1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo abordar importantes pontos acerca da nova modalidade de usucapião recentemente instituída em nosso ordenamento jurídico, tratando mais especificamente no que tange ao elemento culpa no direito civil e sua relação com a modalidade de usucapião familiar.

A usucapião é uma das formas de aquisição de propriedade, podendo ser definida, como cita Venosa (2012, p. 199): “denomina-se usucapião o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficiente prolongada sob determinadas condições”. Sendo assim, podemos concluir que a usucapião é forma originaria de aquisição de propriedade a qual está sujeita a um período determinado de tempo e demais requisitos fixados em lei para se concretizar. Variadas são suas modalidades que se determinam de acordo com o tempo necessário para usucapir, e dentro dessas se encontra a nova modalidade de usucapião familiar.

Com a Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, que trata sobre o projeto Minha Casa, Minha vida, foi introduzida no Código Civil a nova modalidade de usucapião urbana – art. 1240-A, comumente chamada de usucapião familiar.

Instituída assim a nova modalidade, também conhecida como usucapiões especiais urbanas por abandono do lar, sendo este um dos seus requisitos, surgem variados questionamentos e discussões a cerca da mesma, no que pese a sua constitucionalidade, quanto a prazos, metragem, quanto à quebra do vínculo, o abandono do lar e sua relação direta com o retorno da culpa ao Código Civil e com a Emenda Constitucional (EC) 66/2010.

Dessa forma, abordar-se-á neste artigo de forma mais elaborada, como já comentado anteriormente, sobre o abandono do lar e o retorno do elemento culpa ao Código Civil, buscando não só entender tal modalidade como questionar se gera um avanço ou retrocesso ao nosso ordenamento jurídico.

2 USUCAPIÃO: ASPECTOS GERAIS E PESSUPOSTOS

A denominação usucapião vem do latim: capio=tomar e usu=uso, e o próprio sentido da palavra nos remete a “tomar pelo uso”. A usucapião é a forma de aquisição da propriedade (móvel ou imóvel) e de outros direitos reais por meio da posse mansa, pacífica e contínua por um determinado tempo fixado em lei.

Quanto a seus elementos: a posse é mansa quando não há interrupção, ou seja, o legítimo proprietário permaneceu inerte em relação à defesa de sua propriedade pelo prazo estabelecido; é pacífica quando não há emprego de violência ou coação; e é contínua quando não há interrupção. Desse modo, aquele que possuir imóvel como seu, obedecendo às condições da posse mansa, pacífica e contínua, poderá, através de ação judicial, adquirir a propriedade por sentença declarada pelo juiz, e esta sentença deverá ser levada para ciência do Cartório de Registro de Imóveis, para que a propriedade seja oficialmente declarada de novo proprietário.

Há quem defenda que a prescrição aquisitiva é considerada sinônima da usucapião, tendo em vista que a prescrição extingue a pretensão por decurso de tempo, e essa forma de aquisição de propriedade é denominada prescrição aquisitiva porque a aquisição desse direito vem exatamente pelo decurso do tempo. Em contrapartida, usucapião não se confunde com a prescrição aquisitiva, já que esta somente opera a perda do direito de ação, e nunca a aquisição. Tal modo de aquisição tem como objeto bens móveis e imóveis, desde que sejam certos e determinados, exceto os bens públicos.

De acordo com o artigo 79 do Código Civil: “são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”, já no artigo 82 do mesmo Código está disposto que: “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômica”. Sobre os bens públicos, o Código Civil em seu artigo 98 dispõe que estes são “os bens do domínio nacional pertencente às pessoas jurídicas de direito público interno”.

