O trabalho pedagógico escolar como prática social
Ada Augusta Celestino Bezerra¹ (Dr. Em Educação NPED e UNIT).
Gilnara Guedes dos Santos² (Pós-Graduanda em Gestão e Educação pela Faculdade Pio Décimo).

RESUMO
Reflexão social e econômica sobre o trabalho pedagógico que dialoga com teóricos contemporâneos e clássicos da economia política, buscando a explicitação da especificidade do trabalho docente. O pressuposto é que a educação, as lutas políticas e o trabalho são práticas sociais, fontes de conhecimento que articulam superestrutura e infra-estrutura. Considera o professor elemento subjetivo desse processo e a escola como instituição social organicamente vinculada ao trabalho, ao modo de produção da existência e ao desenvolvimento econômico, cuja função social alcança a ampliação do universo cultural do aluno, sua formação crítica, o repensar do processo tecnológico brasileiro e a formação tecnológica do cidadão.
Palavras-chave: escola; formação humana; trabalho docente.
Abstract
A social and economic reflection on the pedagogical work which speaks to contemporary and classical theorists from the political economy, seeking clarification of the specificity of teaching work. The assumption is that education, political struggles and labor are social practices, knowledge sources that articulate superstructure and infrastructure. The teacher is seen as a subjective element of this process and the school as a social institution organically linked to labor, to the existence production mode and to economic development, whose social function reaches the expansion of the cultural universe of the students, their critical formation, the rethinking of the Brazilian technological process and technological training of citizens.
Keywords: school; human training; teaching work.
INTRODUÇÃO
A análise do trabalho, à luz do materialismo histórico, permite identificar com mais clareza a natureza do trabalho do educador, ainda que a educação esteja situada no setor de serviços e o professor tenha uma produção não palpável, diretamente vinculada ao desenvolvimento do homem e da sociedade. O aluno com formação cidadã, produto do processo educativo escolar (que socializa o conhecimento historicamente acumulado, forma capacidades de trabalho e de convivência) porque, através dele, incorporou novos atributos, sofreu transformações em sua maneira de pensar, sentir e agir, assume, neste contexto capitalista, a forma de força de trabalho, na medida em que incorpora valor ou tempo de trabalho socialmente necessário.
Essa realidade é mais perceptível na esfera privada, embora todo o setor de serviços (situado no âmbito da produção não-material) tenha como determinação básica a produção material, sendo assim inevitável sua articulação com o capitalismo e com o capital propriamente, mesmo que de modo indireto. Negar essa realidade implica negar a priori o trabalho como princípio educativo, tratar como pólos excludentes trabalho e educação, além de reforçar posturas que atribuem à escola um papel meramente diletante.
Marx (1975) distingue dentro da categoria de produção não-material, duas modalidades de produção: aquela em que o produto se separa do produtor como objetivação que adquire existência autônoma, circulando na esfera do capital comercial, ensejando investimentos de capital e a extração da mais-valia através da incorporação do excedente ao capital investido e aquela em que o produto não se separa do produtor; exemplifica a primeira modalidade citando livros, discos e objetos de arte e a segunda, com as atividades médicas e docentes. Assim, o trabalho produtivo não corresponde necessariamente à produção material, bem como o trabalho improdutivo não se confunde com a produção não-material. Na verdade, tanto o trabalho produtivo quanto o improdutivo, podem ser classificados em material ou imaterial, no âmbito da produção capitalista embora não no sentido do processo de trabalho em geral.
Sempre que eclodem vigorosas greves dos professores da rede pública federal, estadual ou municipal, inclusive das universidades, volta à tona a questão da pertinência desse movimento social no setor público. Particularmente no caso das universidades e das escolas públicas de Educação Básica, é muito comum ouvir-se que se trata de uma greve que não afeta o Governo e os grupos econômicos, por não lhes dar qualquer prejuízo e até permitir-lhes deixar de gastar, uma vez que a educação é considerada setor não produtivo. Esta é uma visão preconceituosa (porque prisioneira de conceitos econômicos que se tenta generalizar) ou, no mínimo, dogmática, pois que ignora os determinantes econômicos e homogeneíza o que é diverso, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da forma social. A realidade não é bem assim, sobretudo no estágio atual de desenvolvimento capitalista, crescentemente centrado na extração da mais-valia relativa, além do que é pouco relevante a preocupação de abordar as questões atuais da educação, submetendo-as a essa classificação produtiva/improdutiva. O que parece hoje colocado à consideração e criatividade dos educadores é o desafio da construção de uma educação que, mesmo situada no contexto das determinações capitalistas, forme o aluno para o exercício de uma cidadania crítica a partir mesmo da apropriação da cultura produzida (social e historicamente) pela humanidade.

