O UNIVERSO IMARGINÁRIO MARANHENSE E SUA PRESENÇA NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: lendas de Ana Jansen
Izabel Cristina Pinto

"A tradição é a alma do povo. O povo sem tradição é como árvore de raiz doente. Quando a raiz da árvore está doente, suas folhas murcham e caem, os ramos apodrecem e a árvore morre. A Educação terá que subir da raiz, começar de baixo, da base e através da escola de primeiros e segundo graus ou mesmo do jardim de infância e do pré-primário" (Megale, 2001).

RESUMO: Uma leitura centrada na figura de Ana Jansen. Um estudo histórico biográfico, sobre sua influência no meio social e político do Maranhão no século XIX, como mulher a frente do seu tempo, bem como a repercussão de sua personalidade na memória e no imaginário maranhense em narrativas que foram ganhando status de lendas. Este trabalho colabora para enriquecer a cultura, na qual se inclui Donana, exemplo de grande personalidade em São Luís (MA), e como suas lendas têm uma importante presença na literatura infanto-juvenil.
PALAVRAS-CHAVES: Cultura. Lenda. Ana Jansen.

ABSTRACT: A reading centered on the figure of Anne Jansen biographical and a historical study on its influence in the social and political development of Maranhão in the nineteenth century, as a woman ahead of her time, as well as the impact of his personality on memory and imagination in Maranhão narratives that were gaining status legends. This work contributes to the enrichment of culture, which includes Donana, an example of great characters in São Luís (MA), and how their legends have an important presence in front of children's literature.
KEY WORDS: Culture. Legend. Ana Jansen.

1 INTRODUÇÃO
Desde os primórdios da humanidade, contar histórias é uma atividade privilegiada na transmissão de conhecimentos e valores humanos. Essa atividade tão simples, mas tão fundamental, pode tornar-se uma rotina banal ao representar um momento de excepcional importância na educação infanto-juvenil. O estudo e a discussão em torno da adequação e da validade das narrativas lendárias especialmente para crianças, vêm perdurando por gerações e gerações de pais, professores, psicólogos, orientadores educacionais, pedagógicos, do povo em geral.
Os acontecimentos objetivos da vida da humanidade são a nossa história. Os acontecimentos subjetivos, as vivências interiores criaram as estórias. A história fala-nos dos acontecimentos conhecidos da realidade externa, do desenrolar dos fatos que foram sendo registrados nas comunidades e que explicam, em parte, como se efetivaram as realizações culturais dos grupos humanos, como se estabeleceram os grupos étnicos, como se definiram as nações. As estórias falam-nos da realidade interior na construção das nossas culturas, de como se constituíram as estruturas psicológicas das pessoas e dos grupos humanos.
As histórias de ficção, e muito especialmente as narrativas que vêm do folclore, os mitos, as lendas, os contos de fada, apresentam-se como a maneira mais significativa que a humanidade encontrou para expressar aquelas experiências que não encontram condições de se explicar no esquema lógico-formal da narrativa intencionalmente objetiva. A ficção objetiva os fatos e as verdades que não podem ser expressos pela razão, que não são identificados pela lógica. E é por isso que as histórias são tão temidas, e é também por isso que são tão importantes.
As lendas são narrativas simbólicas simples, primitivas, capazes de transmitir experiências subjetivas complexas e vivências emocionais delicadas às pessoas mais ingênuas e às crianças. Incluídas, hoje, no acervo básico da literatura infanto-juvenil, pois as lendas são as formas mais primitivas de sua cultura, no folclore. Deve-se considerar que lenda não significa mentira, e nem verdade absoluta, o que pode e deve-se deduzir é que uma história para ser criada, defendida e o mais importante, sobreviver na memória das pessoas, ela deve ter, no mínimo, um pouco de fatos verídicos.
Muitos historiadores, pesquisadores, folcloristas, e outros profissionais que estudam Sociedades, tendem a afirmar que, lendas são apenas frutos do imaginário popular, porém sabe-se que as lendas, em muitos povos, são "os livros na memória dos mais sábios". Dentre as muitas lendas que permeiam o folclore maranhense destaca-se a de Ana Joaquina Jansen Pereira, que é o objeto de estudo deste trabalho.
Ela, que, em vida, foi possuidora de um tino comercial notável e de causar inveja, multiplicou a fortuna do marido coronel Isidoro, com quem teve quatro filhos. Com a morte do coronel, Ana, então, com 38 anos, transformou-se na poderosa "Donana, a rainha do Maranhão". Firmou-se como uma das maiores produtoras de algodão e cana-de-açúcar do Império, além de possuir o maior contingente de negros do Estado. Era voz corrente, que Donana Jansen como era comumente chamada cometia as mais bárbaras atrocidades contra seus numerosos escravos, os quais submetia a toda sorte de suplícios e torturas em sessões que, não raro, terminavam com a morte.
Na elaboração deste artigo, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, em livros, artigos científicos, textos de internet, seguindo-se a análise dos resultados e em seguida elaboração deste trabalho. Enfim, esta pesquisa, visa dissertar sobre a lenda de uma das mulheres mais influentes do Maranhão no século XIX, identificando a riqueza imaginativa desses contos, bem como conhecer a biografia de Ana Jansen, analisando sua importante posição no contexto político e social da época, e valorizar essas lendas como um aspecto da cultura maranhense e como fator que contribui com a Literatura infanto-juvenil, na tentativa de se perpetuar cada vez mais essa tradição folclórica.

