Num friorento feriado e sem dinheiro para passar uns dias em Buenos Aires, me conformo em ouvir um disco de vinil de Carlos Gardel com seus belos tangos como Adios Muchachos, Mi Buenos Aires Querido, Mentira entre outros grandes sucessos do artista.

O disco é Mano a Mano, um antigo vinil e tem uma dedicatória do saudoso Nilson, um carioca que se refugiou em Barra de São João, no município de Casemiro de Abreu, litoral fluminense, terra do poeta romântico e onde oficialmente está sepultado. Nilson, na época, dirigia o restaurante Casa Grande com sua mulher Nair, onde era servida uma saborosa carne assada com batatas coradas; Nilson adorava música, principalmente tangos. Quando lá chegamos pela primeira vez ele se aproximou e antes de fazer o pedido perguntou pelas nossas preferências musicais e nos preparou uma seleção que incluía o Gardel.

Alguns dias depois estávamos ajudando o casal a servir refeições no restaurante, pois um dos empregados abandonou o emprego. Era só alegria e muita cerveja gelada.  Na volta  para São Paulo Nilson nos presenteou com o disco. Mas não ficou só nisso. Fomos muitas vezes para lá onde fizemos amigos como o Fiico, muito parecido com o Martinho da Vila, um violonista de primeira. Foi também lá que encontramos a escritora Lygia Fagundes Telles, curtindo o delicioso refúgio.

Nilson e Nair se separaram e ele retornou ao Rio, de onde viajou para outra dimensão. O Fiico continua em Barra de São João, dirigindo uma pousada e uma imobiliária. À noite dá umas canjas nos bares de Barra de São João e Rio das Ostras, praia vizinha, tocando e cantando o que há de melhor na MPB.

E por falar em Gardel (Charles Romuald Gardés),  é bom lembrar que ele não era um argentino de berço, pois há uma versão de que nasceu no Uruguai e de lá foi para a França. Outra versão é que nasceu em Toulouse, França. Seu pai seria um poderoso chefe político uruguaio ou então o francês Paul Larasse ou Romuald Gardés.  Sua mãe mudou-se para a Argentina, procedente de Bordeaux, França  em 1893.  Gardel não gostava de falar sobre o assunto e dizia que nasceu em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade.

O tango que tornou Gardel um mito, teve sua origem no baixo meretrício do cais do porto de Buenos Aires e era uma dança mal vista e considerada imoral, tal como o samba  e o maxixei no Brasil até o início do século passado. Aliás, Ernesto Nazareth, compositor carioca, criou o Tango brasileiro, mas por causa das diferenças entre os dois, ficou conhecido mesmo como “chorinho”.  E para quem pensa que o tango está ligado a uma cultura hispano-europeia, vai se decepcionar, pois há uma corrente que defende que tem laços no sincretismo afro-americano.  Segundo uma das versões de origem, os negros cubanos que trabalhavam em navios que lá aportavam, teriam influenciado na criação do ritmo trazendo na bagagem as danças caribenhas.

Entretanto, o tango só ganhou status depois que os franceses o levaram para os salões de Paris, lá ganhando um polimento aristocrático. Assim, o tango retorna à Argentina com roupa nova e pode então ser entronizado nos salões da elite portenha, como um ritmo elegante, sensual e cheio de charme.

O nosso amigo Nilson, que não era branco, gostava mesmo era de tango e música erudita. Os clássicos geravam longos papos com a minha mulher Celinha que estudou durante anos em conservatório e só tempos depois se libertou e dividiu seus interesses musicais com as obras de Tom Jobim, Milton Nascimento e Ivan Lins, seus compositores brasileiros prediletos. Enfim, as interpretações de Gardel, o tempo nublado e uma taça de vinho deixa a gente sensível como o diabo.