O TRABALHO NAS CONDIÇÕES CAPITALISTAS E A ESPECIFICIDADE DO TRABALHO DOCENTE
O capitalismo tem revelado contínua capacidade de gerar e superar crises, de inaugurar ciclos, segundo a dinâmica histórica da acumulação. No atual ciclo o conhecimento ocupa lugar de destaque enquanto força produtiva, o que impõe o modelo de acumulação flexível (fundado na competência), o modelo de organização do processo produtivo baseado na mutualidade e a qualificação multifuncional. A crise estrutural desencadeada a partir da década de 70 (Século XX) vem sendo marcada pela transição do regime de acumulação fordista para o da acumulação flexível, pela crise do Estado de Bem-Estar Social, defesa de um Estado Mínimo e desregulação da economia, tendo o mercado como regulador das relações sociais e a livre concorrência como maior valor. Nesse contexto, dão-se o predomínio dos regimes neoliberais e neoconservadores, o avanço tecnológico e as novas formas de organização do trabalho, além da retomada da teoria do capital humano (neo-capital humano) que peca por ainda afirmar uma linearidade na relação qualificação/renda.
A educação, assim como as lutas políticas e o trabalho, são práticas sociais que articulam superestrutura e infra-estrutura, sendo indiscutíveis fontes de conhecimento. Ela está voltada para a formação do homem, sendo desenvolvida pela família, predominantemente pelo meio social, pela escola (especialmente), pelo próprio trabalho e, atualmente, também pelos novos espaços educativos (de cunho comunitário, que preenchem espaços vazios deixados tanto pelo setor público quanto pelo privado, como é o caso das Organizações Não Governamentais - ONGs).
O trabalho, enquanto prática social fundamental pela qual é (re) produzida a própria existência é constituido de relações do homem com a natureza e com os demais homens. Na sociedade capitalista, embora caracterizado como instância tipicamente infra-estrutural, também é uma das esferas formadoras embora no presente seja menos decisiva que o meio social e a escola, por só contemplar os incluídos no mercado.
Nesse contexto, a escola, situada a rigor na esfera superestrutural, é, inclusive quando sob relações capitalistas, inegavelmente socializadora do conhecimento, sendo na rede pública o recurso por excelência de apropriação do conhecimento por parte da maioria da população e daí, também, formadora de capacidade de trabalho qualificado, o que se dá inclusive na rede privada. Muitas são as discussões sobre a especificidade do trabalho pedagógico desenvolvido pelos professores na escola pública, havendo certa confusão na identificação dos seus componentes quando se toma como referência os elementos do trabalho em geral indicados por Marx (2008).
O professor (força de trabalho docente) é, sem dúvida, o elemento subjetivo do processo do trabalho pedagógico escolar, embora a ênfase na sua função mediadora entre o aluno e o conhecimento leve alguns a considerá-lo como meio: suas atividades, especialmente a aula, nessa perspectiva, são vistas como recursos de socialização do conhecimento historicamente acumulado.
Os equívocos ou imprecisões ainda são maiores na identificação daquilo que de fato representa o processo educativo bem como o produto da escola. Nesse sentido há uma divergência entre o pensamento de Saviani (1987) e Paro (1993): o primeiro considera a aula como o produto do trabalho docente, produto tal que seria inseparável do consumo; assim, a aula seria ao mesmo tempo produzida e consumida na relação professor-aluno; o segundo discorda dessa análise por considerar a aula como processo, o próprio trabalho, enfatizando como produto da escola as transformações da personalidade discente, admitindo assim uma separação produção/produto, para além do processo de consumo.
