O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO RS1 André Rodrigo Kohlrausch2 Janete Maria Hummes Samuel Tomazi Kári Lúcia Forneck3 Resumo: A escravidão brasileira, apesar de abolida em 1888, apresenta ainda situações de trabalho degradante, com desrespeito aos direitos humanos, mais conhecidas como escravidão contemporânea. O Brasil, com o intuito de solucionar essa problemática, assinou tratados internacionais atribuindo direitos aos trabalhadores e penalizando a prática desse abuso, no Código Penal. O Ministério do Trabalho realiza atividades de fiscalização em todo o território nacional e grandes operações são realizadas nos estados do Pará e de Minas Gerais, onde ocorre a maior incidência de escravidão contemporânea. No Rio Grande do Sul, também ocorrem diversas ações para combater a ocorrência de irregularidades com os trabalhadores. Dados do Ministério do Trabalho evidenciam que as operações realizadas nos Estados do Pará e de Minas Gerais levam à libertação de trabalhadores e à regularização da situação de trabalho, o que faz com que muitos permaneçam com o emprego. No Rio Grande do Sul, o número de irregularidades é bem menor, mas a partir das fiscalizações pode-se dizer que praticamente todos os trabalhadores são regularizados e permanecem como empregados. Palavras-chave: trabalho escravo, escravidão contemporânea, fiscalização, Rio Grande do Sul Considerações iniciais As presentes reflexões têm como tema, em sentido amplo, a problemática do trabalho escravo no Brasil e, especificamente, no Rio Grande do Sul. O estudo é de relevância na sociedade atual em que, oficialmente, está erradicado o trabalho escravo. Contudo, ele ainda ocorre de forma clandestina em todo o país, inclusive no nosso Estado, no qual pessoas são obrigadas a trabalhar e a se sujeitar a situações de trabalho degradantes. O objetivo deste artigo é demonstrar que, na atualidade, o trabalho escravo permanece, por mais inverossímil que isso possa parecer. Há um aparato de leis para proteger o trabalhador brasileiro, bem como o comprometimento do Brasil, que firmou convênios internacionais com vistas à extinção do trabalho escravo, além de existir, é claro, uma lei de abolição da escravatura, assinada há mais de 100 anos. A fundamentação teórica deu-se através de livros, artigos científicos de pesquisadores brasileiros, no Código Penal e na Constituição da República Federativa do Brasil. Quanto aos dados numéricos analisados, a base de consulta foi a página eletrônica do Ministério do Trabalho, que publica, anualmente, os resultados obtidos em suas operações de fiscalização. Foram selecionados os quatro estados em que há a maior incidência de trabalho escravo a fim de estabelecer uma comparação à situação do Rio Grande do Sul. Quanto à organização do artigo, inicialmente apresenta-se uma visão histórica da escravidão, desde a escravização dos índios até a escravidão contemporânea, além das iniciativas adotadas para combatê-la. Após, apresentam-se e analisam-se os dados coletados, comparando os quatro estados em que há maior incidência de trabalho escravo com os números do Rio Grande do Sul. 1 O trabalho escravo no Brasil: história e legislação O trabalho escravo no Brasil, segundo Libby e Paiva (2000), iniciou após a chegada dos portugueses através da escravização dos povos nativos que habitavam regiões litorâneas e regiões interioranas próximas do litoral. Os índios eram mão de obra barata, porém, pouco a pouco foram adoecendo, e vítimas das pestes trazidas pelos Europeus, muitos acabaram morrendo por falta de defesas imunológicas a essas doenças. Com um número reduzido de mão de obra indígena, os senhores de engenho começaram a comprar negros que, apesar do elevado preço, compensavam com a resistência física e a adaptação ao trabalho em território brasileiro. Os escravos africanos trabalhavam nas fazendas em afazeres diversos, como no cultivo da cana de açúcar, do arroz, do algodão ou nas atividades de mineração, dependendo da região em que estivessem. A escravidão no Brasil era conhecida como um trabalho compulsório, em que o trabalhador era uma mercadoria e a recompensa que recebia era a alimentação e a vestimenta, elementos de mera sobrevivência (LIBBY; PAIVA, 2000). Lamentavelmente, para garantir a obediência dos escravos, os senhores dos engenhos, das fazendas e das minas, aplicavam castigos físicos diante dos demais, a fim de inibir que outros se encorajassem e desobedecessem. Essa prática perdurou até a assinatura da lei Áurea, em 1888, que segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2006), acabou com a possibilidade de se possuir legalmente um escravo. Contemporaneamente, a OIT (2006) entende o trabalho escravo como uma atividade degradante, e não há dúvida de que uma das principais características desse tipo de trabalho é o fato de cercear a liberdade dos trabalhadores. Muitos homens, mulheres e até crianças ficavam e ficam presos por diferentes razões, entre as quais se podem citar: pela servidão de dívida, em