A consumação da usucapião tem como requisitos a coisa hábil ou suscetível de usucapião, a posse, o decurso do tempo, o justo título e a boa-fé, de modo que apenas os três primeiros são requisitos imprescindíveis para todas as espécies de usucapião. O justo título e a boa-fé são necessários apenas na modalidade ordinária. Acerca da coisa hábil ou suscetível de usucapião, afirma-se que em primeiro momento, tudo aquilo que puder ser objeto de propriedade, também poderá ser usucapido. Assim, não podem ser usucapidos: os bens fora do comércio ou inalienáveis, sobre isso Gonçalves (2012, p.313) afirma: “fora do comércio são aquelas coisas que não podem ser objeto de relações jurídicas”, ou seja, não podem ser vendidas, compradas, trocadas, doadas alugadas ou emprestadas. Também não são suscetíveis de usucapião os bens públicos, como já mencionado acima, independente da espécie, quais sejam de uso comum do povo, dominical ou de uso especial.

 Existem discussões doutrinárias acerca dos bens de família, onde a própria lei diz que estes são bens inalienáveis, desse modo, quem defende que estes bens são inalienáveis, consequentemente defende que não podem ser usucapidos. Outra parte da doutrina afirma que se alguém usucapir é porque a família não está preenchendo os requisitos que impossibilitam a usucapião.

Ainda sobre os requisitos da usucapião, a posse é indispensável, pois não basta apenas que o aspirante a novo proprietário se comporte como dono, pois este deverá estar munido de animus domini= animus de dono, ele deve ter intenção de ter a coisa para si, e essa posse deverá ser sem oposição e sem interrupção. Á respeito do tempo, este varia de acordo com a espécie de usucapião e está fixado em lei. Na usucapião extraordinária, este prazo é de 15 anos, salvo se o fim for para moradia ou produção, onde o prazo decairá para 10 anos, já na modalidade especial rural ou pro labore, e na especial urbana ou pro moradia, este prazo é de 5 anos. Se a usucapião for da espécie familiar, o prazo é de 2 anos contados a partir do abandono, e se a espécie for ordinária, o prazo é de 10 anos, sem esquecer da usucapião coletiva que também tem 5 anos como prazo.

Em relação à natureza da sentença de usucapião, há divergências doutrinárias, pois o posicionamento majoritário é que ela seja declaratória, tendo em vista que uma vez preenchidos os requisitos, o possuidor já tem direito a adquirir a propriedade, e a Súmula 237 do STF vem reafirmando tal característica, defendendo que a usucapião pode ser alegada em defesa, assim fica claro que o possuidor já tem o direito. Há ainda, quem defenda que ela seja de natureza constitutiva, pois há apenas uma expectativa de direito, pois este só será efetivo após a sentença.

As causas impeditivas são aquelas que, como o próprio nome já sugere, impedem que os bens sejam usucapidos. Estas causas são a usucapião de bens: entre cônjuges, na constância do matrimônio; entre ascendente e descendente, durante o pátrio poder; entre tutelados e curatelados e seus tutores e curadores, durante a tutela e a curatela; em favor de credor pignoratício, do mandatário, e, em geral, das pessoas que lhe são equiparadas, contra o depositante, o devedor, o mandante, as pessoas representadas, os seus herdeiros, quanto ao direito e obrigações relativas aos bens, aos seus herdeiros, quanto ao direito e obrigações relativas aos bens confiados à sua guarda.

Tratando sobre as principais espécies de usucapião, o artigo 1238 do Código Civil faz referência à modalidade extraordinária, tendo como principais características o prazo de 15 anos, a posse com ânimo de dono, sem oposição, sem interrupção e independente de título e de boa-fé. A usucapião rural, tratada no artigo 1239 do mesmo Código trás como requisitos a posse de 5 anos sem oposição , sem interrupção e com animus domini em área rural de medidas não superiores à 50 hectares, desde que o possível novo dono não possua outro imóvel rural ou urbano, e que a finalidade do terreno seja para moradia ou para produção.