Saviani (1987), tentando apreender a especificidade do trabalho pedagógico escolar, assegura que sua objetivação, sua subsunção real no capital, é problemática, pois que nele o produto não se separa do produtor de modo à autonomizar-se do sujeito, embora nas empresas de ensino, o trabalho docente de ministrar aulas seja subsumido formalmente no capital, não o sendo, entretanto, no plano real.
(...) como a aula, que é produzida e consumida ao mesmo tempo. A aula só acontece na relação professor-aluno. Posso preparar a aula, mas ela de fato é produzida naquele momento. Tornar capitalista essa forma de trabalho é complicado, mas não impede que esse tipo de trabalho seja subsumido formalmente ao capital, como ocorre com as empresas de ensino. O empresário do ensino investe capital e extrai mais-valia do trabalho dos professores. Do que os alunos pagam, apenas uma parte é transferida para o professor e há um trabalho excedente que é acumulado, e com isso o capital se amplia. (SAVIANI, 1987: 26-27).
PARO (1993), concorda parcialmente com a análise de Saviani (1987), fazendo alguns reparos no que se refere ao produto do trabalho pedagógico escolar, trabalho esse que também caracteriza como não-material.
Seu produto não é um objeto tangível, mas um ?serviço?. Isto levou a que Marx entendesse que o trabalho pedagógico escolar não pudesse ser subsumido senão formalmente, na sociedade capitalista, em virtude da natureza mesma desse trabalho. (PARO, 1993: 104).

Como exemplos do trabalho não-material cita o trabalho do ator no teatro, do palhaço no circo e do professor em sala de aula, recorrendo a Marx. Também fala de dois tipos de trabalho não-material: aquele em que se separam a produção e o consumo, e, aquele em que esses dois momentos ocorrem simultaneamente. Assim, concorda com SAVIANI (1987), no que se refere à especificidade da educação escolar, não admitido a subsunção real do trabalho pedagógico no capital. A discordância, como já foi descrita, decorre da sua concepção de produto do processo educativo escolar que, em tese, não se separa do consumo discente. Saviani (1987) o reduz à aula ou atividade de ensino propriamente dito, que no contexto capitalista configura-se como mercadoria (inclusive paga na escola particular) e como serviço peculiar da escola pública e privada, serviço esse que tem sua qualidade avaliada.
Já Paro (1993), entende que a aula não é o produto, mas o próprio trabalho pedagógico: uma atividade que origina o produto propriamente dito do ensino.
Uma concepção de educação enquanto relação social que se dá entre sujeitos com iguais condições no domínio da sociedade civil (Gramsci) nos revelará que o produto de tal processo é algo mais complexo do que o suposto por Saviani. Entendida a educação como a apropriação de um saber (conhecimentos, valores, atitudes, comportamentos, etc.) historicamente produzido e a escola como uma das instâncias que provêem educação, a consideração de seu produto não pode restringir-se ao ato de aprender. Neste ato, o educando apropria-se de um saber que a ele é incorporado. Há, portanto, algo que permanece para além do ato de aprender. Neste sentido, o educando não se apresenta unicamente como consumidor. Se permite a analogia com o mundo da produção material, o aluno não é apenas consumidor do produto, mas também objeto de trabalho. Sua semelhança com o conceito de objeto de trabalho visto anteriormente faz sentido, na medida em que é ele o verdadeiro objeto ?sobre o qual? se processa o trabalho pedagógico e que se ?transforma? nesse processo, permanecendo para além dele. (PARO, 1993: 105).

Apesar da analogia feita, reconhece no aluno, na condição de objeto de trabalho, sua resistência à transformação, que não é de ordem material, nem meramente passiva, havendo uma especificidade que é sua participação ativa como sujeito do processo e daí, co-autor (co-produtor) dessa atividade. Nestes termos, o produto do processo educativo ou pedagógico é a (trans) formação da personalidade do aluno mediante apropriação de conhecimentos, atitudes, habilidades etc..
