O tratamento dado ao usuário de entorpecentes pelo ordenamento jurídico brasileiro suscita algumas dúvidas em sua aplicação, entre outras, podemos citar: a tênue distinção entre traficante e usuário, as penas cominadas e sua execução, e em linhas mais gerais, a posição adotada pela política de drogas nacional hoje em vigor, que vacila entre a educação e a repreensão.

Em outras palavras, ao mesmo tempo que o Estado brasileiro mostra-se ainda atrelado a uma política de repreensão – tratando o usuário de entorpecentes como problema de polícia e não de saúde  pública –, também dá algumas mostras de que tal situação pode se alterar: basta ver os tipos de penas destinadas ao usuário de entorpecentes pelo artigo 28 da atual Lei de Drogas, notoriamente mais brandas do que outrora.

                 Além de debruçar-se especificamente sobre a problemática do usuário,  o que será feito no segundo capítulo, outras variáveis intrinsicamente ligadas ao tema serão também abordadas. Nesse contexto, destina-se o primeiro capítulo ao estudo mais detido dos entorpecentes e de seus efeitos, orgânicos e sociais; enquanto o terceiro capítulo se desenrola a partir da figura do traficante e do tratamento jurídico a ele dispensado. Outrossim, abordar-se-á a temática da política de drogas adotada por outros países, sob uma perspectiva de direito comparado, sempre visando a entender de maneira crítica o ordenamento brasileiro.

O Usuário de Entorpecentes

Tipificação na Lei nº 11.343/06

 

Posteriormente, no título II, a Lei de Drogas versará acerca das definições, princípios, objetivos e composição do Sisnad (Sistema Nacional de Política Pública sobre Drogas) e passa a focalizar o usuário e dependente de drogas, promulgando as atividades e os caminhos para garantir a atenção, prevenção, e reinserção social dos próprios.  

Por serem indivíduos sujeitos a uma situação de vulnerabilidade e risco extremos, a Lei 11.343/06 visou fortalecer as ações de orientação, responsabilidade e colaboração social, com o fim de oferecer à população suporte e informação a respeito das drogas, bem como garantir fatores oriundos à inclusão social e de investimento e melhoria nas alternativas esportivas, culturais, artísticas e, sobretudo profissionais, que tem como fim o desenvolvimento da qualidade de vida.

Por fim, no Capítulo III do referido titulo, o legislador passa a estabelecer os tipos de condutas delituosas no tocante ao consumo da droga, denominando-o Dos Crimes e Das Penas. Ora, interessante a interpretação do legislador, que em nenhum momento citou a despenalização para o usuário de drogas. Portanto, apesar de submetê-lo à penas brandas, não citando a palavra “reclusão”, “detenção” ou multa, a lei penal labora da mesma forma, tendo em vista que a conduta continua incriminada com base no diploma legal.

Neste mesmo sentido, pensa Greco Filho:

“É indispensável uma observação preliminar e de suma importância. A lei NÃO DESCRIMINALIZOU NEM DESPENALIZOU a conduta de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal nem a transformou em contravenção. Houve alterações (em comparação com leis anteriores), abrandamento...” “A denominação do capítulo é expressa. As penas são próprias e específicas, mas são penas criminais.”[1]

Tal interpretação, no entanto, esbarra em interpretações distintas, maiormente da Lei de Introdução ao Código Penal que crava:

Art. 1º - Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas. Alternativa ou cumulativamente.[2]

Ao analisar o artigo 28 da Lei 11.343/06, o que veremos adiante, compreendemos que as medidas sancionadas exclusivamente para o usuário não serão de natureza penalizadoras, mas sim de natureza educativa e advertiva. Ou seja, se avaliarmos a questão por este prisma, a conduta tipificada não se qualificaria como crime ou contravenção penal.

Contudo, seguirei com a interpretação majoritária da questão, como brilhantemente nos ensina Damásio de Jesus:

“Cuida-se crime (nossa posição), do ponto de vista formal e material. De registrar-se que, sob o aspecto formal, a definição contida no artigo 1º da LICP encontra-se defasada. Desse modo, não cabe falar em ilícito sui generis invocando o vetusto dispositivo legal. Afirmar que as leis penais do século XXI devem amoldar-se ao conceito de Lei de Introdução ao Código Penal significa conferir a ela caráter normativo superior, algo do qual ela é desprovida. De observar-se que a Constituição Federal declara que ‘a lei regulará a individualização da pena (criminal) e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos’. (Art 5º, XLVI). Nota-se, portanto, que o Texto Maior expressamente autoriza a existência de crime sem a cominação de pena privativa de liberdade.”[3]

                  

Passemos adiante, com o texto da Lei, que no seu artigo 28 prevê o crime cometido pelo usuário de entorpecentes:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:[4]

          Ao estabelecer o dispositivo, o legislador menciona a pessoa que adquire, ou seja, onerosamente ou gratuitamente obtêm o entorpecente, tem em depósito, ou seja, conserva ou mantém à sua disposição ou transporta, ou seja, traz consigo. Importante mencionar que o legislador situa o tipo penal ao USUÁRIO, por aludir que os entorpecentes que traria consigo serão exclusivamente para seu consumo pessoal.

