O SISTEMA ESCOLAR COMO SEGMENTO DO APARELHO DE SELEÇÃO E DISCRIMINAÇÃO SOBRE OS ALUNOS DO 2º ANO NOTURNO DO ENSINO MÉDIO DO CENTRO EDUCACIONAL MÔNICA VALE

 

Leonardo Davi de Souza Piedade[1]

Ricardo André Mendes da Silva Filho

 

Sumário: 1 Introdução; 2 A universalização da educação; 2.1 Educação informal e educação formal; 2.2 O sistema escolar e o sistema de classes; 3 A educação como forma de reprodução da estrutura social; 3.1 Seleção e discriminação do sistema escolar; 4 Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

Debate-se neste trabalho, o funcionamento do sistema escolar como segmento do aparelho de seleção e discriminação. Começamos com uma análise da educação como instituição universal, passando pela relação existente entre o sistema escolar e o sistema de classes, chegando a uma análise da educação escolar, através da pesquisa realizada com alunos do ensino médio, como um meio reprodutor da estrutura social.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Educação. Seleção. Discriminação.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

 

Analisaremos o sistema escolar como um segmento do aparelho de seleção e discriminação social. Para tanto, faz-se necessária uma análise da educação e do seu processo de universalização, assim como a distinção entre educação informal e educação formal.

Também iremos discorrer sobre as relações existentes entre o sistema de classes e o sistema escolar. Tomando como base a teoria da rotulação, e partindo de um raciocínio dedutivo, vamos analisar o sistema educacional e as reais consequências de sua discriminação, originada no processo de seleção.

Através de um questionário realizado com alunos do 2º ano do ensino médio do Centro Educacional Mônica Vale, tentaremos mostrar o verdadeiro poder de discriminação do sistema escolar, e o seu papel como reprodutor da estrutura social.

 

 

2 A UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

 

 

Hodiernamente, temos a educação como uma instituição universal. Mas nem sempre foi assim. É a industrialização que irá servir de alavanca para a educação, como nos diz Jonathan Turner (2000, p.153):

A educação se torna uma instituição dominante apenas com a industrialização ou, como é geralmente o caso hoje, com esforços planejados pelo governo de sociedades subdesenvolvidas e em desenvolvimento para encorajar a industrialização através da educação de massa [...]

Mesmo com a universalização da educação, é sabido que nem todos os segmentos sociais, principalmente os oriundos das classes excluídas, possuem acesso a uma educação de qualidade. Na população pertencente às classes sociais de menor poder aquisitivo, a condição de vida das famílias, de um modo genérico, impede que os filhos frequentem os bancos escolares com regularidade (HADDAD, 2008).

Percebemos assim a herança da industrialização na educação, seja decorrente do pioneirismo industrial de alguns países ou, como no caso dos países e vias de desenvolvimento, de esforços para alcançá-la.

Existem diversas interpretações para a universalização da educação. Os funcionalistas argumentam que as estruturas educacionais eram necessárias, daí a causa da sua expansão. Em contrapartida, os teóricos do conflito debatem que a educação nas sociedades modernas é uma forma de doutrinar as pessoas em crenças e capacidades de atuação necessárias a uma economia de mercado, dominada pelas elites econômicas e políticas (TURNER, 2000).

É a partir da universalização da educação que podemos notar uma maior mobilidade social dentro da nossa sociedade, dividida em classes sociais. Cabe aqui lembrar que nas sociedades pré-industrializadas, a mobilidade social dentro das classes era muito restrita, e que nas sociedades antigas não existia mobilidade social.

É importante ressaltar que alguns teóricos do conflito “enfatizam a importância da educação para a pacificação daqueles que não garantem economicamente a sociedade [...].” (TURNER, 2000, p. 154). Deixaremos para debater este ponto de vista mais adiante, mas faz-se necessário mencioná-lo aqui.

Podemos citar como objetivos da educação a transmissão da cultura, adaptação dos indivíduos à sociedade entre outros. Em todos os momentos de sua vida, o indivíduo esta assimilando valores e regras por meio da educação (OLIVEIRA, 2005, p. 214).

A educação passou por um longo processo de adaptação na história até se constituir como instituição universal. Influenciando todos os indivíduos das sociedades modernas, de modo direto ou indireto, a educação tornou-se um meio indispensável para a vida em sociedade.

