar Me Quer através da maneira de amar dos personagens Luarmina e Zeca Perpétuo e relacioná-lo à forma particular que cada um tem de expressar seus sentimentos é o raciocínio que será discorrido nesse estudo a partir de então.
"O amor é como o mar, sendo infinito espera ainda em outra água se completar."
COUTO, 2002, p. 24)
A história conta-se numa ingenuidade de linguagem, com expressões a que não falta, por vezes um pingo de malícia, que nos leva, sem darmos conta, a manter, do princípio ao fim, um sorriso nos lábios. Ela regala-nos o espírito e leva-nos nas asas do sonho, esse mesmo sonho que inspirou quem tão bem a escreveu! O mar é o grande cenário desse conto, onde surgem o enigmático Avô Celestiano e os protagonistas deste ?amar? ? Luarmina e Zeca Perpétuo. A beleza desse ambiente é majestosa, imponente e infinita... "Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim" (ANDRESEN, SOPHIA). Essa beleza aumenta quando estamos sós, quando nos encontramos com o próprio íntimo, e tão intimamente a voz da palavra segue o mais secreto bailar dos nossos sonhos. Mia Couto é marcante, e há verdadeiros momentos em sua estória que supõem Luarmina e Zeca como milagres criados por Deus, um para o outro. Das insinuações à entrega, são as águas do mar que inspiram o desenrolar desse amor quase imperceptível, tomado, inicialmente, pelas contínuas críticas de Luarmina à boêmia excessiva do Zeca. A vida simples de pescador, o contato diário com aquelas águas, a necessidade vital de beirar e transpor as barreiras do mar. Talvez exista algo implícito nesses aspectos que se possa relacionar à nossa vida, talvez entender a palavra seja o caminho para transpor as barreiras que nós nos impomos e deixar que o mar de sentimentos intrínseco na nossa alma transborde de amor.

"Aqui a água e o tempo são gêmeos, nascidos do mesmo ventre".(COUTO, 2002, p.53)
A água e o tempo são gêmeos nascidos do mesmo ventre e o tempo herda muitas características do mar, em especial a da ?unicalidade?. Apesar de muitos pensarem o contrário daquele emaranhado azul, a verdade é que cada momento vivido junto ao mar é tão singular quanto qualquer outra coisa. E assim como as ondas do mar, o tempo tem movimentos bem semelhantes de ída e volta, principalmente quando nos remetemos de alguma forma ao nosso passado. O tempo talvez tenha criado um labirinto especial visando o encontro de Luarmina e Zeca, onde eles seguiam seu caminho, entre risos e lágrimas, mas sempre a amar. Alguns sonhos floriam, outros morriam antes de desabrochar, no entanto eles caminhavam sempre em direção ao mar, onde paravam nas noites de inspiração e cantavam olhando ao céu estrelado. É nesse ponto da análise que percebemos o papel que o mar exerceu no encontro dessas duas figuras, sempre entrelaçado àqueles corações, que contando também com a ajuda da boa e sábia alma do Avô Celestiano, uniu-os na tristeza e na alegria, na dor e na saúde e até que o mar os separasse, Amém!
"Faz conta somos verbo e sujeito. Já conheço essa sua gramática... A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina..." (COUTO, 2002, p.26)

Mesmo no ambiente pacato, marcado pela calmaria, em que Zeca vivia aprendeu a responsabilidade de semear os sonhos, mesmo ciente de que nem todos não viessem a florir o importante era acreditar e amar aquilo que se desejava, talvez com a mesma intensidade de um choro de criança para conseguir algo, como já descrevera Leminski em Guerra dentro da Gente (LEMINSKI, 2001). Assim, Zeca Perpétuo, cerrado de paciência até os dentes, dispunha de uma série de táticas, com uma persuasão digna de poucos, para galantear à Luarmina. Frases, aparentemente soltas, que eram criadas à medida que se faziam necessárias ? a espontaneidade da emoção por meio da palavra. Se permita, então, a dedução de que Zeca tinha sua "gramática própria", quando co-relacionamos seu jeito, mais que particular, de utilizar a palavra na busca de que seu sonho de se embrulhar com Luarmina, arrastá-la numa grande onda que os fizesse inexistir aportasse seguro no porto da realização. Sua gramática era de adjetivos cativantes e insinuativos, rimas inteligentes e da suntuosa comparação entre si próprio e seu amor com termos importantíssimos em quaisquer orações: verbo e sujeito. Zeca Perpétuo é o tipo de personagem que sabe como ninguém a poder da palavra no tocante à expressão emocional, visto que apenas precisava da artimanha com a palavra, e isso já se percebeu que tinha de sobra. Sua gramática não se restringe às meigas insinuações de amor à Luarmina, Zeca também a aplicava em sua vida como um todo, sendo um homem persistente, paciente e ponderante, tendo aprendido muito disso em lições do Avô Celestiano, com sábias analogias à figura da mulher, como a que se segue abaixo:

