UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS
FLÁVIO JOSÉ DO BOMFIM


O VALOR SIMBÓLICO DA LEITURA NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO




RESUMO: O artigo propõe uma reflexão acerca da formação do leitor e de como esta formação, o acesso ao texto pode estabelecer um processo de articulação com os próprios saberes do indivíduo, imergindo nos seus sentidos mais profundos e repercutindo positivamente no meio social em que vive. O trabalho apresenta o ato de ler como um valor imensurável capaz de despertar uma criticidade propositiva de temas múltiplos na constituição do sujeito, que visualizem a construção de uma sociedade inclusiva, dinâmica em ações e atitudes em busca do bem-comum.

Palavras-chave: Formação do leitor. Leitura significativa. Valores. Teoria literária.


INTRODUÇÃO


Desde os primórdios da humanidade, a comunicação já existia. Os primeiros habitantes em que se tem conhecimento estabeleciam entre si mecanismos variados de entendimento configurados por meio de desenhos, gestos e linguagens. Com o decorrer da História, com a evolução das espécies, deu-se a necessidade de que a comunicação se deslocasse a grandes distâncias. Assim, os seres humanos eram desafiados a descobrirem mecanismos diferenciados de comunicação entre os grupos que surgiam. Ela foi aperfeiçoada e provocada pelas variadas competências mentais do cérebro na relação com o seu entorno, na busca da sobrevivência e perpetuação da espécie. Mais tarde, de forma gradual, desenvolveu-se o encanto de se fazer entender. Inicialmente, o homem que vivia em pequenos grupos, conseguia guardar na memória o nome das pessoas integrantes do seu grupo, a quem pertencia cada rebanho, entre outras informações. Porém, com o crescimento dos grupos, o surgimento de cidades, grandes impérios, tornou-se necessário criar um sistema de comunicação que desse conta da preservação das informações relevantes aos dominadores, os nomes dos súditos e seus impostos. Através de traços combinados e associados entre si, surge a escrita com a finalidade de dar conta das contingências demandadas das crescentes organizações sociais. A escrita surge como forma de subsidiar a transmissão de ideias e pensamentos, através de códigos que representariam a fala. Os assuntos, a partir daí, começaram a serem registrados por escrito. Livros sagrados, leis, obras literárias.
Steven Fischer (2006) faz uma análise deste período histórico considerando que nas relações sociais estabelecidas neste período, as pessoas foram percebendo que as instruções, os cálculos, os acordos estabelecidos verbalmente apenas, poderiam ser facilmente adulterados ou esquecidos. Uma espécie de "testemunha imortal" tornou-se necessária, capaz de recordar os combinados e confirmar os fatos instituídos oralmente; assim a escrita e a leitura se legitimavam com mais força. Walter Ong (1998), no entanto propõe uma análise mais abrangente e menos instrumental da escrita e da leitura considerando que ambas não são apenas meras apêndices da fala, pois o seu movimento transforma tanto a fala quanto o próprio pensamento. Lévi-Strauss endossa este parecer ponderando que "a posse da escrita multiplica fantasticamente a capacidade dos homens para preservar o conhecimento e disseminá-lo" (2005, p. 282). O fato é que o surgimento da escrita representa em si um marco. Seu aparecimento foi tão importante que os historiadores localizam o nascimento da História a partir desse acontecimento.
No artigo "O valor simbólico da leitura", Moacyr Scliar (2004) descreve uma situação curiosa acerca do poder simbólico da escrita e da leitura:

Um filme canadense antigo retrata a chegada dos colonizadores brancos ao Canadá. O encontro entre estes e os indígenas é marcado pelo estranhamento. Em particular, o chefe da tribo, cuja cultura é ágrafa, não entende porque os brancos rabiscam coisas em papel. O comandante do navio então se propõe a demonstrar, de maneira prática, a utilidade da escrita. Mostra um marinheiro que está à distância e diz ao indígena que quer a pistola dele e que o homem vai fornecê-la. Escreve então um bilhete, dizendo "Manda-me tua pistola." e pede que o índio o leve até o marinheiro. Ao receber o papel, este, de imediato, entrega sua pistola. O índio fica assombrado: como o marujo descobriu que o chefe queria a sua pistola, se nada ouviu dele? E então se dá conta que o texto fez a mágica. Podemos imaginar o temor e o respeito com que passou a olhar as letras manuscritas ou impressas no papel. A partir dali elas certamente adquiriram para o chefe, e talvez para a tribo, um valor simbólico. Que, entre parênteses, deve ter ajudado na dominação da região pelos brancos.

