O trágico moderno na obra, A morte do funcionário (conto), de Anton Tchékhov.

 

Wilkemar Freitas Bispo1

 

Resumo

O presente artigo tenta evidenciar o trágico na modernidade através do conto, “A morte do funcionário”, de Anton Tchékhóv. Para isso nos apoiamos em algumas concepções de cunho bibliográfico que nos orientam acerca do conceito dessa vertente trágica no mundo moderno, bem como a sua repercussão na literatura. Expressões e sentimentos de insegurança, ambivalências, incertezas e contradições nortearão essa pesquisa, que tem como principal paciente e vítima desses sentimentos, o homem moderno, ansioso de conhecimentos que visam sanar essas lacunas em sua vida.

 

Palavras-chave: Trágico. Modernidade. Incertezas. Ambivalências.

 

Faremos uma tentativa de nesse artigo detectarmos o trágico moderno no conto, “A morte do funcionário”, do autor, Anton Tchékhov. Achamos importante anexá-lo ao final do artigo para futuras leituras que o mesmo possa vir a ter. Para fundamentar a nossa pesquisa, apoiamo-nos na leitura de textos bibliográficos que aqui sustentarão as nossas posições e raciocínios no que tange o trágico na modernidade e a sua repercussão no mundo literário, que com essa nova vertente trágica, a literatura terá que se adaptar a um novo estereótipo, assim como os seus leitores. Parece ser recíproca a literatura de Tchékhov, oriunda de retalhos da vida, à concepção do trágico na contemporaneidade, uma vez que as relações humanas assemelham-se e muito a fragmentos ou retalhos, em razão da individualidade e da importância do “eu” atualmente.

 

A literatura contemporânea nos repassa uma ideia aparente de que o trágico se materializa em pares opostos ocasionados pelas incertezas que o homem estabelece, uma vez que angaria conhecer o todo contido no cosmo e se vê angustiado por está sem respostas para as abstrações que estão contidas no todo que almeja, tornando-se assim limitado os saberes do homem e desconhecido aquilo que o mesmo julgou identificar ao matar Deus.

A hipertrofia da subjetividade amplia a individualidade humana, deslocando-o do convívio social em um mundo que se caracteriza fragmentado, causando o confronto do individuo com o seu “eu” e com o mundo que o cerca. A morte dos Deuses da literatura clássica parece reforçar mais ainda inconscientemente a ideia do trágico na moira do herói moderno, questionador o suficiente de sua existência, mas incapaz de carregar os seus fardos porque foge de seu destino, contrariando Édipo Reis, herói clássico, que o encara com arrojo, após ter cometido a hybris (desmedida).

Na modernidade, o herói, desiludido com o universo, já que a ciência não preencheu o vazio sentido por esse, isola-se em seu eu como segurança e arma contra os seus fracassos, quer nas normas rompidas ou na tecnologia falha: “O sonho e a esperança de um mundo melhor passaram a ser colocados, desde então, em nossos próprios EUS. Não há mais limites para nossa ambição de ter um Eu cada vez maior, e por isso desprezamos todos os limites. (BAUMAN, 2OO5, p. 03).

O presente conto, por ser moderno, exigirá de nós fazermos a abordagem de uma leitura moderna do trágico. Sendo assim, é viável que expusemos um dos conceitos que Kierkegaard (1961, p. 23) tem sobre esse tipo de trágico: “O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, em suma, uma síntese”. Essa dualidade oriunda do homem contemporâneo emite o grau elevadíssimo de incertezas que carrega à medida que tenta se aproximar de tudo e tornar o geral, domínio de seu egoísmo.

No conto que analisamos, pressentimos essas oposições favoráveis a uma tensão do funcionário (personagem principal), que por parecer insignificante para o universo das altas autoridades, luta para ser percebido. Ressalvamos que a leitura do título do conto que fazemos generaliza essa classe de pessoas que exercem essa função, condizendo, portanto, com o ridículo que estão sujeitas.