que as pessoas acreditam que devem algo ao seu patrão; pelo isolamento geográfico, que dificulta as fugas; e pela ameaça às suas vidas. Conforme Afonso (2013), o Brasil ratificou normas internacionais que proíbem a escravidão e o trabalho forçado, através de diversos decretos, obrigando-se perante a comunidade internacional a abolir todas as formas de escravidão. Além dos documentos internacionais, a própria legislação brasileira tem avançado acerca das relações de trabalho, principalmente no que tange à condenação de trabalho escravo. A própria Constituição Federal, por exemplo, condena o trabalho escravo, ao garantir a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, além de salvaguardar direitos sociais e individuais aos indivíduos, tais como a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade, a garantia de que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. É também garantida a livre locomoção no território nacional; é assegurado que não haverá penas de trabalhos forçados e cruéis; ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; e é asseverado que não haverá prisão por dívida, salvo em caso de pensão alimentícia. O Código Penal, da mesma forma, em seu artigo 149, condena a prática de manutenção do trabalho escravo, além de prever penas para quem o praticar, consoante pode ser visto abaixo: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1° Nas mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2° A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (GRECO, 2009, p. 339) De acordo com Afonso (2013), porém, todas essas regulamentações não conseguiram extinguir a prática ilegal do trabalho humano que apenas adquiriu novos formatos e nomenclaturas como “escravidão contemporânea”, “trabalho forçado”, “condições análogas à escravidão”, dentre outras. Ainda, conforme a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (2003), hoje em dia, a escravidão ocorre clandestinamente, além de se identificar pelas seguintes características: autoritarismo, segregação social, racismo, desrespeito aos direitos humanos. A eliminação do trabalho escravo constitui uma condição básica para o Estado Democrático de Direito. O Governo, ciente dessa problemática, lançou em 2003, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo4. As principais medidas previstas no plano são: intensificar a fiscalização móvel do Ministério do Trabalho; incluir os crimes de sujeição de alguém à condição análoga à de escravo nos crimes hediondos; inserir cláusulas impeditivas para a obtenção ou manutenção de crédito rural; criar e manter uma base de dados integrada com a identificação de empregadores, locais de aliciamento e ocorrência do crime. No ano de 2008, foi lançado o 2º plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo5, cujo objetivo foi ampliar a abrangência do 1º plano. Projetos de Emenda Constitucional – PEC foram apresentados ao Congresso Nacional. Uma importante conquista foi a aprovação da PEC 81/2014, que entrou em tramitação com a denominação PEC 57/99, tramitando na Câmara dos deputados e no Senado Federal durante 15 anos. A aprovação altera o artigo 243 da Constituição Federal que passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 243 As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei. (Constituição da República Federativa, 1988, texto digital). Após apresentar a legislação que faz referência ao trabalho escravo no Brasil, passa-se à análise dos dados obtidos junto à página eletrônica do Ministério do Trabalho, que divulga listas anuais com o resultado das fiscalizações do Órgão. Foram selecionados os quatro estados com os maiores índices de incidência do trabalho escravo, quais sejam, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso e Pará, para serem comparados ao Rio Grande do Sul. 2 Apresentação e análise de dados O Ministério do Trabalho divulga um cadastro de empregadores que foram flagrados mantendo empregados em situação irregular. A relação6 possui em torno de quinhentos e sessenta nomes, dos quais nove são do Rio Grande do Sul e, dentre eles, um do Vale do Taquari. Na página eletrônica do Ministério do Trabalho7 constam também informações acerca de operações realizadas no Rio Grande do Sul. Uma delas ocorreu em Antonio Prado, em julho de 2013, quando foram detectadas diversas irregularidades, como a não disponibilização de instalações sanitárias, alojamento inadequado e precário local para o preparo de alimentos e refeições. Os trabalhadores não utilizavam Equipamentos de Proteção Individual – EPI´s, tinham que providenciar suas próprias ferramentas de trabalho e tampouco tinham registro na carteira de trabalho. Outra aconteceu no ano de 2012, no município de Vacaria, onde foram resgatados 41 indígenas em condições análogas ao trabalho escravo. Os trabalhadores dedicavam-se a atividades relacionadas à cultura da maçã, e eram submetidos a péssimas condições de trabalho, além de não terem registro na carteira de trabalho. Analisando os dados apresentados8, pode-se