Prosseguindo, a usucapião urbana requer área urbana de até 250 m², 5 anos na posse mansa, pacífica e contínua, e que o novo proprietário não possua outros imóveis em seu nome, além de atender à finalidade de moradia, já a usucapião ordinária, tratada no artigo 1242 do Código Civil é a única espécie de usucapião que exige boa-fé e justo título, 10 anos de posse sem oposição, sem interrupção. No que tange à usucapião coletiva, esta requer área urbana superior a 250 m², população de baixa renda (até 3 salários mínimos ou 5 salários mínimos por família), finalidade de moradia, posse mansa e pacífica de 5 anos, e não possuir outro imóvel. Outra espécie de usucapião relevante é a usucapião familiar, que será tratada nos próximos capítulos do presente trabalho.

3 USUCAPIÃO FAMILIAR

A usucapião familiar é uma modalidade de usucapião surgida em 2011 pela Lei 12.424, que trás consigo diversas questões polêmicas por ser inserida em legislação que não está de acordo com o instituto, tendo em vista que essa espécie de usucapião foi inserida na lei que trata sobre o Projeto Minha Casa Minha Vida.

A consagração normativa do instituto apoia-se em pressupostos específicos, comprovando sua aplicação restrita. A começar pela necessidade de que o parceiro abandonado divida a titularidade do imóvel com o abandonador e continue a residir no bem após o evento – a lei diz “utilizando-o para sua moradia ou de sua família”. Vale dizer, o cônjuge ou companheiro permanece a residir no imóvel do qual detém uma parcela da propriedade e vai, com o transcurso do biênio legal, adquirir a propriedade da fração pertencente ao outro, integralizando o domínio em seu nome. A lei não distingue ente os percentuais que cabem a cada condômino para a eficácia do dispositivo. Por tanto, basta a situação da comunhão para que seja deflagrado o mecanismo ad usucapionem em relação à fração remanescente, qualquer que seja a razão da divisão entre as cotas: meio a meio, 40 a 60%; 20 a 80% etc. (PEREIRA, 2012, p. 130).

Tem grandes semelhanças com a usucapião especial urbana, tanto que há quem a denomine usucapião especial urbana por abandono de lar. Seus principais requisitos são: prazo de 2 anos (o que causou descompasse em diversas áreas, pois tomando como base as demais espécies de usucapião, esta é a que tem lapso temporal notoriamente menor), sem oposição, posse direta, com exclusividade. O imóvel deverá ser urbano, não superior a 250 m², o usucapiente deverá ser ex-cônjuge ou ex-companheiro, que não possua outra propriedade imóvel rural ou urbana, e que utilize a propriedade para moradia sua ou de sua família.

O artigo 1240-A do Código Civil assim dispõe:

Aquele que exercer, por 2 (dois) anos, ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sob imóvel urbano, de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

 Devem ser feitas duas ressalvas na afirmação acima: a primeira é que utilizar o termo posse direta está incorreto, já que este será o próprio proprietário e não a posse decorrente de uma relação de direito real ou pessoal. A segunda ressalva é que o direito aludido no referido artigo não será conferido ao mesmo possuidor por mais de uma vez.

O fato de a usucapião familiar ter sido tratada na lei 12.424/11 trouxe diversas inquietações, principalmente por esse instituto não ter relação direta com a lei, haja vista que o Projeto Minha Casa Minha Vida busca facilitar a habitação da população de baixa renda, e a usucapião familiar não se restringe a essa classe. Outra indagação sobre o referido assunto é a respeito da contagem do prazo, pois há quem defenda que este deverá ser contado mesmo antes da vigência da lei, porém a doutrina majoritária afirma que o prazo de 2 anos só deverá começar a contar após a vigência da lei, sendo portanto, irretroativa.