2 BIOGRAFIA DE ANA JANSEN
Descendente da nobreza européia, Ana Augusta Jansen Ferreira, nasceu em 1787, teve uma juventude sofrida. Mãe solteira, lutou para manter-se e aos seus filhos pequenos. Sua situação melhorou aos poucos, depois que se tornou amante do coronel Izidoro Rodrigues Pereira, o homem mais rico da Província. Esse relacionamento escuso transformou Ana Jansen num alvo fácil para a sociedade moralista da época, ou seja, do século XIX. Izidoro assumiu oficialmente a relação com Ana depois da morte de sua esposa, dona Vicência. O casal permaneceu junto, por quinze anos, até a morte de Izidoro.
O principal motor psicológico da personagem Ana Jansen é o desejo de resgatar o nome e o prestígio de sua família, achincalhado depois da falência de seu avô, Cornélio Jansen Müller. Após a morte de Izidoro, Ana dá um largo passo em direção a esse sonho, tornando-se rica, independente e poderosa. Ela assume a fazenda Santo Antônio, propriedade do falecido coronel e, logo, consegue triplicar a fortuna herdada.
Perseverante e ambiciosa, Ana transformou o dinheiro em poder, assumindo a liderança política da cidade e reativando o esfacelado partido liberal Bem-te-Vi. Cada vez mais, era mal falada pelas mulheres maranhenses e odiada pelos inimigos políticos, ressaltando-se sua rivalidade com o Comendador Meireles, líder do partido conservador.
Como demonstra Montello (1985), em trecho de sua obra quando relata uma das mais famosas "brigas" de Donana com seu inimigo Meireles.
Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com a cara da velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só ela os possuía.
Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros:
- De quem vocês são escravos?
- De Donana Jansen
Um cheiro insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça.
- E esse aí? ? quis saber Damião.
- Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra tomar satisfação.
E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro:
- Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra se coçar. Ora se tem! (MONTELLO, 1985. p. 11-20)

Seu temperamento forte e sua capacidade de liderança alcançaram a corte de D. Pedro II e ela passou a ser chamada, informalmente, de "Rainha do Maranhão". Depois da morte de Izidoro, Ana se tornou amante do Desembargador Francisco Vieira de Melo, com quem tem mais quatro filhos.
Mais tarde, já aos sessenta anos, casou-se pela segunda vez com o comerciante paraense Antônio Xavier. Depois de morta, Ana teve sua memória maculada pelos inimigos que a transformaram em uma alma penada, em uma bruxa maldita, que percorre as ruas de São Luís, puxando um cortejo de escravos mutilados. Ela morreu em 1869 aos 82 anos.

