O Tabernáculo e a Teoria Social Freudiana

Iniciarei este estudo com um questionamento: É possível afirmar que o Tabernáculo seja um grupamento psicológico de acordo com o pressuposto na teoria da psicologia social freudiana? Para responder é necessário identificar tanto no contexto em que se inseriu como na própria história deste grupo, os dispositivos que o caracterizam como tal.
No entanto, de qualquer ângulo que se analise o Tabernáculo, a seita ainda é, de certo modo, uma estranha tanto para a imprensa como para a sociedade capixaba. Prova disto foi que, apesar do destaque que recebeu e recebe com demasiada freqüência na mídia desde 2006, ainda pairam dúvidas e desconfianças naqueles que, por motivos diversos, acompanham de perto o desenrolar do processo social deflagrado. Mesmo porque o grupo se encontra ativo e progressivo, apesar de ter sido noticiada por pelo menos 43 reportagens sucessivas, entre manchetes de primeira página nos principais jornais e telejornais capixabas; com denuncias e escândalos envolvendo os fiéis da seita, o ministério público e o próprio pastor L, presidente da instituição.
De modo que é factível a utilização destes acontecimentos públicos, uma vez que noticiados pelas diferentes mídias, como fonte de pesquisa e análise das características do grupo. Mesmo porque as notícias ora priorizaram a visão dos familiares que viram seus parentes convertidos entregarem seus bens para viverem excluídos do convívio familiar. Em outras oportunidades os repórteres anunciam a desconfiança e preocupação das autoridades judiciais, diante de suspeitas de exploração de trabalho escravo, maus tratos e violação de direitos humanos. Principalmente a partir do momento em que os membros do grupo foram segregados num precário albergue na Vila Rubim, zona central da capital capixaba, e mais tarde conduzido a um sítio retirado no interior. Foram lá afastados totalmente do convívio da sociedade, plantando para sobreviver e dormindo em barracas de lona.
Do momento em que estas pessoas doaram tudo o que tinham para a seita e foram morar nas dependências religiosas, causou revolta nos pais, filhos e irmãos que não tardaram em procurar a mídia e o ministério público. Entre os depoimentos, uma mãe diz ter visto seu filho universitário trabalhando na roça vestido com uma camisa onde se lia: "Obrigado por cuidar de mim", com a foto do pastor e a frase "O anjo do sétimo dia". Os parentes só podem ter contato com a família convertida se for membro da seita. Os jornais noticiaram em 2007 a morte, por derrame, de um dos integrantes da seita impedido de receber visitas da família e ser levado ao hospital. O Ministério Público acompanhou todos os desdobramentos, mas é importante não ser taxativo e apurar os fatos com cautela; afinal, crença religiosa é algo complexo que exige, acima de tudo, respeito.
A crença da seita Tabernáculo baseia-se na necessidade de um profeta nos últimos dias. Cita trechos do Velho Testamento em que o povo deu credito a vocação de Moisés para guiá-los e assim não se corromperam por falta de profetas. Os fiéis crêem que Deus não fala diretamente, mas pelo novo profeta Branham, um americano morto em 1965, que seria o sétimo anjo citado em apocalipse. Ele deixou um legado de mais de 1200 sermões e uma profecia polêmica em que previu a "apostasia do fim" com o arrebatamento dos escolhidos em 1977. Passada a data, sem que a profecia se cumprisse, o Tabernáculo da Fé perdeu força e muitos adeptos na América do Norte. Porem no Brasil um grupo perseverou no interior, onde promoveu adaptações aproximando a doutrina de outras insurgentes denominações neo pentecostais.
Dentre os obreiros que militavam no Brasil, o pastor L seguiu de forma independente, crendo num chamado que, desde 1983, o habilitou e levou a pregar as doutrinas consideradas hereges da "Ressurreição isolada do irmão Branham", por meio da seita Tabernáculo. A seita hoje tem sedes em cinco cidades e uma propriedade rural. Conta com aproximadamente 600 fiéis.
Seria uma comparação impertinente, talvez, lembrar de Antonio Conselheiro, o líder religioso que no final do século XIX, em pleno sertão nordestino, de barbas, cabelo longo e cajado na mão percorria latifúndios baianos anunciando que o "O fim está próximo". A comunidade de Canudos e o fanatismo religioso dos apocalípticos messiânicos seriam uma analogia possível ao Tabernáculo?