Esse preciosismo da utilização da escrita e da leitura para a comunicação nas sociedades organizadas as tornou, com o passar do tempo, imprescindíveis. No passado, muitos saberes foram repassados sem o seu auxílio, porém atualmente é cada vez difícil estabelecer uma inserção social significativa sem o domínio de seus fatores constitutivos mais relevantes. Sua evolução percorreu uma grande trajetória até chegar onde estamos. Os primeiros escritos datam do quarto milênio a.C. Seu cenário principal foi Oriente Médio; na Mesopotâmia, a escrita cuneiforme (caracteres em forma de cunha). Já a escrita hieroglífica dos egípcios incluía desenhos. Mais tarde, o alfabeto surge como representação da escrita. Como competência lingüística de personificação da fala, a escrita e a leitura permitiram o estreitamento dos grupos sociais prevalecentes em seus costumes.
Historicamente, no entanto, é possível identificar a língua escrita como forma de dominação entre os povos. Lévi-Strauss realiza esta ponderação:

"Se quisermos estabelecer correlação entre o aparecimento da escrita e certos traços característicos da civilização, convém procurar em outra direção. O único fenômeno que a acompanhou fielmente foi a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e sua hierarquização em castas e classes. (...) Ela parece favorecer a exploração do homem, antes de iluminá-los".
(2005, p. 283)


A consideração de tais pressupostos e a reflexão acerca de sua relevância faz emergir uma necessidade: é preciso transcender. A palavra ? falada ou escrita ? deve romper com qualquer tentativa de conformidade, com o monopólio da legitimidade e assumir um valor simbólico que vai além da sua significação, podendo, conquistar novos espaços e apontar novas possibilidades de perceber e entender a própria realidade humana; "a escrita alimenta a consciência como nenhuma outra ferramenta" (ONG 1998, p. 98). Nesta óptica, a escrita e a leitura podem fortalecer-se como um instrumento desencadeador da cognição humana, do indivíduo como sujeito social e da sua inserção comunicacional, uma necessidade proeminente da atualidade.
A escrita fundamentalmente apresenta duas características constitutivas. De um lado o seu aspecto utilitário: através registram-se informações que podem informar. De outro, o aspecto simbólico, derivado em parte do primeiro: ler é saber; saber pressupõe poder, principalmente nos tempos contemporâneos, onde a informação é decisiva. Essas concepções são variáveis, ou seja, assumem características simbólicas de caráter religioso, político ou cultural no decorrer do tempo e da História. No entanto, o valor simbólico mais veemente, que deve ser recobrado e aqui retratado como ponto de análise, é o transformador. A escrita informa, emociona, provoca e, sobretudo transforma.
Na vida cotidiana, todos precisam conhecer os caminhos da escrita ? tanto para escrever de forma inteligível quanto para ler com compreensão. A escrita e, conseqüentemente, a leitura implicam em comunicação que promove sentidos e desenvolve subjetividades constitutivas dos sujeitos que por elas transitam. Este valor é imensurável.



A LEITURA E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS

Podemos afirmar que a linguagem estabelecida por meio da escrita é uma das grandes invenções de todos os tempos, que se configurou como um valioso instrumento no avanço e desenvolvimento da humanidade. Sua importância é tamanha, que se tornou um mecanismo de poder; aqueles que detinham a escrita e a leitura se sobrepunham àqueles que as não possuíam. Para fins de uma análise mais qualificada é necessário considerar que apesar da escrita e da leitura estarem plenamente relacionadas, elas são atividades distintas entre si. Steven Fischer (2006) ao fazer a distinção entre os termos define a leitura como uma "antítese da escrita". Afirma ele:
"A leitura e a escrita ativam regiões distintas do cérebro. A escrita é uma habilidade, a leitura, uma aptidão natural. A escrita originou-se de uma elaboração; a leitura desenvolveu-se com a compreensão mais profunda pela humanidade dos recursos latentes da palavra escrita. A história da escrita foi marcada por uma série de influências e refinamentos, ao passo que a história da leitura envolveu estágios sucessivos de amadurecimento social. Escrita é expressão, leitura é impressão. A escrita é pública, a leitura privada. A escrita é limitada: a leitura, infinita. A escrita congela o momento. A leitura é para sempre" (2006, p. 08).