"Mulher é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força perde-se, se não lhe segurarmos bem cai". (COUTO, 2002, p. 40)

Avô Celestiano foi o educador de Zeca, seus pensamentos sábios tornaram Zeca um homem ainda melhor, e só ele soube orientá-lo acerca da malícia, aos olhos do pescador inexistente, em seus comentários, que apesar de tudo, não se pode negar a genialidade das suas palavras, o trecho abaixo comprova bem isso:

"ZECA: Dona Luarmina, o que é isso? Sempre me recusando, parece eu sou o quê? Um rejeitável? A senhora ficou mesmo freira. Um dia, quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer...
LUARMINA: Deixe Zeca. Eu sou velha, só preciso é um ombro.
ZECA: Se abaixe vizinha, e se sente. Lhe dou os dois ombros e mãos o que pedir." (COUTO, 2002, p. 16)

A palavra está disposta em Mar Me Quer de forma versátil, visto que ambos os protagonistas desse conto utilizam a palavra falada em variações que não competem, em geral, a pessoas da classe social a qual pertenciam Zeca e Luarmina. Em certos momentos a simplicidade do vocabulário informal, já em outros um léxico digno de grandes poetas. Se é que eles não os eram e apenas não o sabiam. Vejamos exemplos dessa variação de estilo na fala:

De pensamento, ficar assim pensamentoso.(COUTO, 2002, p.14
Me conte uma antiguidade sua, mas sem subterfugir.(COUTO, 2002, p.29)

Em Mar Me Quer, o ?amar? está sempre ao lado do ?sonhar?, são companheiros eternos que se ajudam na união e na felicidade de Luarmina e Zeca. O primeiro passo é sonhar, desejar e o resto são pura persistência, força de vontade e paciência consigo mesmo e com o mundo. A paciência que Zeca Perpétuo teve, para enfim conseguir a atenção e o amor de Luarmina é um dos aspectos mais doces da obra de Mia. O boêmio personagem que vence as mil e uma defesas criadas pelo espírito feminino que amava.

"- Me deixe sossegada, Zeca. Está uma tarde tão bonita.- Pois não conhece o ditado: mais vale à tarde do que nunca?"(COUTO, 2002, p. 17)


A sabedoria de suas palavras pôde ajudá-lo na busca do amor eterno, e também pôde revirar por dentro a alma dos leitores desse conto. Tudo graças ao amor, à vontade de amar ao falar.

"A vizinha flutuando... como um navio em desenho de criança. E sinto minhas mãos se transformando em lembranças, embaladas em mar de brincar. Posso dar-lhe um nome,minha Dona?"(COUTO. 2002, p.45)

E depois de tantas artimanhas com a palavra e o coração, Zeca Perpétuo tem a resposta que tanto esperava surgir daqueles diálogos com a Luarmina. Ao cair de cama, alegando doença, não pôde visitar sua amada, e o (in) esperado sucedeu-se: Estava lá seu amor, com cheiro de mar para ver-lo. Depois de tantas insinuações e procura da parte dele, agora era a vez dela demonstrar, enfim, o quão apaixonada estava por aquele boêmio que tanto criticava por nada fazer.

"Sabe uma coisa, Zeca: a pessoa pode ter sido acarinhada por mão, por lábio, por corpo, mas nenhuma carícia lhe devolve tanta alma como a lágrima deslizando."(COUTO, 2002, p.65)

E então se faz um convite de dança (in) esperado e mesmo diante da recusa inicial, o encontro desses dois corpos se deu como o encontro das águas fervorosas do mar. Assim é o ápice desse ?amar?, prematuro ao primeiro olhar e tão profundo ao inalar final.


"O que eu quero fazer?Eu quero dançar consigo, Zeca."(COUTO, 2000, p.73)

Mar Me Quer é a obra literária mais indicada àqueles que desejam sentir a essência da literatura no fundo de suas almas. Não é apenas amor ou sonho, tem algo a mais, tem a palavra como aspecto vital para a expressão emocional, e entender essa informação implícita do Mia Couto é o caminho para se ver que a palavra complementa a alma. Não há barreira alguma que impeça a comunicação dela com o nosso espírito.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. COUTO, MIA. Mar me quer. Moçambique, Portugal: Cena Lusófona, 1ª edição, 2000.

2. LEMINSKI, PAULO. Guerra dentro da gente. São Paulo: Scipione, 8ª edição, 2001.