No século pós-moderno em que vivemos a diversidade tem sido o laboratório para o aumento de perspectivas religiosas, criando dogmas em surtos de novas seitas que parecem fluir das mais variadas correntes de pensamento; seja por meio de sofismas ou verdades de fé. Assim logo houve lugar para a seita Tabernáculo Vitória.
Mas até que ponto é válido tal ideologia religiosa nos tempos atuais? Estamos no apogeu do ceticismo humano, que Freud apontou como modernidade bloqueada em sua Teoria do Progresso. É difícil aos pós-modernos aceitarem uma ordem religiosa desse tipo, no entanto a livre crença deve ser respeitada como preceito da civilização dos povos desenvolvidos.
Este seria realmente um movimento messiânico apocalíptico ou mais uma seita capitalista dos "homens da fé" que pretendem sustentar seu ego e bolso com a boa vontade do povo.
Partindo da ótica da "Teoria da Psicologia das Massas" de Freud, é possível identificar o grupo Tabernáculo como um grupo psicológico ao analisar os transcorrer dos fatos e as reações das pessoas envolvidas na história da dita seita. Assim identificam-se vários dispositivos que aproximam das características apontadas por Freud, tanto quando o foco é a massa, como quando passa ao ideário central ou mesmo a atuação de seu líder.
Existe ali uma clara influencia sobre um grande número de pessoas estranhas representadas pelos fiéis. Simultaneamente, são ligados por algo que se anuncia como "uma proposta de salvação". Tudo a partir de um suposto e iminente "final dos tempos", o pressuposto oriundo da "profecia" de Branham, readaptado às condições locais pelo pastor Lopes. O que Freud lembra como busca desenfreada entre a vida e a morte, Eros e Tanato.
Neste caso, a massa não é representada por uma nação, casta ou profissão, mas a instituição religiosa. No entanto, ao observar cronologicamente, em um dado momento da história recente, houve um rompimento da continuidade natural do grupo, uma "ruptura" para melhor associar à teoria freudiana. Especificamente quando ocorreram fenômenos especiais, expressos a partir de um "herd instinct, group mind", ou pressões de um instinto social em função da ação direta e pessoal de um novo líder, o "revelado" pastor L.
Na busca da identificação da forma como o grupo se constituiu, a conseqüente descrição dos fenômenos mentais que a envolveram, tendo como base tanto Freud como Lê Bom, sobre a mente grupal, há de se discutir como estas pessoas passaram a constituir um grupo psicológico. E ainda como ele adquiriu a capacidade de exercer toda esta influencia sobre a vida mental dos indivíduos? Qual a natureza da alteração mental que lhes forçou?
Por mais diferentes que possam ser todos estes homens, mulheres, idosos e crianças, oriundos de diferentes realidades sociais e comunidades, ao comporem o grupo Tabernáculo, eles se apossaram de uma nova mentalidade. Como uma espécie de idéia coletiva que os fez sentir plenamente os "eleitos da profecia".
Numa reflexão a "Totem e Tabu", sentindo-se, todos os fiéis, muito bem protegidos e constantemente estimulados a se manter coesos, "saciados" pela fala "solene" do líder, pastor L, a quem aludem a figura do "Pai primevo". Ele, desta forma, se apresenta e anuncia como o único capaz, autorizado e predeterminado pelo profeta americano, a conduzi-los em segurança ao dito "arrebatamento".
Esta característica, especialmente, de acordo com a teoria social freudiana, pode justificar a forma como sentem estas pessoas enquanto na coletividade. Eles pensam e agem de maneira muito diferente do que fariam isoladamente, principalmente antes de aderir ao grupo Tabernáculo. Esta observação das alterações mentais nas reações do indivíduo enquanto ainda isolados, distantes da influencia direta do pastor L, se fortalece no depoimento inconformado, até incrédulo, dos convivas. Seria esta uma das mais notáveis peculiaridades apresentadas pelo grupo de cunho psicológico. A constatação de que certas idéias e sentimentos só surgem ou se transformam em atos em no grupo fica bem caracterizado.
Seguindo o mesmo pensamento, mais um dispositivo do grupamento psicológico presente neste caso seria a existência de um "elo" a uni-los. A contemplação das "revelações proféticas" de Branham? A moderna psicologia das massas lembra que a vida consciente é de pequena importância se comparada com sua vida inconsciente. De modo que atos conscientes são o produto de um substrato inconsciente criado. Por detrás de atos confessos estão causas secretas, e por detrás delas, muitas outras, mais secretas ainda, ignoradas pelos próprios. No Tabernáculo os dotes individuais foram removidos e as funções inconscientes, ainda semelhantes em todos os fies, ficaram expostas, marcando a submersão do heterogêneo no homogêneo.
