O Sobretudo Vermelho
Publicado em 02 de março de 2008 por Nara Junqueira
Da mesa em que me instalei no fundo desse café, nada posso ouvir da conversa travada entre aquele homem de terno escuro, bigode espesso e rosto por demasia redondo, com aquela mulher loira, de modos finos, vestida com um lindo sobretudo vermelho. Vez ou outra, ela empina o nariz e movimenta os braços à moda italiana e eu imagino ouvi-la gritar: "—Canalha! Basta! Foste longe demais!" Ele acende uma cigarrilha, arruma a gravata, olha ao redor e responde: "—Calma, meu bem! Estás nervosa. Com um pouco mais de paciência tudo se arranja!" Na rua as pessoas vão apressadas aos seus afazeres e não se dão conta das circunstâncias dos encontros no interior das cafeterias da cidade. As mães puxam suas crianças pela mão e vão a passos largos deixá-las na porta de escola. Nem bem as entregam e rumam às fábricas, bancos ou lojas comerciais, que empregam a maior parte da mão-de-obra do interior. Umas poucas aproveitam a folga para pequenos reparos nos seus cabeleireiros que as recebem com mimos e um largo sorriso e se dispõem a ouvir as muitas reclamações dos maridos sovinas ou pouco solidários em relação aos trabalhos de casa. Aliás, semelhantes aos padres, esses profissionais deveriam receber uma comenda por serviços prestados à comunidade pelas horas de confessionário e alívio na expiação das culpas que as esposas ainda carregam.
A mulher e o homem se olham demoradamente. Ela sacode a cabeça demonstrando determinação. Acho que suportou tudo que pôde, esperou tudo o que foi possível esperar. Fez concessões demais e agora estaria disposta a dar um basta a tudo o que a oprime. Ele, talvez bem mais adentrado nos anos, tinha ainda outras cartas para fazer a roleta rodar, tinha mais fichas a apostar. Estava mais seguro e provavelmente disposto a continuar no jogo por mais tempo. As mães estão sempre certas quando esperneiam a desvantagem das suas pobres filhas apaixonadas por homens de mais idade e muito acima das suas poucas primaveras. Normalmente, é jogo de cartas marcadas: flores, palavras de amor, bons restaurantes, bombons, levar e buscar na porta da escola, perfumes e cinema... E lá vai a juventude a caminhar de braços dados com a meia idade! Deve ter sido essa capacidade de atacar por todos os flancos que colocou esse cavaleiro em vantagem em relação à jovem que agora o quer despachar. Encarando-a com firmeza ele acende outra cigarrilha e liberta jatos de fumaça que se dispersam em anéis que correm para o teto até encontrar a fresta da janela.
Enquanto os jogadores preparam ataques e defesas, as vidraças entregam à minha retina um grupo de homens que se formou na calçada em frente. O mais ágil e falante lidera os demais, que se juntam em círculo para avançar sobre as folhas que quase se rasgam pela ação de tantos dedos nervosos. Dado o interesse demonstrado, provavelmente, a revista trate de temas relevantes para o gênero masculino. Imagino matérias sobre saúde, o aquecimento global, a ação predadora dos invasores das florestas, os cálculos da previdência etc. Também as suas mulheres passam por aquelas mesmas calçadas em busca de linhas e lã com que enfeitam a família. Também elas se juntam em momentos de descontração e compartilham o fim dos bons costumes e a decadência da moral, as carnes expostas nas missas de domingo nos bancos sagrados da igreja, os erros de português do novo pároco na homilia, a cara de santo do agiota que socorre esbanjadores e cidadãos de vida dupla apertados entre as despesas oficiais e aquelas outras contraídas por pura vontade e gozo. Enfim, um verdadeiro passar a limpo a vida de todos os moradores da cidade.
Enquanto isso, fico aqui, recolhida na minha ignorância auditiva, tendo meus olhos por farol a iluminar o meu conhecimento. Mais uma baforada e os olhos do homem se movimentam acompanhando o sobretudo vermelho que se levanta. Parece que está por vir a cartada final. Ela dirá basta e ele, acuado pela surpresa da ação não esperada, tendo que medir seus atos em público, sentir-se-á obrigado a agir com calma e cautela. Ela tem a chance de, finalmente, encerrar o jogo. Seus olhos brilham enquanto respira calmamente, talvez de posse do sentimento de paz que a liberdade encerra.
A cena final, infelizmente, não terá o público que um "gran finale" merece! Estou eu, nesse canto escuro, o caixa, dois ou três garçons que equilibram bandejas no salão e entregam seus pedidos no balcão, por trás do qual se escondem rostos e mãos que ninguém vê. Estou especialmente feliz e sinto o coração disparar. Vieram-me agora mesmo lembranças de épocas distantes que eu julgava apagadas para sempre da minha memória. Retornou desse tempo a Carmem e seu marido maravilhoso para quem ela arrumava, lavava, passava, cozinhava e economizava até um mísero realzinho. Veio a Graça na sua exuberância de mulher culta, bonita e traída desde a gravidez da sua primeira filha. Veio a Sâmara, quase apedrejada pelos vizinhos que a acusaram de adultério na interminável ausência do marido viajante. E veio a Luísa, infeliz e só, enganada na virgindade de moça velha pelo marido da Conceição. Veio também, assim meio sem querer, a Anna Leocádia, a mãe da minha mãe, viúva, chefe de família e mulher destemida o suficiente para encarar o batente na Rede Ferroviária. Enfim, aquele sobretudo altivo e loiro resgatará mulheres e moças frágeis, para colocá-las na categoria de rainhas e donas do seu próprio destino.
Uma última baforada, um último gole de café, conta na mesa, bolsa elegantemente colocada no ombro direito, o sobretudo sinaliza que se vai retirar, vitorioso, do campo de batalha. Ambos em pé, olhos nos olhos! Vou ver o xeque-mate com todas as minhas armas.
—Bem, senhor Laurindo, foi um grande prazer tratar com o senhor! A casa ficou um primor, o pessoal da sua firma trabalha com empenho. Carlos o recomendará aos nossos amigos, com toda certeza.
—Eu é que agradeço. Na verdade, foi para mim uma grande honra trabalhar para pessoas como a senhora e seu esposo. Que o casal viva feliz por muitos e muitos anos na linda casa que ajudamos a construir. Leve ao Senhor Carlos as minhas recomendações e diga-lhe que o parabenizo pela excelente gerente que ele tem em casa.
Enfim, o sobretudo vermelho se vai e deixa em mim a certeza de que captar circunstâncias dos encontros no interior das cafeterias da cidade é tarefa por demais complexa, não se podendo confiar na ação dos olhos somente, pois que, pela natureza, enganam a mente e assanham antigos fantasmas adormecidos nas caixas da memória.