Luiz Marcuschi argumenta que "a leitura sempre foi diferente da escrita. A escrita prioriza o som, uma vez que a palavra falada deve ser transformada ou desmembrada em sinais representativos. A leitura, no entanto, prioriza o significado" (2000, p. 24). Sobre esta ótica torna-se necessário conceituar o termo leitura. Muitos autores o consideram como polissêmico. Em si, a leitura é a capacidade de extrair sentido de símbolos escritos ou impressos, porém o ato de ler é variável, não absoluto. Para Paulo Freire a leitura é retratada como concepção, no sentido do emprego da termologia "leitura de mundo", articulada e refletida numa teia ideológica de significância. Assim a leitura caracteriza-se como uma atividade cognitiva que envolve a participação de um sujeito, que busca no texto a obtenção de significados para compreensão e interpretação de suas mensagens na sua relação com o meio. O célebre lingüística inglês Roy Harris (1986), ao considerar os vários processos de leitura reafirma que "eles devem inevitavelmente se relacionar a finalidades culturais específicas e dependem dos modos contrastantes de interpretação oral institucionalizados por determinada cultura". (2006, p. 11)
Nos tempos atuais é considerado um ato de leitura até mesmo a extração de informações de uma tela eletrônica ou a interpretação de uma imagem no mundo multifacetado da propaganda. Sua definição continuará, por certo, a se expandir no futuro, pois ela avança e acompanha o desenvolvimento da própria humanidade. Arriscando uma conclusão sobre a relação entre polissemia e paráfrase a respeito da leitura, valho-me no percurso da reflexão aqui apresentada do poder simbólico (lingüístico) e imaginário (ideológico) como questões intercambiáveis presentes na constituição de uma prática leitora significativa. Indiscutivelmente a leitura é um dos mais eficientes instrumentos para acesso ao conhecimento e inserção social. Mas onde ela surge¿ Que sentidos produz ou pode produzir¿ Para alentarmos estas reflexões e ponderarmos sobre suas respostas possíveis, é necessário estabelecer uma reflexão mais apurada acerca da leitura e do seu papel formativo, que pode introduzir-se ao sujeito na sua subjetividade constitutiva, não apenas como caráter informativo.
A leitura como experiência é constituída por muitos estudiosos como algo que re-configura o sujeito e o modifica. Jorge Larrosa, numa entrevista concedida a Alfredo Veiga-Neto, discorre sobre a relevância da leitura numa concepção produtiva, que tem, segundo ele, uma profunda relação com a experiência, visto que a realidade se modifica por meio dela.
Afirma ele:
Pensar a leitura como formação implica pensá-la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor: não só com o que o leitor sabe, mas, também, com aquilo que ele é. Tratar-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos. A leitura, portanto, não é só um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real e do eu real. E não se reduz, tampouco, a um meio de se conseguir conhecimento.
(in COSTA 2002, p.134)