Das Penas

Posteriormente, o legislador encrava as devidas sanções:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Tais “medidas” ou penas, como preferir, têm a natureza jurídica de penas criminais, pois são restritivas de direitos e deverão ser impostas em juízo.

A advertência sobre os efeitos das drogas configura a simples admoestação verbal. Alertará o usuário acerca dos efeitos maléficos das drogas para sua saúde e comunidade que pertence. Deverá ser feita em audiência pelo magistrado competente.

A prestação de serviços à comunidade deverá durar cinco meses, ou dez em caso de reincidência. Deverá ser cumprida em estabelecimentos públicos ou privados, como entidades, hospitais ou congêneres que têm como escopo a recuperação de usuários e dependentes de drogas.

Por fim, o legislador prevê a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Também deverá durar até cinco meses, ou dez, em caso de reincidência. Compreende a uma pena restritiva de direitos devendo ser cumprida em estabelecimento competente para o tratamento de usuários e dependentes de drogas.

Do Processo

O delito apresentado e tipificado no art. 28 obedecerá ao rito sumaríssimo, com respaldo na Lei n° 9099/95. Trata-se de uma ação pública incondicionada, ou seja, o seu exercício não se subordina a qualquer requisito, não dependendo de qualquer pessoa para ser iniciado, tão somente do Ministério Público, titular da ação penal.

Do mesmo modo, a Lei n° 9099/95 e o artigo 48, § 2º da Lei de Drogas, preveem a substituição do inquérito policial pelo termo circunstanciado, que deverá ser lavrado na delegacia de polícia, posteriormente servindo de base para o Juizado Especial Criminal.

No artigo 48, §2º, também encontraremos menção acerca da inadmissibilidade da prisão em flagrante para o delito previsto no artigo 28 da Lei de Drogas:

Art. 48, §2º - Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.[5]

 

A disposição estabelecida neste artigo, somente irá repetir o consagrado na Lei 9.099/95, enfatizando a não lavratura do flagrante e não detenção do acusado, havendo a necessidade da assinatura do compromisso de comparecimento em juízo.

Da Reincidência

          As penas do artigo 28 citam a reincidência, ao ratificar que os serviços prestados à comunidade não ultrapassarão os cinco meses, salvo no caso da reincidência, como preconiza em seu parágrafo 4º:

Art. 28, §4º - Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.[6]

 

          A reincidência citada nos termos deste artigo segue o preceito básico de reincidência contido no artigo 63 do Código Penal Brasileiro. Se o indivíduo voltar a incidir na conduta tipificada no artigo 28 da Lei de Drogas, tendo sido condenado por mesmo ou outro crime em caráter definitivo, dentro do prazo de cinco anos, será considerado reincidente.

          Por fim, se o agente vier a descumprir as medidas educativas previstas no caput do artigo 28, o juiz deverá submetê-lo à admoestação verbal e ao pagamento de multa, com base no artigo 29 da Lei. Elucida Damásio de Jesus:

“Execução da Multa: Deve obedecer ao disposto nos arts. 50 e 51 do CP. Assim, o agente será intimado a pagar o valor devido em 10 dias. Admite-se parcelamento e desconto em folha de pagamento. Caso não o faça, expedir-se-á certidão, a qual será enviada à Procuradoria do Estado a fim de ajuizar ação de execução, observando-se as regras aplicáveis à dívida ativa da Fazenda Pública.”[7]

 

Destarte, as penas abrandadas pela nova legislação antidrogas no Brasil, por meio da Lei 11.343 de 2006, intensificaram o novo panorama daqueles indivíduos que portam a droga para uso próprio em nosso país.

As tendências legislativas estrangeiras contribuíram em grande parte para que o ordenamento brasileiro acatasse as mudanças socialmente relevantes e enfrentasse a sistemática repressiva de uma maneira mais branda e serena.

Ao redor do mundo, diferentes políticas em relação à problemática da droga foram adotadas. Ainda é possível nos depararmos com diferentes interpretações e métodos a respeito do consumo das substâncias entorpecentes, contudo, todos esquadrinham o mesmo objetivo – o tratamento do viciado e a abolição do consumo ilegal.

Sem dúvida ao elaborarmos uma escala do sistema mais repressivo ao sistema menos repressivo do combate às drogas, temos no topo da pirâmide o sistema denominado norte-americano. Este sistema consiste na repressão total dos usuários e traficantes de entorpecentes, estabelecendo medidas de tolerância zero e situando o problema em uma conjuntura policial, penal e militar. Este sistema é altamente questionado, por não apresentar eficácia e resultados concretos. Além disso, os Estados norte americanos, por possuírem autonomia no que tange às leis penais, abordam a questão de maneiras diferentes. Tomemos como exemplo o estado da Califórnia, que legaliza o uso da maconha para fins medicinais.