Enquanto grupo psicológico do tipo religioso, ele adquiriu um novo poder, rendendo a instintos que jamais os seus componentes, no caso os fiéis, exporiam isoladamente. Um exemplo é o polêmico episódio das vultosas doações financeiras, sobre a forma de dízimo dos 350 fiéis. Foi uma doação em bloco, numa única semana; fato largamente noticiado nos jornais frente ao protesto e indignação dos familiares. Houve até uma tentativa frustrada de impedimento e interdição legal. As famílias das quais literalmente saíram os fies não compreendem a razão absurda que os moveu a abrirem mão de absolutamente tudo o que possuíam e lutaram na vida (saldos bancários, documentos de veículos, jóias, obras de arte e escrituras de imóveis), entregando nas mãos do pastor L, a quem conheciam há poucos meses.
O rendimento dos instintos individuais fica mais claro pela sujeição aos modos precários de vida na comunidade, no trabalho braçal (por mais de 14 horas diárias) e no isolamento da sociedade. Seria então o desaparecimento da consciência, da ansiedade social, do senso de responsabilidade? Tanto Freud como Le Bom indicam o "contágio", a tendência em que o indivíduo sacrifica seu interesse pelo coletivo.
A sugestão é outra característica marcante. Quando cometem atos contraditórios ao seu caráter e hábitos, os fieis expõe a perda da personalidade consciente para um operador, num estado que Freud denominou "fascinação". Mas eles não se acham individualmente consciente de seus atos, enquanto seu grupo religioso se torna impetuoso. Um exemplo foi o ocorrido em 2008, quando, segundo a mídia, 32 mulheres enfrentaram policiais durante uma diligencia à antiga sede urbana. Os oficiais investigavam a denuncia de ocultação de um homem doente, quando foram apedrejados e feridos com água fervente.
Entre as mulheres do Tabernáculo, segundo informações de parentes, existem pelo menos seis professoras e quatro auxiliares administrativos. Assim mesmo elas corroboram o afastamento escolar de dezenas de crianças quando partiram para a propriedade rural. A situação só foi revertida após interferência das autoridades. De modo que se fortalece a idéia de que o indivíduo quando isolado é culto e bem informado; no entanto na multidão se transforma em um bárbaro, agindo pelo instinto, outro dispositivo indicado pela teoria freudiana. Uma semelhança entre vida mental dos povos primitivos e das crianças. Dado à impulsividade, mutabilidade e irritabilidade do grupo.
Para a psicologia social é importante a noção do inconsciente e da comparação com a vida mental dos povos primitivos. Nestas circunstâncias especiais os princípios éticos do grupo são maiores que os dos indivíduos. Apenas um grupo psicológico é capaz de um grau tão elevado de desprendimento dos bens materiais e devoção ao ideal. O que é reforçado no intenso cunho econômico e de divisão da força de trabalho enfatizado permanentemente por L nos cultos.
Para o Tabernáculo "não há premeditação" e a realização dos desejos de seu líder, o pastor L, deve ser realizada "apaixonadamente". Também não há limites "nem críticas" aos seus dizeres, mais um dispositivo a ser considerado.
Ao que parece o grupo deseja, quer, ser conduzido a algum lugar seguro, o arrebatamento neste caso, dirigido e oprimido na vida terrena em nome da fé. Seriam assim considerados conservadores como seres primitivos, como crianças e, por que não dizer, neuróticos. Uma busca inconsciente e dolorosa pela satisfação dos desejos, da libido.
É mais possível que o efeito sobre o grupo seja fruto também do dispositivo que Freud chama de "repetição sistemática"; o "exagero" por parte do líder, o pastor L. Um exemplo disto esta num vídeo amador de domínio público sobre um culto fechado do Tabernáculo. Nele o grupo se mostra extremamente intolerante com os não batizados, os não membros do grupo. Seriam estes considerados impuros e excluídos da salvação.
Caracteriza também um dispositivo o fato de se manterem obedientes cegamente à "autoridade inquestionável" do pastor. Mais ainda as "palavras solenes" de L, ao descrever o processo pelo qual se dará o "arrebatamento"; relembrando sua própria trajetória e concepção da profecia de Branham. Seus argumentos nunca são combatidos. Ele "alimenta" assim "ilusões" do grupo, como diria Freud "anestesiando" as frustrações e os sofrimentos de cada um.