Para introduzirmos o trágico na leitura desse conto, faremos também o intróito de como começou a tensão nas seguintes linhas: “Mas, de repente; seu rosto enrugou-se, os olhos contraíram-se, parou a respiração... afastou o binóculo, inclinou-se e. atchim! espirrou conforme estão vendo”. (A morte do funcionário, p.35).

O infeliz espirro simboliza a mola mestra para o início do conflito do funcionário, que hesitante entre o pedido de desculpas e a sua aceitação ou não pelo general, transtornar-lhe-á durante toda a narrativa.

Pesa-se aqui para esse conflito, a hierarquia imposta pela sociedade capitalista, impondo respeito e direitos aos com maior status, e obediência e servidão aos menos providos de um cargo elevado e reconhecido. O funcionário, ao descobrir e identificar que o borrifado é um general, imediatamente questiona as consequências que lhe acontecerão, já que esse general parece representar uma figura acima de Deus, mantendo assim o reinado do antropocentrismo e do capitalismo, bem como do antropomorfismo, consoante o trecho que segue:

 

Chegou-lhe então a vez de ficar perturbado. Viu que um velhinho, sentado na frente, na primeira fileira, enxugava meticulosamente a calva e o pescoço com a luva, murmurando algo. E Tchervikóv reconheceu, naquele velhinho, o general civil Brizjalov, do departamento da aviação. (A morte do funcionário, p. 35).

 

 

O homem, orgulhoso e egoísta por tocar no certo e o errado simultaneamente, não teme mais aos Deuses (trágico clássico). A sua temeridade na modernidade é na superação de si mesmo e dos mistérios que nem esse, a ciência, a economia, sistema político etc. conseguiram esclarecer e tornar lúcidos aos seus olhos. Sem um norte para as respostas de suas dúvidas incessantes, encontra-se ainda mais entregue às tensões do invisível e do visível, do conhecido e desconhecido. Com isso, encontra-se desamparado no cosmo porque não consegue achar uma explicação para o inexplicável, que, por conseguinte, descarta as possibilidades de se conhecer e conhecer o mundo que está inserido, concebendo-se em uma atmosfera caótica.

 

Para Nietzsche, nosso ideal, nesse aprendizado, continua a ser os gregos dos tempos de Homero. Eles foram, segundo Nietzsche, superficiais por profundidade; a famosa ingenuidade e serena jovialidade dos gregos era “apenas” um artifício, uma máscara, superfície e fachada: para desviar o olhar dos horrores e sofrimentos da existência, eles criaram as figuras maravilhosas da beleza artística apolínea. Também nós, homens modernos, condenados a renascer das próprias cinzas, resgatando-nos dos escombros da nossa tradição, temos que aprender a rir de nossa própria gravidade, pois nosso destino nos condena a ensaiar passos de dança mesmo e, sobretudo à beira do abismo. (JÚNIOR, 2001, p. 149).

 

 

A incapacidade de se tatear o certo e o errado, uma vez que se transgride o limite da “ordem” que se criou para estabilizar a vida humana, inclui o homem em uma fase conflitante que a liberdade o proporcionou, permitindo-se trágico inconscientemente. E, quanto maior for a inconsciência na desmedida humana, maior será a tensão e o conflito vivenciado pelo homem. Essa liberdade confere ao ser humano uma escolha que se considera dúbia, porque não se sabe ao certo que conceito é o mais válido para as incertezas que rodeiam a existência humana.

O jogo de opostos parece se materializar no conto a partir dos questionamentos do “funcionário público”, visto que ser funcionário é bem diferente de ser general, assim como a possível validade das desculpas ou a ausência dessas desculpas pelo general.

Acerca das incertezas contidas no conto pelo funcionário, percebemos a seguir uma passagem que as confiram:

Diz que esqueceu, mas há maldade em seus olhos”, pensou Tcherviakóv, olhando desconfiado para o general. “Nem quer falar sobre o caso. Seria preciso explicar-lhe que eu não quis, absolutamente... que se trata de uma lei da natureza. Se não vai pensar assim agora, chegará a essa conclusão mais tarde!...” ( A morte do funcionário, p.36) .