2.1 Posição de Ana Jansen no cenário político e social de São Luís

Em 1682, criou-se no Maranhão a Companhia do Comércio do Maranhão, cuja finalidade seria a de introduzir, naquela região, cerca de quinhentos escravos a cada ano, vendendo-os a cem mil reis cada um, bem como a de exercer o monopólio dos gêneros alimentícios. Mas a Companhia, não só deixou de cumprir o compromisso com relação aos escravos, como também vendia mercadorias de péssima qualidade a preços elevados, o que ocasionou um levante popular chefiado por Manuel Beckman, o Bequimão, colono influente e rico proprietário que, atraiçoado por um sobrinho, acabou sendo preso, julgado sumariamente e executado. Subindo ao patíbulo, esse português de nascimento declarou apenas que morria contente pelo povo maranhense.
Tal época, propiciou a formação de grandes fortunas no Estado, administradas com mão de ferro pelos que as possuíam. Entre esses ricaços de São Luis encontrava-se Ana Joaquina Jânsen Pereira, que era uma comerciante poderosa e que, por isso mesmo, exercia forte influência na vida política, administrativa e social da cidade. Sobre o poder de Ana Jansen Couto (2007) afirma que, (...) Para se perceber que a alusão das ?oligarquias? no Maranhão não é nova, basta uma breve leitura da historia do Estado (...) ? aponta-se sempre períodos de mando de uma pessoa ou grupo. Exemplo disso é a época de influência política no Maranhão da temida Ana Jansen Leite, a hoje mais lendária do que popular Ana Jansen, que ainda na época do Império, ficou conhecida tanto por sua personalidade forte, e as violenta, quanto pelo seu poder sobre as coisas políticas do Estado. (COUTO, 2007. p 15)
Ribeiro (2000) conta em seu romance, a história de uma lutadora arrojada, que nascida rica. Ficou na miséria, mas em seu orgulho e força, acabou se transformando na maior líder política do Partido Liberal, sendo considerada, muitas vezes, como um inimigo inexorável (RIBEIRO, 2000. p. 14)
Santos (1986) afirma ainda que, nada era feito na capital sem a "ordem do sobrado" em que residia a poderosa Ana Jansen e que, no palacete, não se fechava as portas para as disputas políticas e para intrigas pessoais. A sua influência era tanta que ela era consultada para qualquer assunto: candidaturas de senadores, deputados e conselheiros municipais, escolhas e demissões de funcionários públicos, remoções e derrubadas de magistrados, e tais audiências ? na Casa Nobre ? erma sempre dirigidas pela combativa e astuta matrona (SANTOS, 1986. p. 24)
O nome dessa senhora era pronunciado não com respeito, mas com evidentes sinais de medo ou pavor.