De qualquer forma, se o processo de trabalho pedagógico se realizou a contento, consideramos que o educando que ?sai? do processo é diferente daquele que aí entrou. É esta diferença que constitui verdadeiramente o produto da educação escolar. A conseqüência desse conceito de produto pedagógico é a refutação da idéia de que, no processo de trabalho pedagógico, o produto não se separa da produção. Na verdade, esta separação se dá de fato, na medida em que, para além do processo, permanece algo que é utilizado pelo educando pela vida a fora. É claro que tal separação não se dá nos moldes absolutos em que se verifica na produção material. Nesta, há um intervalo entre produção e consumo, de tal forma que o produto se destaca completamente da produção. No caso da produção pedagógica, o consumo se dá imediatamente, como observa Saviani, mas não apenas imediatamente, já que se estende para além do ato de produção. (PARO, 1993: 106).

Mas é evidente que o processo pedagógico também não pode ser reduzido à aula, pois assim estar-se-ia enfatizando uma escola apenas lecionadora; ele é expresso muito mais pelo Currículo com sua função organizadora, incluindo não só o ensino como a pesquisa e a extensão no caso da Universidade, por exemplo. Retomando a própria etimologia da palavra pedagogia, considera-se pedagógico todo o trabalho de condução do aluno ao saber, inclusive a formação científica e o desenvolvimento de experiências que gerem novas descobertas. Por outro lado, é inegável que o produto da escola é o aluno educado, portanto também força de trabalho, ou seja, o aluno pleno de valores (culturais, éticos e econômicos) incorporados durante seu processo formativo. Desse modo a escola potencializa a força de trabalho e a extração da mais-valia, seja em sua forma absoluta ou, principalmente, em sua forma relativa que assinala o modelo atual de desenvolvimento das sociedades mais dinâmicas.
Ao tratar da especificidade do trabalho pedagógico, Paro (1993), detém-se também no tipo de saber que é socializado por esse processo, do qual o educando se apropria. Parte do pressuposto de que o "saber fazer" é apropriado pelo capitalista que o retira do ato da produção; como considera que o saber do processo pedagógico não se restringe ao "saber fazer", (incorporado aos métodos e técnicas de ensino, de certa forma também suscetível, embora não radicalmente, as fragmentação e apropriação capitalistas), compreende que ele alcança também o saber produzido e acumulado historicamente, mais resistente à parcelarização ou à generalização do modo capitalista de produção. Esse, nessa ótica, é o tipo de saber cuja presença é imprescindível no momento da produção, sendo "impensável" expropriá-lo do educador-trabalhador, do que resultaria a subordinação real do trabalho docente ao capital.
Outro pressuposto do último autor referido é o de que a diferença em termos da relação social que, nesta sociedade capitalista, submete o professor da escola particular e o da escola pública, está no fato de que no primeiro caso ele é trabalhador produtivo por produzir mais-valia para o proprietário da escola, enquanto no segundo caso, como o empregador é o Estado que não busca lucro na educação, pois não espera o retorno ampliado do dinheiro investido, o trabalho docente é não-produtivo.
Ao falar do movimento trabalhista docente na rede pública, Paro (1993), embora considerando legítima a luta dos professores por melhores condições de trabalho, chama a atenção para a necessidade de que esteja voltada também para a afirmação do objeto do seu trabalho, ou seja, para o atendimento às demandas dos trabalhadores em geral e para a construção de uma escola pública universal e de qualidade. A afirmação de seu objeto de trabalho, para ele, seria uma necessidade que se põe em termos estratégicos e sócio-políticos. Assim, critica a insuficiência de elaborações teóricas ("profundas e rigorosas") no seio do movimento docente em curso, o que poderia ensejar a superação do momento puramente econômico-corporativo que, com certeza, ainda vem prevalecendo.
O professor, entretanto, pela natureza do trabalho que exerce e pelos fins a que serve a educação, precisa avançar mais, atingindo um nível de consciência e de prática política que contemplem sua articulação com os interesses dos usuários de seus serviços. (PARO, 1993: 109).

A verdade é que tanto as economias mais dinâmicas (que adotam inovações tecnológicas e novas formas de organização dos processos de trabalho próprias do modelo de acumulação flexível), quanto às menos dinâmicas, (que mantêm a base técnica e as formas de organização dos processos de trabalho do modelo fordista), já apresentam demandas para a Educação em termos de novos incrementos na formação da força de trabalho, que constituem desafios para a educação e para a escola, em particular, independentemente do seu caráter público ou privado. Isso vem sendo constatado na medida em que a dinâmica do capitalismo - produzida não só por força dos conflitos sociais, mas pelo progresso tecnológico - vem eliminando postos de trabalho no mercado para os quais havia um perfil definido em termos de demandas de formação escolar e criando novas funções que impõem um novo perfil na qualificação do trabalhador. Tais demandas já estão explícitas em algumas falas e iniciativas dos próprios empresários, inclusive no Brasil.