 

 

Tcherviakóv, o funcionário público, carrega esse drama sem recorrer a nenhuma força divina como meio de alívio para esse seu dilema. Essa unicidade e esse centralismo em si mesmo, assim como o cientificismo assistido pelo homem como uma solução,não são mais que meras utopias, conforme as palavras de Bauman (1997, p. 41): “A pós-modernidade, pode-se dizer, é a modernidade sem ilusões- a verdade em questão é que a “confusão” permanecerá, o que quer que façamos ou saibamos que as pequenas ordens ou “sistemas” que cinzelamos no mundo são frágeis, temporários, e tão arbitrários e no fim tão contingentes como suas alternativas.”

Focar-se na existência humana na modernidade é causa propagadora de desequilíbrio. Portanto, é complexo entendermos que um sistema político, o capitalismo, a ciência entre outros refúgios humanos possam dar conta daquilo que o homem ainda não alcançou e muito menos se apropriou, porque todas essas abstrações não foram apreendidas pelos artificialismos que o homem passou a denotar no lugar de Deus.

Ansioso pela liberdade, o ser humano tenta perscrutar o imperscrutável, transgredindo a ética que o próprio homem criara, jogando-se assim no caos. A “ordem” que a modernidade busca e tenta concretizar perde o sentido a partir do momento em que os apetrechos que a confirmam não correspondem ao vácuo sentido pelo homem, que quanto mais questionador do desconhecido no universo, maior é a insegurança sentida e à deriva segue.

 

[...] Vale ressaltar que já não nos surpreende que o tema da ética se tenha tornado tão recorrente entre nós, como cidadãos, como profissionais e como indivíduos. Sobretudo sentimo-nos dentro de um mundo em se sente e se denuncia a “falta de ética”. Neste sentido, diz-se também que “não há mais valores”, ou que se trata de “resgatar os valores...” Por outro lado, sentimo-nos meio perdidos, inseguros, perplexo a respeito do que seja um comportamento eticamente correto, acerca do que seja um valor moral. Trata-se de duas questões diferentes (ASSMANN, 2003, p. 01)

 

E, se, pouco sabemos conceituar ética e o valor que ela tem literalmente para nós, consequentemente não conseguimos nem mesmo dizer e definir o que somos. A certeza que poderia ser empregada advinda da “ética” transforma-se em incerteza transfigurando a racionalidade do homem em irracionalidade, tornando-o assim, mais vago de referências no mundo para sanar as suas indecisões.

Tcherviakóv, no conto abordado, é uma personagem que passa por essa situação de “ética”, ao espirrar no velhinho à sua frente. No entanto, deve-se fazer a leitura da “ética” assistida a essa personagem. O que estimula essa suposta “ética” de Tcherviakóv é o seu caráter, ou a sua preocupação ao molhar um general, comprometendo assim a sua carreira de simples funcionário? O trecho que segue é pertinente a esse questionamento:

 

-Ontem, eu vim aqui incomodar vossa excelência,-balbuciou , quando o general dirigiu para ele o olhar interrogador -mas não foi para zombar do senhor, conforme dignou a dizer. Eu estava-me desculpando porque ao espirrar, borrifei-o...mas, nem pensei em zombaria. Como poderia ousá-lo? Se formos zombar, quer dizer que não haverá, então, qualquer respeito...pelas pessoas...(A morte do funcionário, p. 38) .

 

 

É duvidoso o respeito que apresenta Tcherviakóv pelo general. Será esse respeito, praticado, devido o cargo que tem a pessoa borrifada, ou esse respeito é inerente à personalidade da personagem principal (Tcherviakóv)?

Com a morte dos Deuses, o ser humano torna-se mais suscetível às fragilidades e ao esmo. O que parecia superficial com Deus (es) , tornou-se muito mais abstrato sem ele(s), exaltando mais ainda a angústia humana.

 

Outrora, o delito contra Deus era o maior dos delitos, mas Deus morreu e, assim, morreram também os delinquentes dessa espécie. O mais terrível agora é delinquir contra a terra e atribuí mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra! (NIETZSCHE, 1998, P.30).