3 LENDAS DE ANA JANSEN
Ana Jansen incomodou e despertou inveja em muitos, sendo ela uma das pessoas mais ricas do Maranhão. Mulher que exercia forte influência na vida política, administrativa e social na cidade. Muitos homens influentes, na sociedade maranhense, não aceitavam uma mulher ter tanto poder. Nicásio (2003) diz que se hoje uma mulher com domínio político ainda incomoda, imagine no começo do século XIX? (...) Na realidade Donana, tinha uma postura de vanguarda, era independente, muito rica e mãe solteira, o que causou o ciúme de muitos políticos, comerciantes, jornalistas e fazendeiros locais. (NICÁSIO, 2003. p. 20)
Logo, a fama de má e impiedosa expandiu-se, como forma de repúdio da elite masculina da época, que tinha, como objetivo, denegrir a imagem de Ana Jansen. Sobre ela, dizia-se, muitas vezes, que era perversa ao extremo e que submetia seus escravos a torturas muitas vezes fatais. Após sua morte, várias estórias se perpetuaram, e assim nasceram as lendas sobre Ana Jansen. Porém, como definir uma lenda?
Lenda é uma narrativa popular inspirada em fatos históricos, transformados pela imaginação ou pela tradição. Seus heróis são sempre homens ou mulheres consagrados na história de um país, de uma cidade, ou nas diversas religiões. Elas estão sempre ligadas ao tempo e ao espaço e geralmente se refere a fatos reais, em torno dos quais a fantasia cria uma série de coisas irreais e até mesmo inverossímeis (MEGALE, 1999. p. 50)
As lendas são transmitidas de geração para geração. Não podem ser comprovadas cientificamente, pois são fruto da imaginação das pessoas que as criaram e são classificadas por regiões da provável origem. Desta forma, o conceito de lenda contempla o folclore que significa, basicamente, sabedora popular.
Fatos folclóricos são as maneiras de pensar, agir e sentir de um povo. Quase sempre são transmitidos oralmente e pela imitação. "A lenda de Ana Jansen é a mais terrível de todas que o povo desta cidade conhece" (MARQUES, 2006). As lendas sobre esta imponente senhora percorrem pelo imaginário dos maranhenses, e integram o folclore local. Vários autores, entre eles, Marques (2006) e Ribeiro (2000) contribuíram com a cultura, explorando o folclore voltado à figura enigmática de Ana Jansen, transmitida a partir de suas obras infanto-juvenis.
Muito comentada pelo povo é a famosa lenda da Carruagem de Donana. Anos após sua morte, os moradores da Praia Grande, onde ficava o casarão que a temida senhora habitara, passaram a comentar que, nas noites de sextas-feiras, principalmente nas mais escuras, uma carruagem puxada por parelhas de cavalos brancos sem cabeça, guiados por uma caveira de escravo também decapitado, desfilava em desabalada carreira pelas ruas de São Luis, conduzindo, em seu interior, o fantasma da comerciante, que assim pagava pelos pecados, desmandos e atrocidades que cometera em vida e para os quais não encontrara perdão.
Revela a lenda que, se algum infeliz retardatário tiver a desventura de encontrar-se com a carruagem de Ana Jansen, pelas ruas de São Luis, deverá, incontinenti, rezar uma oração pedindo que a alma da maligna criatura seja salva. Caso contrário, receberá, ao deitar-se, uma vela de cera entregue pelo fantasma e, quando o dia amanhecer, esta pequena peça terá se transformado em um osso humano descarnado.
No site oficial maranhense (www.turismo.ma.gov.br) a lenda de Ana Jansen e sua carruagem encantada e descrita da seguinte forma:
É talvez a lenda mais popular de São Luís. Reza que Ana Jansen, mulher rica, poderosa e, segundo alguns, muito malvada com seus escravos, teria sido condenada a pagar seus pecados vagando eternamente pelas ruas da cidade numa carruagem encantada. O coche maldito parte do cemitério do Gavião, em noites de quinta pra sexta-feira, e ai de quem encontrá-lo pelo caminho. Ao incauto, Ana Jansen oferece uma vela acesa que, na manhã seguinte, estará transformada em osso de defunto. Um escravo sem cabeça conduz a carruagem, puxada por cavalos também decapitados.
Informações semelhantes podem ser encontradas em www.brazilonboard.com, site da BrazilOnBoard. Nele, o assunto é abordado da seguinte forma:
A lenda é a mais popular de São Luís. Conta o que aconteceu com a mulher mais influente da cidade no século XIX. Rica e bonita, Ana Jansen era proprietária de terras e dona de muitos escravos. Porém, ela tratava mal todos aqueles que a cercavam e era especialmente cruel com seus escravos. Quando morreu, foi condenada a pagar pelas maldades que cometeu vagando pelo mundo. Nas noites escuras de sexta-feira, uma carruagem sai do cemitério puxada por cavalos sem cabeça. É a carruagem de Ana Jansen, que segue pelas ruas ao som dos rangidos de parafusos e dos gritos dos escravos que sofreram por sua causa. Quem cruza seu caminho é amaldiçoado. Ana Jansen entrega uma vela para a pessoa, que vira um esqueleto no dia seguinte.