Assim, é inegável que a escola está organicamente vinculada ao trabalho, ao modo de produção da existência e ao desenvolvimento econômico, sendo, pois, partícipe do processo produtivo, não obstante tenha na contemporaneidade sua qualidade questionada, notadamente na rede pública; dela é requerida a formação de novas habilitações, pelos empresários, no contexto de acirradas competições por inovações tecnológicas. Sobre essa vinculação é ilustrativa a afirmação do coordenador de projetos da área educacional do Instituto Herbert Levy (IHL), também assessor da presidência da Gazeta Mercantil, ao falar das ações desse organismo junto ao Comitê de Educação da Comissão Empresarial de Competitividade (CEC), criada via decreto do Presidente da República, que conta com a participação de aproximadamente 210 empresários, representando todos os estados do país, não obstante a visão atrasada de muitos empresários brasileiros que ainda optam pelo uso predatório da força de trabalho pouco qualificada:
No passado, os anseios da oferta (educadores) e as necessidades da demanda (empresários) eram conflitantes. A escola única com qualidade igual para todos não era necessária, pois, na primeira etapa do processo de industrialização, foi possível a países como o nosso estabelecer um parque industrial razoável contando com uma base estreita de mão-de-obra qualificada, somada a um contingente enorme de trabalhadores pouco educados e mal preparados para enfrentar desafios mais complexos. Hoje, no entanto, a realidade é outra. Predominam as altas tecnologias de produção e informação, e nenhum país se arrisca a entrar em competição por mercados internacionais sem haver antes estabelecido um sistema educacional onde a totalidade da população, e não só a força de trabalho, tenha atingido um mínimo de 8 a 10 séries de ensino de boa qualidade. Na maioria dos países europeus, foi preciso um século para que se atingisse essa performance (...). (SILVA FILHO, 2001: 87).

De fato, a atual revolução industrial ou pós-industrial está assinalada pela crescente geração e difusão de novas tecnologias, pela introdução de novos processos de trabalho e métodos de organização da produção. Modificam-se os conceitos, conteúdos e organização do trabalho, bem como o perfil do emprego, com a gradativa dissipação do trabalho produtivo direto e a extensão do trabalho indireto (terceirização). Entretanto é preciso relativizar um pouco afirmações desse tipo. Será que predominam mesmo?
As competências ou novas habilidades mínimas requeridas não só do trabalhador como do cidadão, exigem, em graus progressivamente mais elevados, a escolaridade formal e, em geral, são: ler, interpretar a realidade, exprimir-se, lidar com conceitos matemáticos e científicos, abstrair, trabalhar em grupo e outras habilidades comportamentais, além de entender e usufruir dos avanços tecnológicos. "(...) hoje os anseios dos educadores - escola única, voltada para o desenvolvimento pessoal, a preparação para a cidadania e a preparação para o trabalho - vão de encontro às necessidades dos empresários." (SILVA FILHO, 2001: 88).

Certas concepções, até ditas progressistas, são, de fato, conservadoras como a que coloca a expectativa de que o aluno deve ter aprendizagem de tudo; o de que se precisa é do trabalhador com capacidade de síntese criadora e não com várias especialidades pequenas. Este é o trabalho do futuro. A idéia de politecnica tal como colocada exigiria que a indústria a ela se adaptasse. Seria isto viável, faria algum sentido?
Desse modo a questão da escola única volta à tona no século XXI, sendo o trabalho como princípio educativo claríssimo na fala do próprio empresário, embora sob seu viés. É a categoria da qualidade total que entra na escola, juntamente com o trabalho, para formar consciência e atitudes nessa direção. É assim que o empresariado quer que seja educada a classe trabalhadora. Nesse sentido, os educadores progressistas perdem espaço porque insistem com uma visão idealista do trabalho e da educação, muitas vezes não conseguindo concretizá-la na prática pedagógica.