É importante lembrar que estas fantasias se refletem às vezes na histeria das neuroses e o grupo é um "rebanho obediente ao líder"; ele mesmo "fascinado" por uma idéia profética, a fim de despertar a fé coletiva. Esta atuação do fascinado Lopes, segue um modelo claro, para que então o rebanho de fiéis o siga coeso.
Ele desfruta de um poder irresistível, um "grande prestígio dentro da seita. Seja por suas idéias ou pelo trabalho "dedicado" na proteção a todos; uma alusão ao "pai primitivo da horda".
Neste caso a liderança de L seria do tipo adquirida e puramente artificial. O que a desabilitaria da questão de liderança do tipo pessoal, seria o fato de não ter sido corrompida pelas perdas importantes pelas quais a seita original passou no ano 1977. Nesta ocasião a profecia de Branham não se cumpriu, pois o mundo não acabou. O que se poderia esperar seria o conseqüente esvaziamento da doutrina nela mesma; o que ocorreu na América do Norte. No entanto L inovou, remendou a doutrina e revigorou-a apresentando a ele próprio, e só ele, como o guia fundamental, a voz viva do sétimo anjo.
A maneira dos indivíduos serem arrastados para o grupo também caracteriza um dispositivo. Segue o princípio da "indução direta da emoção". Parece que o meio provável seja o "contágio emocional", a carga que se intensifica por interação mútua, alimentando a necessidade de estar bem com a maioria. Daí se explica o surgimento do medo, do "receio do perigo da oposição", muito claro na rejeição aos de fora da seita, aos não fiéis, impuros como afirma L, e até mesmo aos seus parentes próximos.
Seria então o "afastamento das inibições"? Algo visível no consentido isolamento do grupo tanto na antiga e precária sede urbana como no sítio interiorano.
A "sugestão" estaria presente na aceitação inquestionável das pregações de L? É possível, já que a doutrina segue firme mesmo sem o cumprimento de nenhuma profecia apocalíptica.
Deste modo, diante dos pensamentos freudianos a respeito da busca individual pela libido, da política, das lideranças e do comportamento da massa enquanto grupo organizado; e ainda contemplando os fatos públicos que se sucederam e ainda sucedem com a dita instituição Tabernáculo, é possível classificá-la como um "Grupo Psicológico" em atividade.
Haja vista a análise dos acontecimentos e comportamentos dos envolvidos prevalece na história alguns dispositivos do grupamento que demonstram a grande influencia da manipulação psicológica: A organização, o elo que os une, o fato de terem algo em comum, a notável mente grupal, a homogeneidade mental expressa na exaltação, a sugestão, a relação conflituosa entre vida e morte, entre desejo e sofrimento, a intensidade das emoções dos membros e ainda a identificação de um líder narcisista, sugestivo e cerceador que, portanto incorpora o próprio mito do Pai Primitivo.
O desenrolar desta história, a saga do Tabernáculo, ainda está por vir. E, exatamente por apresentar tantos "dispositivos" descritos por Fred como fundamentais para o entendimento do comportamento do grupo psicológico, é que merece uma atenção especial por parte da sociedade.
Este conjunto de dispositivos, embora caracterizem muito bem o grupo como de influencia psicológica, não é capaz de determinar o destino que o mesmo seguirá. Os padrões de comportamento descritos por Freud, no entanto apontam a possibilidade de extremos perigosos. Mas o que fundamentaria esta preocupação com o futuro?
A história ocidental é frequentemente recheada por exemplos de grupamentos psicológicos chocantes; de certa forma todos são parecidos, se moldaram em suas lideranças bem sucedidas e delas dependeram de forma vital. Muitos deles de certo que chegaram a beneficiar tanto o grupo como a sociedade como um todo, com ideais nobres, em prol de uma civilização pacífica e fraterna. Porem também foi bem freqüente em todo o mundo, os casos de grupos que cursaram com lastimáveis episódios de exploração e abusos de todo tipo. Situações que foram desde a escravidão, a violência, o terrorismo, até os genocídios.
É difícil prever o que irá acontecer exatamente por ser um processo que envolve a mente de tantas pessoas nestas circunstancias tão especiais. Mas, de qualquer forma, é preciso levar em conta, principalmente diante das características narcisistas do líder, do poder de persuasão e da aceitabilidade da massa, uma tênue linha que separa a autêntica seita, a instituição religiosa pacífica e construtiva, do extremo ideário sectário, racista, e que ainda, diga-se em conta, passa pelo temido pensamento fascista e suas perigosas conseqüências para a sociedade como um todo.