Por sua vez, o jornal Folha de São Paulo, em 15 de março de 2004, publicou matéria intitulada "Carruagem e serpente povoam imaginação em São Luís", que diz em certo trecho:
(...) muito popular na ilha encantada é a da carruagem assombrada de Ana Jansen, puxada por cavalos com chamas no lugar das cabeças e guiada por um esqueleto. No interior do veículo, estaria o fantasma de Jansen, rica comerciante que ficou famosa pelas atrocidades que cometia contra seus escravos. Segundo a lenda, a tal carruagem assombrada ainda anda pelas ruas do centro histórico, condenada a vagar assim pela eternidade em conseqüência das maldades de Ana Jansen.
De acordo com o blog www.nucleoatmosfera.blogspot.com do Núcleo Atmosfera de Dança e Teatro, lê-se que:
Em dias de sextas-feiras, à noite sai uma procissão do cemitério do Gavião. São escravos sacrificados por Donana Jansen, rezando e pedindo castigo a culpada. Percorrem essa procissão as principais ruas de São Luís, com velas acessas, e regressa depois ao lugar santo. Dizem ainda, os canoeiros que percorrem as imediações do Sítio Piranhengas, que o movimento das ondas em forma de redemoinhos, nada mais é que as almas dos escravos que Ana Jansen mandou afogar.
Na obra "Quem tem medo de Ana Jansen", de Marques (2006), um personagem menino de 10 anos, pede a sua avó que conte as lendas de Ana Jansen, que mexem com o imaginário de qualquer adulto e, principalmente com de uma criança. No livro, a avó do menino narra a estória da carruagem da seguinte forma:
Havia um homem ? a avó continuou ? que para todo mundo falava não acreditar na lenda de Ana Jansen. E, para os que o aconselhava a não sair altas horas ele apenas dava um risinho debochado. Uma noite, ao voltar para casa depois de uma bela farra, procurava um jeito de acender seu charuto. Mas, as ruas estavam desertas, e todas as casas fechadas. Foi então que ao seu lado parou silenciosamente, uma enorme carruagem. E de uma das janelas acortinadas surgiu, segurando uma vela, a mão de uma mulher que não mostrava o rosto. - ?Aceita um foguinho, filho?? ? perguntou a voz. ?Obrigado madame? ? o homem respondeu. Pela manhã, o que havia no lugar da vela? ? um osso de defunto. (MARQUES, 2006.)

De fato, em torno da vida e morte de Ana Jansen, giram várias lendas, que perpetuaram-se pelas ruas, passando por várias gerações, uma vez que esses contos já existem, há mais de 100 anos. Percebe-se que a lenda da carruagem possui sutis modificações, como é comum em lendas folclóricas.