É de conhecimento público que o IHL produziu um trabalho intitulado "Ensino Fundamental e Competitividade Empresarial: uma proposta para ação do governo", que foi entregue ao Ministro da Educação em 1992, o qual desde então vem sendo implementado de diversas formas. Segundo Silva Filho (2001), tal documento foi objeto de estudo num Seminário promovido pela Secretaria Nacional de Educação Básica (SENEB/MEC), em 03 e 04/08/92, com representantes dos diversos segmentos da sociedade dos estados brasileiros, incluindo sindicalistas, pessoal do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), o Conselho de Secretários Estaduais de Educação (CONSED) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Dentre as propostas desse documento ele destaca: mecanismo que assegure às escolas um padrão mínimo de recursos e um sistema nacional de avaliação das escolas. Assim, os empresários do mundo capitalista já se preocupam, por exemplo, com a eficiência, qualidade e financiamento da educação básica e superior, mentalidade que gradativamente se vem instalando também no Brasil.
Diante desses dados é possível afirmar que o trabalho educativo escolar participa economicamente da formação da força de trabalho, esta geradora de mais-valia através do sobretrabalho. É desse modo que penetra no circuito da reprodução/ampliação do capital e que o professor participa da formação de valor no produto do seu trabalho, no contexto dos demais fatores econômicos; o aluno consome ou incorpora bens e serviços ao longo desse processo formativo, mas é o capitalista quem de fato vai consumir tudo que foi incorporado pela força de trabalho.
Assim, é absolutamente fundamental o trabalho de formação de força de trabalho, pois sem ela não há produção de capital, este entendido como uma relação social e não como dinheiro. Os empresários, de lucidez capitalista indiscutível, reclamam da produtividade da educação, não aceitando a reprovação, a multi-repetência, o analfabetismo. É ele, o capitalista, o consumidor efetivo do trabalho docente, daí porque quer ele mexer na educação, na sua ânsia de querer controlar e submeter tudo à lei do valor. Ele quer produtividade em todos os setores, qualidade total. Aliás, a teoria burguesa do Capital Humano não deixa dúvidas: trata a força de trabalho como capital humano, falando de investimento; ela expressa claramente que a força de trabalho, que chama de capital humano, é uma mercadoria. É esta Teoria uma questão mesmo de ideologia, enquanto falsa consciência; é um discurso ideológico produzido pelos intelectuais da burguesia que traz evidente o significado da força de trabalho para o capital.
É desse modo que o trabalhador, formado com a contribuição dos educadores, ao chegar ao mercado de trabalho para negociação da venda/compra da força de trabalho, já o faz como produto, mercadoria, na concepção capitalista, repleta de valores incorporados pelo consumo de bens e serviços. Daí transforma-se em produtor imediatamente (já chega produtivo), se já não o era até mesmo ao longo do seu processo de formação: vai produzir valores de troca, mais valor nas mercadorias (bens e serviços).
Este meu esforço para demonstrar que a educação se relaciona com o desenvolvimento econômico, com o desenvolvimento capitalista, embora tenha a clareza da teoria marxista que não considera produtivo o trabalho do mestre-escola (aquele que trabalha para o Estado) por não produzir diretamente mais valia do ponto de vista da sociedade capitalista. Acredito ser uma sutil diferença aquela que permite chamar produtivo aquele professor da rede privada porque são diferentes as relações sociais de compra e venda da força de trabalho, em relação ao professor da rede pública, uma filigrana que não caracteriza uma questão epistemológica.