O discurso considera o potencial da leitura no seu aspecto formativo e transformador, revelando que o texto pode nos desafiar a encontrar o sentido na nossa própria particularidade. Muitos afirmam que o apreço pela leitura se consolida por meio de uma prática cotidiana que deve ser estimulada desde a infância seja pela escola ou pela própria família. No entanto, mesmo os que obtiveram este estímulo, muitas vezes o desempenham de forma mecânica, sem explorar a gratuidade do saber oportunizada pela leitura nem tampouco os mecanismos de imaginação inerentes a ela. Num mundo imerso em informações aceleradas, acessos ilimitados às mais variadas formas de conhecimento, aprofundamento cultural etc, é possível afirmar que muitas vezes somos apenas meros expectadores do aparato de informações contumazes no nosso cotidiano. O saber que acumulamos não nos transforma, não se torna orgânico. A leitura como experiência formativa pode romper este paradigma e propiciar ao leitor um confrontamento com suas certezas, de modo que o que reste seja um sentido mais plausível e abrangente sobre si mesmo. Este processo, no entanto, requer uma predisposição do leitor diante do que lê de modo que se permita o alcance da mensagem em si mesmo; submeter-se à experiência da leitura transformativa canalizando seus efeitos no encontro com nossas impressões mais pessoais.
Michele Petit nos diz que
"A leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam até então adormecidas. Tal como o belo príncipe do conto de fadas, o autor inclina-se sobre nós, toca-nos de leve com suas palavras e, de quando em quando, uma lembrança escondida se manifesta, uma sensação ou um sentimento que não saberíamos expressar revela-se com uma nitidez surpreendente". (2008, p. 7)
Daí é necessário desenvolver habilidades muitas vezes refinadas para pertencer ao universo dos que leem. Trata-se de um caminho longo para a efetiva compreensão que demanda, dentre outras coisas, de decodificação de signos, interpretação de itens gramaticais, seleção e hierarquização de ideias, absorção e reordenamento das mesmas. Um leitor precisa estar a par dos recursos técnicos e cognitivos de uma leitura produtiva. A leitura não vai se esgotar no momento em que se lê, pelo contrário, este é o princípio de um processo interativo, prolongado nos efeitos produzidos na vida do leitor e no seu convívio social.
O leitor que absorve a experiência do texto pode identificar suas mensagens e estabelecer um processo de articulação com seus próprios saberes, imergindo nos seus sentidos mais profundos. Assim, a leitura é um marco inicial. Um meio não um fim, na formulação da reflexão e do pensamento na elaboração de sentido e na descoberta de novas subjetividades. Um movimento salutar no desenvolvimento da própria inteligência. Assim, a torna-se um processo interativo. Ler com aproveitamento, portanto, é produzir sentido estabelecendo a passagem da leitura de um texto escrito de modo meramente decodificado, ao seu entendimento. Neste gesto, se estabelece a fusão entre as vozes do leitor e escritor na composição de novas e múltiplas significações, permitindo a construção de novas subjetividades: "nessa leitura, o escritor e o leitor constroem-se um ao outro; o leitor desloca a obra do escritor, e o escritor desloca o leitor, às vezes revelando nele um outro, diferente do que acreditava ser" (PETIT 2008, p.37).
Quando manipulada adequadamente, ela torna-se o principal aspecto constituinte do pensamento crítico. Um bom leitor, no entanto, que domina e detém uma reflexão apurada da língua, decodifica não apenas as mensagens do texto, mas as leituras do mundo que o cerca. Petit (2008) continua afirmando que a leitura permite que sejamos atores de nossa própria história, donos de nossos destinos e não apenas meros reprodutores do discurso prevalecente. No jogo do "tabuleiro social" assumimos nossos espaços, saímos de nossas acomodações, dos rótulos estigmatizantes e excludentes e nos enveredemos pelos caminhos da descoberta. Assim, podemos exercer o papel cidadão da língua e fortalecermos o país enquanto nação. Considero que é neste momento que a leitura legitima-se como valor.


LEITURA E VALOR NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO

Para analisarmos a leitura como valor é imperativo conceituarmos este termo, visto que até hoje em dia não há um consenso sobre seu sentido. Nesta abordagem utilizaremos a definição defendida por Werneck que nos diz que "valor é aquilo que, de algum modo, vale para o homem, aquilo de que é carente, aquilo que satisfaz a sua necessidade, que preenche a sua falta". (2003, p.46).
E complementa:
"Para a axiologia, o homem é um ser em estado de incompletude, de imperfeição, um ser que tem consciência da sua carência e que, por isso, continuamente, busca completar-se e perfazer-se. Antes de qualquer definição racional, o ser humano conhece-se a si mesmo como alguém que necessita de algo que o possa completar. Este objeto que pode satisfazê-lo, plenificá-lo, é exatamente o valor." (2003, p. 46)

A inquietação com o ensino da Língua Portuguesa tem sido assunto recorrente nas mais variadas correntes acadêmicas. Muitos teóricos pesquisadores investigam as várias funções da língua e seu real funcionamento. A partir desses estudos, configura-se cada vez mais a ideia de que a língua além de dinâmica, flexível, formativa tem em si, ainda, uma profunda relação com o poder. Assim, vale uma constante consideração sobre o status da língua: como apropriar-se da língua como um elemento revelador na formação do sujeito na construção de sua subjetividade constitutiva e não mais ou apenas como um imperativo do poder conformador e doutrinário?
A leitura apresenta-se agora como um valor imensurável na busca do homem de emancipar-se como sujeito, adquirindo autonomia e assumindo-se como agente transformador de sua história. Ler é constituir-se como sujeito social. O sujeito, ao desempenhar este ato, imerge numa ação de produção de sentidos, que necessariamente vai imputar-lhe inúmeros valores, que muitas vezes podem colaborar para mudanças na própria sociedade. Essa concepção está bem demarcada na obra "O último leitor" de Ricardo Piglia, quando relata no quarto capítulo a relação da leitura com Ernesto Guevara (1). O texto narra parte da trajetória de Che Guevara em sua militância política e sua profunda relação com a leitura; a que se funde com a vida e lhe dá forma e sentido. Muitas vezes, faz-se exaltação à figura do guerrilheiro revolucionário, mas raramente mencionam outros aspectos de sua vida. No texto, o autor busca dar contornos humanos a Guevara, que por meio da leitura sofreu mutações e marcas na sua personalidade, absorvendo um modelo ético, um modo de conduta, uma experiência reveladora: "a leitura funciona como um modelo geral de construção de sentido" (PIGLIA 2006, p. 98).
Por ser um homem de ação, muitas vezes se isolava para a leitura, paixão que remonta à sua infância até sua morte. Ele próprio classifica o ato de ler como uma dependência. Essa ação leitora era uma espécie de aparte entre o ser social e o ser pessoal. Era o momento de repouso e descanso, onde nutria forças para os embates. Guevara tornou-se um ávido leitor. Essa experiência com o livro o acompanhou durante a vida. As imagens dos textos eram aplicadas ao cotidiano, revelando condutas e formas de pensar. Uma simbologia de um novo sujeito, onde ele mesmo aparecia como modelo dessa construção.