verificar que as operações de fiscalização concentraram-se nos estados do Pará e de Minas Gerais. O maior número de operações realizadas foi no Pará no ano de 2010, chegando ao total de 33. No Rio Grande do Sul, o número de operações no período analisado variou de 1 a 5 por ano, um número baixo se comparado aos outros 4 estados utilizados como comparação. Fonte: elaborado pelos autores. No gráfico a seguir, é realizada a comparação dos estados em relação ao número de autos de lançamentos lavrados pelas equipes de fiscalização. Fonte: elaborado pelos autores. Nos Estados do Pará e de Minas Gerais, em média, ocorre um maior número de autuações, o que provavelmente justifica um número maior de operações de fiscalização nesses estados. O Rio Grande do Sul, em 2013, teve 86 autuações, número pequeno se comparado ao Estado do Pará, que teve 861 autuações no mesmo período. Nas operações de fiscalização há trabalhadores resgatados, cujos números estão demonstrados no gráfico abaixo: Fonte: elaborado pelos autores. É perceptível o grande número de empregados em situação irregular que são resgatados nos estados do Pará e de Minas Gerais, o que demonstra a importância das operações de fiscalização nesses Estados. Os números mais significativos estão no estado do Pará, onde foram libertados 559 trabalhadores no ano de 2010 e 563 no ano 2012. No Rio Grande do Sul, os números aumentaram no ano de 2012 e 2013, com 59 e 44 libertações, respectivamente. Por outro lado, as fiscalizações têm conseguido fazer com que alguns trabalhadores fossem regularizados, saindo da situação escravista e com a permanência do emprego. Fonte: elaborado pelos autores. As maiores regularizações ocorreram nos anos de 2010 e 2012 no estado do Pará. Em 2010 foram 742 trabalhadores regularizados e em 2012 foram 395 regularizações. No estado do Rio Grande do Sul, quase a totalidade de trabalhadores libertados foi regularizada pelos empregadores. No ano de 2012, 56 trabalhadores foram regularizados, frente a 59 libertados. Interessante observar que no ano de 2013 todos os libertados foram regularizados. Considerações finais Após a análise dos dados, torna-se visível a desigualdade de ocorrências em nosso país. Em alguns estados, como o Pará e Minas Gerais, há ainda muitos casos e em número bem superior aos demais estados, por isso, provavelmente, é nesses dois Estados que ocorre uma fiscalização mais intensa. No Rio Grande do Sul, as autuações são em quantidade bem menor, o que pode justificar um número de operações irrisório. As operações de fiscalização têm por objetivo resgatar os trabalhadores e, se possível, fazer com que o empregador regularize a situação deles para que tenham um emprego e, consequentemente, uma fonte de renda. Os melhores números, considerando o percentual de trabalhadores que foram regularizados, ocorreu no Rio Grande do Sul, principalmente nos últimos dois anos: em 2012, 56 trabalhadores foram regularizados frente a 59 libertados, o que significa quase 95% de empregados regularizados; em 2013, 100% dos empregados libertados foram regularizados. Constatamos que o trabalho escravo existe no Rio Grande do Sul, inclusive no Vale do Taquari, com o formato de trabalho escravo contemporâneo; no entanto, em comparação aos demais Estados, mesmo que sejam números relevantes, pode ser considerado baixo. Referências AFONSO, Drielli Serapião. Escravidão contemporânea: possibilidades jurídicas de combatê-la. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 118, nov 2013. Disponível em: . Acesso em 12 jun. 2014. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 29 jun. 2014. _______. Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo. 2003. Disponível em: Acesso em 04 mai. 2014. _______. Ministério do Trabalho e Emprego. 2º Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo. 2008. Disponível em:nacional.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2014. _______. Ministério do Trabalho e Emprego. Inspeção do Trabalho: Combate ao Trabalho Escravo Disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/portaria-do-mte-cria-cadastro-de-empresas-e-pessoas-autuadas-por-exploracao-do-trabalho-escravo.htm. Acesso em 04 mai. 2014. _______. Ministério do Trabalho e Emprego. Inspeção do Trabalho: Combate ao Trabalho Escravo. Disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/resultados-das-operacoes-de-fiscalizacao-para erradicacao-do-trabalho-escravo.htm. Acesso em 04 mai. 2014. _______. Ministério do Trabalho e Emprego. Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – SRTE/RS. Disponível em http://portal.mte.gov.br/delegacias/rs/noticias-da-srte-rs/list-pagination/41.htm. Acesso em 23 jun. 2014. GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. LIBBY, Douglas Cole; PAIVA, Eduardo França. A escravidão no Brasil: relações sociais e conflitos. São Paulo: Moderna, 2000. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho escravo no Brasil do século XXI. 2006. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2014.