A análise da expansão do capital desemboca na categoria de mais-valia, esta nas suas formas absoluta e relativa. O pressuposto é de que no processo de elevação da produtividade, de busca da mais-valia relativa, está inserida a divisão pormenorizada do trabalho. A mais-valia é a base em que se assenta a exploração capitalista do trabalhador, tratando-se na prática de uma relação permeável aos conflitos sociais, conforme já elucidado: (...) decorre da capacidade de o trabalhador despender, durante o processo de realização de suas atividades produtivas, um tempo de trabalho superior ao que tem em si incorporado. (BRUNO, 1996: 104)

Retomando a questão do trabalho, inclusive o docente, cabe voltar a destacar ainda tratar-se de uma relação desigual entre homens, na qual corporificam-se tanto as lutas dos trabalhadores, em suas formas individuais ou coletivas de revolta e resistência centradas basicamente na redução do tempo de trabalho despendido, quanto, contraditoriamente, pelo lado do capitalista, a contínua busca de redução do tempo de trabalho incorporado na força de trabalho, tendo em vista a ampliação efetiva do tempo por ela despendido durante a jornada. Essa defasagem que o capitalista tenta ampliar, entre tempo de trabalho incorporado (não pago) e despendido, aprofunda as desigualdades nesse processo de troca de tempos de trabalho: aquele incorporado na força de trabalho ou tempo de trabalho socialmente necessário à sua (re) produção enquanto mercadoria (traduzido na forma salário) e o sobretrabalho que cresce em relação ao trabalho necessário para a produção de bens e serviços.
Na produção, o trabalhador acrescenta um valor maior que aquele que ele tem em si incorporado; esse valor está incorporado nas mercadorias produzidas, só que não lhe é pago. Portanto, a origem da mais-valia reside no excedente quantitativo de trabalho que extrapola o processo de mera produção do valor, em que o trabalhador produz apenas o equivalente ao valor da sua força de trabalho pago pelo capitalista. Para garantia dessa exploração, o capitalista dispõe do seu próprio código jurídico. Esta é a forma capitalista de produção de mercadorias.
Evidente está o caráter contraditório do trabalho na forma de produção capitalista, pois que, se por um lado é uma relação desigual entre homens, em termos da propriedade dos meios de produção e apropriação do excedente, por outro é um processo amplamente socializado na esfera da produção e que supõe sua igualação enquanto trabalho abstrato, sem o que não se dá a troca.
Chamo de mais-valia absoluta a produzida pelo prolongamento do dia de trabalho, e de mais-valia relativa a decorrente da contração do tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração na relação quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho. (...) Para diminuir o valor da força de trabalho, tem o aumento da produtividade de atingir ramos industriais cujos produtos determinam o valor da força de trabalho, pertencendo ao conjunto dos meios de subsistência costumeiros ou podendo substituir esses meios. (MARX, 2008: 363).

O conceito marxista de mais-valia, como já foi indicado, evoluiu, a partir das diversas circunstâncias históricas e tecnológicas, nessas duas direções que não se excluem: a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa. A primeira, conforme Bruno (1996), apoiando-se em João Bernardo, é obtido mediante extensão da jornada de trabalho para além do tempo de trabalho necessário; eleva-se o tempo de trabalho excedente em função do aumento do trabalho despendido pelo trabalhador. Desse modo, há um crescimento do resultado do trabalho, pois são produzidas mais unidades, sendo, no entanto mantido o valor de cada uma delas. Não se dá a diminuição do valor nas unidades produzidas quando permanecem os mesmos processos de organização do trabalho, a mesma base técnica.
É uma forma de exploração predominante nas sociedades menos desenvolvidas, que convivem com a estagnação tecnológica e o trabalho simples; nelas agrava-se a exploração; permanecem praticamente inalterados instrumentos, maquinarias e sistema de organização do trabalho. Suas repercussões na força de trabalho são: aumento absoluto do sobretrabalho, redução do montante de bens e serviços incorporados, extensão real da jornada e intensificação do ritmo de trabalho, com a eliminação da "porosidade" (intervalos na cadência do processo de trabalho), ou tudo isso combinado.
A segunda, ou mecanismo de mais-valia relativa, é explicitado também por Bruno (1996), com base em Bernardo (1991), como uma forma mais requintada de sujeição do trabalho ao capital que predomina nos países ou regiões detentores de um padrão de acumulação de valor situado no outro extremo, devido ao desenvolvimento econômico, tratando-se então de economias mais dinâmicas. Nela a jornada de trabalho não é aumentada, mas há uma redução do tempo de trabalho necessário, o que implica dizer diminuição do valor incorporado nos bens e serviços consumidos pela força de trabalho e ampliação do sobretrabalho. Isso é concretizado hoje, não pela redução do montante de bens e serviços consumidos pelo trabalhador, mas sim pela simples redução do valor neles incorporados (tempo de trabalho socialmente necessário). Aqui o trabalho caracteriza-se como predominante e crescentemente complexo em decorrência das inovações tecnológicas e transformações das formas de organização dos processos de trabalho.