4 O PAPEL DAS LENDAS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
O aproveitamento do folclore, na escola primária, tanto tem caráter formativo, devido a sua importância pedagógica, no que tange a valorização do seu aspecto científico, estético e comunitário. Ao preservarem a identidade local, algumas lendas podem ser consideradas verdadeiras obras de arte, lembrando sempre que seus enredos falam de sentimentos comuns a todos nós, como: ódio, inveja, ciúme, ambição, rejeição e frustração, que só podem ser compreendidos e vivenciados pela criança, através das emoções e da fantasia.
Certas narrativas funcionam como instrumento para a descoberta desses sentimentos dentro da criança (ou até mesmo de adultos), pois as mesmas são capazes de nos envolver em seus enredos, de nos instigar a mente e comover-nos com a sorte de seus personagens. Causam impactos no psiquismo, porque tratam das experiências cotidianas, permitindo que nos identifiquemos com as dificuldades ou alegrias de seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em suma, a condição humana frente às provações da vida.
Acredita-se, pois, que a literatura infantil seja importante na formação crítica e reflexiva do sujeito. Por isso, mais do que estar a serviço do hábito da leitura é preciso compreender a literatura infantil como veículo de formação intelectual do sujeito, portanto como promotora de conhecimento crítico e reflexivo sobre o mundo interno e externo da criança.
A literatura (infantil) destina-se também a jovens e adultos. É comum um adulto retornar à leitura que o marcou na infância e deixou um sentimento de prazer. Ele volta ao livro infantil, sequioso por "recuperar" aquele primeiro momento: o do prazer e de magia exercida despertada, pelos textos lidos naquela fase da vida. E através do incentivo nas escolas de base, por meio da literatura infantil-juvenil, relacionada com o ensino sistemático sobre folclore e lendas locais, pode-se fertilizar o sentimento cívico e patriótico, resultando numa consciência cultural imensurável. Conforme diz Reis (2008) as lendas
são parte importantíssimas do folclore de um povo. Composto não tão somente de suas canções, da história escrita e oral, das prosas e versos dos folguedos e autos, das festas, das tradições, dos usos, das crenças, das superstições, e de tudo mais, configura-se no conjunto harmônico da Cultura Popular. Assim, é de se afirmar que a lenda e o folclore se complementam porque estão eternamente interligadas. (REIS, 2008. p. 27)
Desta forma, as lendas exercem uma influência muito benéfica na formação da personalidade porque, através da assimilação dos conteúdos da estória, as crianças aprendem a conhecer a história local, a valorizar os personagens de sua terra, conhecendo as diversas faces do cotidiano local. Isso porque, durante o desenrolar da trama, a criança se identifica com as personagens e "vive" o drama que ali é apresentado de uma forma geralmente simples, porém impactante. Esse aprendizado é captado pela criança de uma forma intuitiva por estarem os elementos sempre carregados de simbolismo tornando-se muito mais abrangente do que seria possível se fosse feito pela compreensão meramente intelectual.
Para que uma estória, realmente prenda a atenção da criança deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas, para enriquecer sua vida (da criança), deve estimular-lhe a imaginação, ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções, além de harmonizar-se com suas ansiedades e aspirações, reconhecer, plenamente, suas dificuldades. Ao mesmo tempo, deve sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Acredita-se que o efeito integrador que os contos e lendas têm sobre a personalidade seja o fator responsável pelo fato de terem resistido à passagem do tempo e terem se universalizado.
A criança, à medida que se desenvolve, aprende, passo a passo, a se entender melhor e, com isso, torna-se mais capaz de compreender os outros e o mundo ao redor. Ela é uma grande fabuladora de mitos e isso esclarece por que a sua mente e a sua forma de perceber, intuitivamente, o mundo combinam tão bem com a literatura. Nesse sentido, a leitura literária infanto-juvenil incentiva a busca da identidade e sua interação com a realidade.
Daí porque se define o gênero como aquele que, enquanto diverte, oferece esclarecimentos sobre a própria criança, favorecendo o desenvolvimento da sua personalidade. Megale (1999) faz uma reflexão sobre isso:
O professor de primeiro e segundo graus deve ser instruído no assunto, de modo a aproveitar o folclore na sala de aula ou em atividade extracurricular. O folclore é o carro chefe dos demais segmentos culturais, daí sua elevada importância pedagógica. O mundo do folclore é atraente, rico e variado, por isso constitui uma fonte inesgotável de motivação didática. (MEGALE, 1999. p. 62)
Ainda de acordo com Megale (1999), uma das principais tarefas do educador que atua no ensino fundamental é aperfeiçoar e ampliar a capacidade linguística do educando, aspecto decisivo para o seu bom desempenho em todas as áreas do conhecimento. Por essa razão, a presença do gênero literário, na agenda escolar, desde que respeitado o seu caráter artístico, pode ser apontado como excelente auxiliar do professor.
E extremamente pragmática essa função pedagógica que tem em vista uma interferência sobre o universo do usuário, através do livro infantil, da ação de sua linguagem, servindo-se da força material que palavras e imagens possuem, como signos que são, de atuar sobre a mente daquele que as usa. Em suma, deve, de uma só vez, relacionar-se com todos os aspectos da personalidade da criança e isso sem nunca menosprezá-la, buscando dar inteiro crédito a seus predicamentos e, simultaneamente, promover a confiança nela mesma e no seu futuro.