(1) Ernesto Rafael Guevara de La Serna, mais conhecido como Che Guevara, foi um famoso revolucionário socialista do século XX. Argentino, nasceu na cidade de Rosário em 14 de junho de 1928. Faleceu em 9 de outubro de 1967, na aldeia de La Higuera (Bolívia).
Durante sua trajetória, houve várias mudanças, ritmos variados, porém o ato de ler se interpunha como ação constante. O leitor sobrevive em Guevara, sob o conflito do ser político e a leitura isolada e reflexiva. O ato de ler, no entanto, impulsiona Guevara a escrever. Ele começa a fazer registros em um diário, onde fala de si e do que lê. Começa então a disseminação dos seus pensamentos por meio deste ato, revelando seu desejo de ser um escritor. As suas viagens configuram a busca de sua identidade por meio da experimentação. Acumulava vivência e livros. Sua marcha revela o interesse de colocar a política como uma ação em movimento, sem lugar fixo, sem territórios.
O autor o apresenta como líder político, um exemplo de uma vida burilada na experiência paralela à figura do leitor em busca da construção de sentidos. Nos momentos finais de vida, uniram-se o Che leitor e o Che político, como uma fusão poética daqueles que estiveram juntos desde o início. A leitura, neste caso, potencializou-se como uma perspectiva de entendimento seja social ou pessoal, algo que ocorre ao leitor. Jorge Larrosa (in COSTA 2002) nos fala a respeito da leitura enquanto formação e sua misteriosa atividade que nos faz ser aquilo que somos, ou seja, a ideia de sermos o que somos está intimamente ligada a uma leitura, que nos afeta, nos transforma. A leitura torna-se nesta perspectiva subsídio do sujeito na construção de si mesmo, extraindo muitas vezes da personagem, a expectativa de sua própria identidade. Essa transformação é provocada pelo que nos transpassa e depende de cada um. É uma experiência singular, diferenciada, individual e subjetiva e pode causar uma poderosa inflexão em cada ser como cidadão, ocasionando, não obstante, uma representação por questões e atitudes externas: "pensar essas experiências significa que, em contato com elas, atendendo àquilo que elas têm a dizer, acolhendo-as naquilo que têm de impensável, o pensamento se libere e se abra à sua própria formação" (in COSTA 2002, p. 159).
Leitura como formação, como experiência e produção de sentidos torna-se um processo interativo e essencial para o engajamento do homem. Por ela podemos construir conceitos alusivos à nossa formação enquanto sujeitos sociais, pois está prenhe de um forte caráter social. No desenvolvimento do ato de ler reconfiguram-se valores, crenças, gostos, que não pertencem somente ao leitor, mas a um contexto sociocultural mais amplo e irrestrito. Ele é produzido pelo autor a partir dos seus significados constituídos pelo seu mundo de significação e é redimensionado pelo leitor, que vai atribuir-lhe significado a partir da relação que mantém com o seu próprio mundo. O leitor ao esgrimir com o texto vai buscar o sentido na sua própria particularidade.
Assim, a literatura é dinâmica, não-estável e interativa. É mediadora de uma prática social, ou seja, motiva e capacita o indivíduo a participar ativamente do meio em que vive. Neste sentido, ela se potencializa como valor, tendo em vista os desafios contemporâneos que se interpõem, principalmente no que concerne ao Sistema Educacional Brasileiro. Não é novidade que o Brasil ainda enfrenta o sério problema do analfabetismo concreto e funcional, tanto de brasileiros que saem da escola e de outros que não tiveram a oportunidade de se apropriarem do saber da leitura e escrita. É fato que neste país há um número significativo de pessoas que não possuem o saber necessário para atender às exigências de uma sociedade letrada e muitas mazelas sociais derivam desta constatação. Muitos avanços poderiam ocorrer a partir de um comprometimento da leitura como um bem cultural. Michele Petit (2008) classifica a ação leitora como alquimia de recepção. No contato com o texto os leitores lhes dão outro significado, interpretam à sua maneira. Essa interpretação é autônoma e vai romper com qualquer tentativa de conformidade ou estreitamento de suas