O SPHAN E O ENGESSAMENTO DAS POLÍTICAS DE PATRIMÔNIO 

Rafael Francisco Bensi 

Nos anos de 1930 o Brasil viveu momentos decisivos do ponto de vista da preservação de seu patrimônio, pois a efervescência causada pela semana de Arte Moderna de 1922 trouxe novos questionamentos, novas demandas e novos desafios. Diante disso, como exigência do Estado Novo, surge a necessidade de se criar uma política de preservação do patrimônio, ligado intimamente à cultura e a questão da identidade nacional, foco do governo Vargas.

 Os intelectuais nos anos 1930, envolvidos diretamente com a questão do patrimônio no Brasil, são até os dias de hoje, fruto de estudos, controvérsias e especulações, principalmente porque não foram poucos os intelectuais que procuraram justificar suas ações e obras como uma missão civilizatória ou nacional, como se fossem os detentores de todo o saber necessário e único para a construção de um país. É justamente nesse momento que os intelectuais aproximam-se do Estado, para manter uma relação próxima e ao mesmo tempo complexa, onde havia o predomínio da ideia de modernidade que colocava o Estado como mais moderno que a própria sociedade, sendo um mediador de conflitos e organizador da vontade nacional.

 É importante dizer, que os intelectuais vindos originalmente de setores decadentes da classe dirigente, destituídos pela ampliação do mercado cultural e pela disseminação de diplomas, viam-se ameaçados pela perda sistemática de prestígio decorrente de sua posição.  Dentro dessa conjuntura, recorreram ao Estado, que vinha se fortalecendo num modelo nacionalista e centralizado.

O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) criado em 13 de janeiro de 1937 e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 25 no dia 30 de novembro do mesmo ano, poucos dias após o golpe que instituiu o Estado Novo, precisava de intelectuais dispostos a criar as diretrizes para a chamada cultura nacional. Obviamente, a criação do SPHAN ficou marcada por muitas tensões e embates ideológicos, o que torna a investigação sobre o serviço necessária e útil para entendermos o modelo de preservação de patrimônio que fora adotado, portanto, 

nesse sentido o SPHAN é um capítulo da história intelectual e institucional da geração modernista, um passo decisivo da intervenção governamental no campo da cultura e o lance acertado de um regime autoritário empenhado em construir a “identidade nacional” iluminista no trópico dependente. (MICELI, 1987, p.44)

O papel exercido pelo SPHAN na tentativa de formação da identidade nacional brasileira no início de sua atuação, no contexto do Estado Novo foi bem claro. Durante a participação de Lúcio Costa no SPHAN, o serviço defendia a causa da defesa do patrimônio arquitetônico tradicional do país, e desconsiderando as obras representativas do ecletismo do final do século XIX e início do século XX e do movimento neocolonial. A construção de uma memória coletiva era o objetivo do SPHAN, nesse sentido, o juízo de valor que norteava sua ação centrava-se no paradigma de nação, numa busca de vestígios simbólicos da pátria em formação.

Para Sérgio Miceli (1987), os intelectuais ligados ao SPHAN - aqueles que tiveram seu projeto como vencedor - tinham a plena convicção de que o Barroco era o representante legítimo do nacional, neste sentido, destituindo de valor as demais tendências arquitetônicas e artísticas que construíram nossa cultura e país, pois eles se consideravam os donos da “memória nacional”.

            A política adotada pelo SPHAN demonstra sua faceta classista, pois não deu importância ao ecletismo, fase em que predominavam os mestres de obra, detentores das técnicas construtivas, todavia, sem um diploma acadêmico. Também foram elencadas apenas tendências ligadas às características da classe dirigente em seus diversos ramos de representatividade.

 Diante dessa conjuntura, o popular, ou seja, aquela produção cultural e arquitetônica ligada aos negros, indígenas e pobres, acabou renegado no projeto do SPHAN. Segundo Sergio Miceli, “essa orientação se associa sem dúvida ao fato de terem sido os arquitetos os principais mentores na fixação de propriedade da política preservacionista.” (MICELI, 1987, p.44)

            Faltava aos intelectuais ligados ao SPHAN a percepção do popular, da maneira como a história é construída por diversos setores, através dos embates, das experiências de grupos e coletivas, do processo histórico heterogêneo, criador das mais diversas realidades. Para o SPHAN, a ostentação da riqueza, o monumental, as técnicas ornamentais que traziam a primazia elitizada de uma organização espacial, estavam em primeiro plano, justificando os critérios autônomos adotados pelo serviço.