"Há uma intrínseca relação entre literatura infantil e a escola, constatada em grande parte dos textos destinados à infância. Os aspectos lúdicos, que deveriam conduzir o processo de amadurecimento infantil, através da literatura, dão espaço ao caráter pedagógico, educativo, associando a arte a mecanismo de controle da criança. Isso vem a comprometer, justamente, a formação do leitor, que acaba não encarando o livro como fonte de prazer, de entretenimento, afastando-se da leitura. Por isso, cabe à escola respeitar o papel da literatura como categoria artística, atrelada à essência libertária do ser humano". (ZILBERMAN, 1995. p. 42)
As relações entre literatura e escola possuem aspectos comuns e divergentes. Comuns, pois as duas são de natureza formativa; e, divergente, pois a escola busca transformar a realidade viva e sintetizá-la nas disciplinas. Nesse processo de síntese, interrompem-se os vínculos com a vida atual. Já a literatura infantil sintetiza, por meio dos recursos de ficção, uma realidade que tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive cotidianamente. Assim, podemos ver o sentido pedagógico atribuído à literatura infantil, pois visa estimular o exercício da mente e o despertar da criatividade. Além de ser um objeto para que a criança reflita sua própria condição pessoal e a imagem projetada nela pelo adulto e a sociedade em que vive.
Um dos lendários mais divulgados no Maranhão versa sobre Ana Jansen e o populário descreve as históricas maldades da senhora dona de escravos. Todas as versões trazem o enredo repleto de atos maléficos, praticados pela mulher que dominou e teve poder, por décadas no Estado, principalmente em São Luís. Os escravos que caíam em suas mãos tinham sua sorte perdida e eram severamente maltratados.
Falar de literatura infanto-juvenil é, sem dúvida, falar sobre a imaginação. As lendas de Ana Jansen fazem parte do imaginário maranhense. Logo, essas estórias são importantes peças para a educação e têm contribuído como dito, na formação da personalidade e no desenvolvimento da imaginação. Ao contar sobre a Carruagem de Donana, relata-se as maldades da senhora que, em vida era cruel e, por isso, estaria sendo castigada a vagar como alma sem perdão. Assim, inconscientemente, e até mesmo conscientemente, o educador passa a mensagem para criança e/ou adolescente, que ela precisa adquirir um caráter bondoso e prestativo, para que não seja castigado.
Ressalta-se ainda, que, para dominar os problemas psicológicos do crescimento, superar decepções narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar dependências infantis, obter um sentimento de individualidade e de autovalorização, e um sentido de obrigação moral, a criança/adolescente necessita entender o que está se passando dentro de seu inconsciente. "Ela pode atingir essa compreensão e, com isto, a habilidade de lidar com as coisas, não através da compreensão racional da natureza e conteúdo de seu inconsciente, mas familiarizando-se com ele, através de devaneios prolongados, ruminando, reorganizando e fantasiando sobre elementos adequados da estória em resposta a pressões inconscientes, o que capacita a lidar com este conteúdo". (BETTELHEIM, 1980, p.16)
O ensino das lendas, do folclore, tem um valor inigualável, conquanto ofereça novas dimensões à imaginação da criança, que esta não poderia descobrir, verdadeiramente, por si só. Ainda mais importante: a forma e estrutura das lendas, dos mitos, sugerem imagens com as quais a criança pode estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As lendas de Ana Jansen impressionam porque suas histórias e/ou estórias são instigantes. Não há como alcançar completamente seu sentido em termos puramente intelectuais, pois que estas nos despertam a percepção intuitiva, a fantasia irracional, a ponto de permitir que a imagem de cavalos decapitados, que são conduzidos por um escravo igualmente mutilado, que levam uma grande carruagem, onde se encontra o fantasma de Ana Jansen, condenada a pagar por seus pecados cometidos em vida e vagar pelas ruas de São Luís, entregando velas a desafortunados.
Justamente pelo inverossímil que expõe, a lenda de Ana Jansen provoca uma reviravolta no mundo psíquico, que estimula e aguça na tentativa de compreendê-la. E não há como explicá-la pelos padrões da razão metódica. O significado desses contos está guardado na totalidade de seu conjunto, perpassado pelos fios invisíveis de sua trama narrativa. Diante desse mistério, muitas formas de abordá-lo são possíveis e igualmente válidas, posto que acrescentem luz à sua compreensão. Desta maneira, contos lendários servem como importantes ferramentas para literatura infanto-juvenil, pois auxiliam no desenvolvimento da imaginação, pois contribuem muito na formação da personalidade, ajudam as crianças/adolescentes a entenderem um pouco melhor o mundo que as cercam.
Pode-se dizer que a Literatura Infanto-Juvenil é o resultado da interação entre intenção pedagógica do texto ficcional, que estimula o aprendizado e sua intenção lúdica que, por sua vez, estimula a criatividade de uma forma geral. Tudo, evidentemente, mediado pela natureza estética da literatura que, no limite, fundamenta a própria concepção do que seja a arte: a estética acaba sendo, neste sentido, o princípio e fim de toda atividade artística.
Apesar disso ou, sobretudo quando se trata da Literatura Infanto-Juvenil, por isso mesmo, outros aspectos relacionados a essa manifestação artística agregam valores diversos à Literatura Infanto-Juvenil, tornando-a ainda mais adequada à criança e ao jovem e desempenhando imponderável papel no seu processo de formação.
Enfim, se no processo de ensino se desse uma atenção especial ao emocional que existe em cada uma das crianças, este mundo seria inegavelmente, melhor.