significâncias implícitas. A literatura apresentada, portanto, deve estar a serviço da ampliação cultural dos sujeitos, bem como a construção de sua identidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Comunicar. Produzir sentidos múltiplos. Transformar. A força do verbo está sempre presente como ação propulsora, que não estatifica, mas que nos impele ao movimento, à ventura da busca de nós mesmos. A palavra toma-nos para si, nos conquista, nos alimenta. Os escritores tornam-se verdadeiros operários da palavra procurando disseminar a força que ela contém para o homem se construir enquanto sujeito. Uns mais alentados, outros mais sumários, porém todos envoltos na sua magnitude, sob sua influência. A leitura é a descoberta do ser, os escritores, através de suas inventividades, seus delírios, seus escritos vão descortinando horizontes, sempre tendo a democratização do conhecimento como imperativo; uma necessidade nacional. A reestruturação do ensino brasileiro é uma questão latente em vários círculos, onde a discussão se debruça sobre a formação mais adequada de um sujeito social com habilidades e competências cognitivas mais apuradas na criticidade, na reflexão, onde ainda sejam considerados valores éticos, estéticos, morais e sociais, onde se prepare para a vida, não somente para o mercado de trabalho.
Sob esta perspectiva a leitura, o universo das letras são decisivos na formação, sobretudo docente. Ela poderá potencializar e contextualizar os conhecimentos adquiridos. A tarefa de formar leitores é um instrumento valioso na apropriação do conhecimento e no diálogo com este saber, na elaboração e na constituição do indivíduo como sujeito social. No âmbito educacional, a escola ao desempenhar esta função de mediadora desse processo, permite o trabalho também com o imaginário, um exercício de grande valia do pensamento, uma fuga criativa do mundo: "o livro em geral e a literatura de modo especial emitem vozes mais sutis e menos ressonantes em meio à barafunda dos discursos" (CADERMATORI 2009, p.121). Este trabalho pode até não fazer do aluno um grande leitor, mas o livro não mais o ameaçará. Alguma coisa vai ficar como fator constitutivo tornando o livro amigável, despertando a curiosidade e as categorias criativas do pensamento. Isso pode não acontecer com o grupo todo, mas alguns certamente serão atingidos.
É simplório ainda considerar que a leitura vai mudar o mundo, mas indiscutivelmente vai apontar caminhos. Quando ela acontecer plenamente, fizer parte do ideário pedagógico escolar, do contexto social como um bem cultural, deixa de ser apenas instrumental e passa a ampliar horizontes. A leitura literária propõe isto. Ela é riquíssima, sobretudo a brasileira, pois tem uma profunda relação com os acontecimentos históricos e sociológicos do Brasil, além de estar infestada de poesia e arte. Não se deve desprezar experiências de leitura que fujam dos "cânones" instituídos, no entanto, mas produzir sentidos através deles. Este trabalho vai alargando uma espécie de repertório textual, uma habilidade lingüística-formal, a emersão do imaginário simbólico. O entendimento da língua, das manifestações literárias vão se aproximar do sujeito e da sua própria história, se acomodando num espaço de destaque em sua vida. Uma nação voltada a esta consideração certamente se desenvolverá. Esse sujeito de mundo pode ser fomentado pela educação, pela escola. Um sujeito capaz de passear no seio das mais variadas culturas e que seja capaz de identificar o que essencial a qualquer ser humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CADERMATORI, L. O professor e a literatura. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009
FISCHER, Steven R. História da Leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
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ONG, W. A escrita reestrutura a consciência, in Oralidade e cultura escrita. Campinas/SP, 1998
PETIT, M. Os jovens e a literatura (uma nova perspectiva). São Paulo: Editora 34, 2008
PIGLIA, R. ? Ernesto Guevara, rastros de leitura, in O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
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