            Todavia, é impossível negar que os técnicos do SPHAN realizaram seu trabalho com maestria. O que se discute é o processo que levou o SPHAN a adotar um modelo de preservação e não outro, afinal,

é forçoso reconhecer que seus membros fizeram muito bem a política que pretenderam implantar, cercando-se de uma equipe competente de especialistas, organizando um corpo doutrinário de técnicas e procedimentos, obtendo aprovação para uma legislação adequada aos alvos que se propunham, editando uma revista internacional (a mesma que hoje nos convida a esse debate franco sobre a experiência institucional), e suscitando a afirmação de lideranças da estatura de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães no campo da política cultural. (MICELI, 1987, p.44)

Sérgio Miceli, em sua análise do SPHAN, sugere que a elitização nas políticas preservacionistas criou uma “desimportância” política nas instituições culturais criadas no âmbito do Ministério da Educação e Saúde Pública, o que de certa forma criou uma reserva de profissionais que foram recrutados na gestão Capanema. Não obstante, o SPHAN

acabou assumindo a feição de uma agência de política cultural empenhada em salvar do abandono os exemplares arquitetônicos considerados esteticamente significativos para uma história das formas e estilos da classe dirigente brasileira. (MICELI, 1987, p.45)

Diante dessa conjuntura, o SPHAN acaba por se tornar uma agência sedimentada e de caráter puramente técnico, cujas atribuições profissionais só poderiam ser analisadas e avalizadas por técnicos e especialistas. Essa inclinação o transformou num órgão arbitrário quanto aos tombamentos realizados, pois não havia diálogo com a sociedade civil. As demandas do SPHAN se tornaram verticais.

O enraizamento do modelo de operação do SPHAN permaneceu até os dias atuais, mesmo com o alargamento do conceito de patrimônio histórico para patrimônio cultural, o IPHAN, ainda mantém todas as prerrogativas cristalizadas por Lúcio Costa e seus técnicos na fase heróica do Instituto. Nesse sentido fica evidente que 

o extenso legado deixado pelo Estado Novo nas relações entre a cultura e a política é fato amplamente reconhecido pelos meios intelectuais e políticos, em particular, no tocante à tradição preservacionista fundada pelo antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Sphan. Embora nas últimas décadas a política patrimonial tenha alcançado horizontes mais democráticos, a concepção herdada dos anos 1930 e 40 de um patrimônio circunscrito aos referentes de uma cultura ilustrada, concebida no singular, deixou vestígios que sobrevivem ainda nos meandros do aparelho burocrático, disputando a hegemonia na agenda das políticas de memória no país. (JULIÃO, 2009, p.141)

Na França a questão do patrimônio é trabalhada de maneira diferente, evidenciando as falhas do IPHAN nesse sentido. Segundo Sérgio Miceli (1987) os franceses trabalham com um complexo sistema institucional que abriga desde monumentos e sítios históricos, como museus, bibliotecas e arquivos.

O alargamento do conceito de patrimônio na França resultou em novas políticas preservacionistas, trazendo novos desafios, pois passaram a encarar qualquer modalidade de expressão como passível de ser conservada. Houve, portanto, uma antropologização do conceito de Patrimônio, onde o popular tem sua importância assegurada.

Nos Estados Unidos houve segundo Sérgio Miceli

 uma disão entre o campo da conservação e o da preservação, o primeiro cobrindo o trabalho desenvolvido pelos museus, arquivos, bibliotecas e centros de documentação dos mais variados suportes, enquanto o segundo lida prioritariamente com o patrimônio arquitetônico ou ambiental e por essa via se inscreve entre os objetos centrais das políticas de planejamento urbano”. (MICELI, 1987, p.47)

Como podemos verificar, tanto na França como nos Estados Unidos, as políticas se tornaram mais flexíveis as demandas dos movimentos sociais, o que não ocorreu no Brasil de forma a modificar as bases estruturais do IPHAN, que continua tendo ainda nos dias de hoje uma atuação hierárquica nas análises de tombamento. Nos Estados Unidos, essa hierarquia ligada à questão estética e cultural, foi superada devido à aceitação de critérios etnológicos e sociológicos, bem como, devido ao rompimento com a ideia eurocêntrica de patrimônio.

Aqui no Brasil essas questões ainda merecem debates e novas propostas, todavia, cabe lembrar que a política preservacionista do IPHAN ao mesmo tempo em que engessou o Instituto para novas políticas, também o protegeu de demandas vazias. Nesse sentido, cabe aos profissionais ligados ao patrimônio no Brasil, questionar e continuar levantando novos estudos e tendências para o IPHAN, com o intuito de valorizar aquilo que um dia foi esquecido de forma arbitrária pelos criadores do SPHAN.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MICELI, Sérgio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n°22, 1987.

JULIÃO, Letícia. O SPHAN e a cultura museológica no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, nº43, 2009.