REFERÊNCIAS
BETTLLHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COUTO, Carlos Agostinho Almeida de Macedo. Estado, mídia, e oligarquia: poder público e meios de comunicação como suporte de projeto político para o Maranhão / Carlos Agostinho Almeida de Macedo Couto ? Tese (Doutorado em Políticas Públicas) ? Universiade Federal do Maranhão, São Luís, 2007.

MARQUES, Wilson. Quem tem medo de Ana Jansen? / Wilson Marques ? São Luís: 2006.

MEGALE, Nilza Botelho. Folclore Brasileiro. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís: romance. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Cap. 1. p. 11-20

NICÁSIO, Beto. A lenda da Carruagem Encantada de Ana Jansen. ? Record, 2000.

REIS, José Ribamar Sousa dos. Amostra do populário maranhense: lendas, crenças e outras histórias da tradição oral / José de Ribamar Sousa dos Reis. ? São Luís, 2008.

REVISTA CLAUDIA ? ESPECIAL. São Paulo: Abril, 2000. p.15

RIBEIRO, Ana. Ana Jansen (romance). Editora Record, 2000.
SANTOS, Valdemar. Perfil de Ana Jansen. 2 ed. São Luis, 1986

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Site da Brazilonboard. Disponível em: www.brazilonboard.com. Acesso em 3 de junho/2010.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1995.