Diante das diversas questões aqui colocadas, cabe indagar se o professor da escola pública básica - de educação infantil, ensino fundamental e médio - não já teria perdido o conhecimento do processo pedagógico geral, diante, por exemplo, da fragmentação, da dissociação planejamento/execução/avaliação imposta pelas várias esferas do sistema educacional do país (públicas ou privadas). Também é questionável o teor de sua relação, como trabalhador, com a natureza e com os próprios educandos, no atual estágio de desenvolvimento econômico; estaria ela ainda mediada por instrumentos ou o educador passou a ser mero mediador entre eles e a natureza e entre eles (capacidade de trabalho em potencial) e o capital? É nessa perspectiva que se coloca uma reflexão sobre a escola pública, tanto quanto a privada, estarem se constituindo progressivamente, mais que antes, em potencializadoras por excelência de força de trabalho a ingressar no mercado para ser consumida pelo capitalista.

CONCLUSÃO
Nessa perspectiva é possível afirmar que a força de trabalho do professor, direta ou indiretamente, sempre esteve, de certo modo, direcionada para viabilizar o modelo econômico vigente em cada período histórico, independente da natureza do seu contrato de trabalho e das condições oferecidas para o exercício das práticas educativas. O produto da escola é o aluno que, ao sair da escola, escolarizado, carrega consigo um acréscimo de atributos na sua qualificação para oferecer no mercado, mesmo que o grau em que isso se verifica esteja permanentemente questionado tanto por educadores quanto por empresários, em função da dinâmica atual da economia, particularmente no que se refere à qualidade do desempenho da escola pública.
Portanto a função social, e ao mesmo tempo política, da educação escolar, e do professor em especial, é mediadora nas relações que se dão no âmbito da sociedade, estando pautada na relação capital-trabalho (de compra/venda da força de trabalho na empresa capitalista), ou melhor, nas exigências do processo de desenvolvimento econômico.
Não podendo escapar dessa determinação do real, parece caber ao docente algo mais que apenas preparar força de trabalho qualificada para ser utilizada na produção de novos bens e serviços. Ampliar o universo cultural do aluno, através de uma formação crítica, socializando, dessa forma, o conhecimento científico acumulado historicamente e permanentemente negado à maioria dos trabalhadores, é uma função social e política mais elevada que está posta para a escola pública. Também lhe compete, na perspectiva aqui desenvolvida, o repensar do processo tecnológico brasileiro visando à apreensão de indicadores e referências para a prática pedagógica escolar, uma vez que é hoje imprescindível a participação tecnológica do cidadão. Educação escolar é, portanto, além de formar para o trabalho, formar para a cidadania.

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12. RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. Trad. José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo: Brasiliense, 1988.
13. SAVIANI, Dermeval. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, Politécnico de Saúde Joaquim Venâncio, 1987 (trabalho apresentado durante o "Seminário Choque Teórico", 2 a 4/12/87).
14. SILVA FILHO, Horácio Penteado de Faria e. "O Empresariado e a Educação". In: FERRETTI, Celso João et al (orgs.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar. Petrópolis (RJ): Vozes, 2001 (p. 87 - 92).

DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DA AUTORA E CO-AUTORA

1. Ada Augusta Celestino Bezerra ? Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Mestra em Educação pelo IESAE/FGV ? Rio de Janeiro. Pedagoga pela UFS, SE. Professora Titular na UNIT, Aracaju, SE, atuando na Graduação e no Mestrado em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Gestão Socioeducacional e Formação de Professor (UNIT/CNPq).
2. Gilnara Guedes dos Santos - Pós ? Graduanda em Educação e Gestão pela Faculdade Pio Décimo, Aracaju - SE. Graduada em Ciências Biológicas Licenciatura pela Universidade Tiradentes ? UNIT, Aracaju, SE. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Gestão Socioeducacional e Formação de Professor (GPGFOP/UNIT/CNPq).