 

 

Tcherviakóv cobra-se e não aceita o que é pronunciado pelo general, transtornando-o e levando-o às indagações que de tão contínuas, sente-se um martírio até para o leitor, que tenta entender porque a personagem não se conforma com as desculpas emitidas pelo general. Tcherviakhóv cita o nome de Deus em seus rogos ao general pelas suas desculpas: “perdoe-me, pelo amor de Deus... Realmente, foi por acaso.” (A morte do funcionário, p.36). Essa referência a Deus é apenas uma forma de se conseguir as desculpas, tentando induzir o general a temer a Deus, do que propriamente a crença que essa personagem teria em Deus.

Tcheriakhóv mostra-se incapaz de compartilhar essa sua inquietação com quem quer que seja, pois se comprova só no mundo, que por consegiunte, é fragmentado. E mesmo sendo desculpado, não se satisfaz com as desculpas. O mundo parece estar distante da personagem e a personagem prefere distância do cosmo.

 

 

A angústia não é um afeto ordinário. Se ela é subjetiva, como todo sentimento, é por colocar radicalmente em questão a própria subjetividade. Quer seja definida como sentimento do nada ou da liberdade, ela é, sempre, a relação da prórpia subjetividade (COUNAIRE, 2001, P.124).

 

 

Tcherviakhóv cultiva a subjetividade e a encara como uma liberdade capaz de conseguir o seu objetivo. Porém, tal liberdade torna-se uma prisão, uma vez que as desculpas ofertadas pelo general não sanam as dúvidas vividas pelo funcionário. O “herói” aqui se mostra incompleto e sem estabilidade, submetido a um mundo que o mesmo se inclui como resposta às suas angústias, porém artificial e frágil. Por ser frágil e utilizar uma “máscara” para a sua defesa, foge às pressões do mundo e se acoberta de uma solidão como causa suprema de liberdade e solução.

Tcherviakhóv expõe bem o estereótipo de herói citado anteriormente, achando solução para os seus problemas na morte: “-Fora daqui!!-repetiu o general, batendo os pés. Algo rompeu na barriga de Tchérviakhóv. Recuou para a porta, sem ver, sem ouvir coisa alguma, saiu para a rua e caminhou lentamente... Chegando maquinalmente em casa, deitou-se no Divã sem tirar o uniforme de gala e... morreu. ( A morte do funcionário, p. 38). Por isso, é diferente do herói clássico , que por ser determinado,encara a sua sina sem fugir e tampouco a teme.

Embora a noção de trágico seja ainda bastante hesitante, se comparada ao tempo antigo dos gregos em face da época moderna, tentamos nesse artigo versar sobre o mesmo na modernidade, embasando-se na noção de piedade, temor e catarse deixada por Aristóteles, e percebemos que o cenário teve uma mudança, porém o ser humano moderno fez um levante de utopias que são incertas, homologando o trágico na modernidade tão vivo quanto os tempos dos gregos antigos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

ASSMANN, Selvino José. Crise ética e crise da ética a partir da pergunta ética profissional. Florianópolis, 2003-texto mímeo (no prelo) p. 1-9

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.

Náufragos num mundo líquido. Entrevista para o site no mínimo Entrevista, segunda-feira, 19 de Dezembro de 2005, acessado em 28/07/2006, páginas 1-4 http://voodoobrasil.blogspot.com/2005/12/naufragos-num-mundo-lquido-zygmund.html

COURNARIE, L. L Existence. Paris: Armand Colin, 2001.

JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Nietzsche: um século depois. In: BARRENECHEA, Miguel Angel; CASANOVA, Marco Antonio; DIAS, Rosa; FEITOSA, Charles (org.). Assim falou Nietzsche III- Para uma filosofia do futuro. Rio de janeiro: 7 Letras, 2001.

KIERKEGAARD, S. Traité du Désespoir. Paris: Gallimard, 1961.

TCHÉKHOV, Anton. A morte do funcionário”. In: A dama do cachorrinho. Tradução de Boris Schnaidermann. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 35-38.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 Graduado em letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UEVA e Pós-Graduando em Língua Portuguesa e Literatura pela mesma.