Luiz Flávio Gomes, penalista especialista no assunto, brilhantemente faz sua análise a respeito da política norte-americana:

“O espetacular negócio das drogas, somente nos EUA, movimenta bilhões de dólares todos os anos. Mais de 23 milhões de pessoas passam no momento por tratamento ou recuperação. Quase 200 toneladas de cocaína são despejadas anualmente nos EUA, que é o maior mercado consumidor do mundo. A “guerra contra as drogas” foi declarada em 1971. Daí para cá nunca baixou consideravelmente o consumo de drogas nos EUA. Obama disse há poucos dias que a “legalização” não é a solução. Está agora promovendo uma política de despenalização (descarcerização). Em pouco tempo vai descriminalizar (retirar o caráter de crime do fato de quem tem a posse de droga para uso).”[8]

O modelo que atualmente ganha força em território europeu é o denominado “Modelo de redução de danos”, que compreende em uma estratégia totalmente oposta ao modelo norte americano. As políticas antidrogas possuem um embasamento sociológico e do ponto de vista dos governos europeus, a droga é um problema de saúde pública. Há um controle estatal em relação ao consumo e o usuário (demarcação de locais para o consumo, distribuição de seringas, assistência médica e informativos). Com políticas como esta, o Estado visa um controle conciso na regulamentação e educação dos usuários.

                   Um dos exemplos mais emblemáticos é a da política adotada nos Países Baixos. Oxalá o país mais liberal em relação ao consumo de drogas, outrora, já foi mais aberto. Atualmente, os “coffee shops” (locais em que a venda de entorpecentes leves é permitida), não são mais autorizados a vender cogumelos alucinógenos. Igualmente, os problemas relacionados ao tráfico de entorpecentes ilícitos no país só aumentou.

                   Há outro modelo, embasado nos pensamentos de Stuart Mill, filósofo e economista inglês, que defende a legalização e liberalização total das drogas em se tratando de consumo. O autor defende que, com a tutela do Estado, a legalização poderia trazer frutos onerosos aos cofres públicos, reduzir a corrupção policial, crimes e os prejuízos sociais a elas atribuídos.

O quarto e último modelo é chamado de “Justiça Terapêutica” e também encara o problema das drogas sob o prisma da saúde pública. Tende a elaborar políticas públicas a fim de garantir o tratamento e prevenção das questões relacionadas ao consumo de drogas no território nacional. É a política adotada em nosso país atualmente, disseminando o tratamento ao usuário e conscientizando a população adolescente das moléstias que as drogas causam.

Ainda, a comissão de juristas responsáveis pelo anteprojeto do novo Código Penal reflete acerca da descriminalização do uso privado de drogas. Agora, caberá ao poder Executivo regulamentar a quantidade de substância que cada pessoa poderá portar, com base no consumo médio por semana de uma pessoa comum.

“A quantidade de droga deve corresponder ao consumo médio individual de cada tipo de droga pelo período de cinco dias. A regulamentação dessa quantidade específica ficará a cargo de órgão administrativo de saúde pública, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O cultivo para consumo próprio também não será criminalizado. A presunção de consumo para uso pessoal é relativa. Isso significa que, mesmo portando quantidade de droga menor que a regulamentar, a pessoa poderá ser condenada por tráfico caso se comprove, por outros elementos, que a substância não se destinava ao seu uso pessoal. Da mesma forma, quantidade superior poderá ser considerada como para consumo próprio, caso o acusado consiga comprovar essa destinação.”[9]

Todavia, a nova Lei ainda considerará crime o uso público de substâncias entorpecentes, tanto como a indução, instigação ou o auxílio ao uso de drogas. A comissão ainda analisará a respeito da redução da pena para o traficante.

                  

                   O assunto que procurei abordar é amplo, sendo passível de inúmeros pensamentos e interpretações. Porém, quando se trata de saúde pública, a questão da dependência química e da criminalidade que o acerca está intimamente ligada com a raiz das mazelas do tráfico de entorpecentes, sendo o Direito Penal o instrumento necessário para a busca de alternativas e orientações jurídicas a todos os envolvidos nesta cadeia.



[1] GRECO FILHO, Vicente, 1943- Tóxicos: prevenção-repressão / Vicente Greco Filho. – 14 ed. – São Paulo : Saraiva, 2011. Págs. 150-151

[2] Decreto Lei número 3.914, de 9 de Dezembro de 1941

[3] JESUS, Damásio de – Lei antidrogas anotada / Damásio de Jesus – 10ª Ed. – São Paulo : Saraiva, 2010. Págs. 53-54

[4] Lei número 11.343 de 23 de agosto de 2006.

[5] Lei número 11.343 de 23 de agosto de 2006.

[6] Lei número 11.343 de 23 de agosto de 2006.

[7] JESUS, Damásio de – Lei antidrogas anotada / Damásio de Jesus – 10ª Ed. – São Paulo : Saraiva, 2010. Págs. 82-83

[8] GOMES, Luis Flávio. Drogas: EUA perderam mais uma guerra. Em: http://www.fatonotorio.com.br/artigos/ver/149/drogas-eua-perderam-mais-uma-guerra. Acesso em 15 de agosto de 2012.

[9] Superior Tribunal de Justiça. Proposta do novo Código Penal descriminaliza uso privado de drogas. Em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105870&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=uso%20privado%20de%20drogas#. Acesso em 16 de agosto de 2012