Outro questionamento pertinente é quanto à dissolução prévia do vínculo, para que o prazo comece a ser contado. Sobre isso, Jatahy (p. 04) afirma:

O questionamento surge porque, de acordo com o art. 197, I, do Código Civil, não corre a prescrição entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal. Pela redação literal do dispositivo legal, a primeira resposta seria que haveria necessidade da prévia dissolução do vínculo, já que ex-cônjuge é aquele de quem se é separado judicialmente ou divorciado. Tal interpretação, contudo, levaria a uma discriminação entre o casamento e a união estável, já que em relação a esta pode ser dissolvida de fato, sem necessidade de decreto judicial. Assim, enquanto ex-companheiro computaria o início do prazo prescricional logo após o abandono do lar por parte do outro convivente, ao ex-cônjuge seria necessário, primeiramente, ajuizar a ação de divórcio. A solução mais justa é exigir o decreto do divórcio para configurar a situação de ex-cônjuge e afastar a comunhão sobre o bem. Porém, o início do prazo prescricional pode ser computador a partir do abandono do lar pelo cônjuge.

3.1 Relação do abandono do lar com a EC 66/10

A Emenda Constitucional 66/2010 deu nova redação ao §6º do art. 226 da Constituição Federal instituindo que: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Até então, para se obter o divórcio era necessário a observância de dois requisitos: ter ocorrido separação judicial há mais de um ano, ou estarem separados de fato por mais de dois anos os ex-cônjuges.

É notável o avanço que esse instituto trouxe ao ordenamento, não só quanto à facilidade de procedimentos como de eficácia jurídica, deixando o Estado de interferir diretamente na decisão de manutenção do casamento. Porém, inevitável é que não haja posicionamentos contrários. Há quem sustente que por ser mantido o verbo “pode” a separação judicial não deixou de existir, outra sustentação é a de que deve persistir a existência de um culpado pela separação, já que este é um requisito para quantificação dos alimentos que está condicionada a quem tiver a “culpa”. Mas o que se conclui, como sustenta Dias (2010), é que:

A verdade é uma só: a única forma de dissolução do casamento é o divórcio, eis que o instituto da separação foi banido - e em boa hora - do sistema jurídico pátrio. Qualquer outra conclusão transformaria a alteração em letra morta.

A nova ordem constitucional veio para atender ao anseio de todos e acabar com uma excrescência que só se manteve durante anos pela histórica resistência à adoção do divórcio. Mas, passados mais de 30 anos nada, absolutamente nada justifica manter uma dupla via para assegurar o direito à felicidade, que nem sempre está na manutenção coacta de um casamento já roto.

É nesse contexto que se cabe questionar se a Lei nº 12.424 trouxe mais problemas do que acertos, já que ao se falar de abandono do lar tem-se, supostamente, a volta do elemento culpa, extinto pela EC 66/10.

Há quem defenda que tal requisito, abandono do lar, trás de volta o elemento culpa pelo fim da sociedade conjugal. Porém, existe entendimento contrário, tendo em vista que o “abandono do lar” tratado na usucapião familiar não possui o mesmo sentido no Direito de Família.

Para aqueles que entendem que a expressão abandono do lar não enseja a volta da discussão em relação à culpa, informam que tal requisito se refere a separação de fato, logo não há retrocesso, uma vez que a emenda constitucional 66/10, colocou fim a separação de fato, bem como, encerrou a discussão da culpa pela separação mencionada. (GOULART e LAPA, 2013, p. 02).

Sendo assim, há uma relação direta entre o abandono do lar e a EC 66/10, já que hoje na doutrina em torno delas que surge tamanha discussão diante da usucapião familiar, de forma, a saber, se houve ou não um avanço com a instituição dessa modalidade de usucapião ou se essa não só trouxe um retrocesso ao Direito Civil, como pode ser considerada inconstitucional.

Mas o que exatamente seria o abandono do lar? Variados questionamentos nos surgem, o que nos leva a mais dúvidas quanto ao que seja o abandono do lar e de que forma isso pode ser benéfico para os envolvidos na usucapião, como sucinta Dias (2011):

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