 

 

2.1 EDUCAÇÃO INFORMAL E EDUCAÇÃO FORMAL

 

 

Nas sociedades antigas, a transmissão dos valores do grupo dava-se através da família ou da convivência com os adultos, é a chamada educação informal ou assistemática. “Nas comunidades mais isoladas, onde ainda não há escolas, a educação assistemática é a única forma de educação existente. Nessas comunidades, crianças e jovens aprendem ao participar ativamente da vida familiar e comunitária.” (OLIVEIRA, 2005, p. 215).

Por outro lado, quando existem escolas, elas são encarregadas de concluir a transmissão da cultura que outrora foi iniciada no seio familiar e nos demais grupos sociais. Aqui temos a chamada educação formal ou sistemática, que obedece a uma organização previamente planejada (OLIVEIRA, 2005, p. 137).

Percebemos novamente que a escola exerce um papel fundamental no desenvolvimento e na construção da personalidade dos indivíduos. Como essa educação formal obedece a uma organização previamente planejada, é claro que ela está cheia de ideologias. É impensável algo planejado que seja totalmente livre de ideologias e juízos de valor.

A maior parte dos brasileiros realiza a sua escolaridade básica na escola pública, como nos mostra o economista Sérgio Haddad (2008, p. 2): “Hoje, 90 % da população brasileira realiza sua escolaridade básica, ensino fundamental e médio, na escola pública [...].” Com isso, vemos claramente que a maior parte da população brasileira tem sua formação escolar de acordo com a ideologia do grupo politicamente dominante.

Pérsio Santos de Oliveira (2005, p. 215) nos diz que:

A divisão do trabalho e a diversidade de papeis sociais exigem de crianças e jovens a passagem pela escola, onde recebem educação sistemática ou formal. Seu objetivo básico é a transmissão de determinados legados culturais, isto é, de certos conhecimentos,técnicas ou modos de vida, de forma a preparar o indivíduo para os papeis que ele será chamado a desempenhar ao longo da vida em sociedade [...]

Percebemos assim quão grande é a relevância da educação formal na formação do indivíduo, para que este possa se encaixar na atual sociedade capitalista.

“Para um indivíduo participar da sua comunidade como cidadão pleno é preciso que ele seja politizado [...]. Ninguém nasce cidadão, mas precisa ser educado para tal.” (ARANHA; MARTINS, 2004, p. 181).

 

 

2.2 O SISTEMA ESCOLAR E O SISTEMA DE CLASSES

 

 

Com base nos argumentos acima mencionados, nota-se a ligação existente entre o sistema escolar e o sistema de classes. Através da educação pública, os Governos conseguem transmitir os valores que lhes são interessantes, e produzir cidadãos que estejam de acordo com a ideologia dominante, a ideologia dos que estão no poder.

A nossa sociedade está basicamente dividida entre duas classes. São elas: a dos capitalistas modernos e a dos trabalhadores assalariados, também chamados de proletariado. Os capitalistas modernos são os detentores dos meios de produção que empregam o proletariado.

A educação é a forma pela qual o indivíduo assimila os valores e regras da sociedade. “Embora esteja sempre presente na vida do indivíduo, em sociedades complexas a educação informal não é suficiente.” (OLIVEIRA, 2005, p. 215). É assim, nas sociedades complexas, que percebemos cada vez mais a necessidade do sistema escolar como sistema transmissor de valores sociais.

Nas sociedades de classe, o ensino escolar serve claramente como forma de seleção dos indivíduos comprometidos com o sistema. Esta forma de garantir níveis educacionais para conseguir empregos estáveis, nos força a aceitar as regras impostas pelos governantes, caso queiramos fazer parte do sistema.

Sobre essa relação existente entre o sistema escolar e o sistema de classes, Jonathan Turner (2000, p. 155) nos diz:

Assim, os sistemas educacionais surgem para fazer muitas coisas em uma sociedade moderna – funções necessárias como socializar o jovem, colocar as pessoas na economia, armazenar cultura e inovar; e funções menos óbvias como (1) gerar garantias à ordem existente definida pelas elites, (2) culpar as pessoas e não as instituições pelos fracassos, e (3) manter as pessoas em uma monótona rotina de trabalho garantindo a economia política da sociedade.

Além das funções necessárias do sistema educacional, é evidente o poder exercido por ele quando verificadas funções diferentes das declaradas. Quando o sistema escolar gera garantias à ordem definida pelas elites, culpa as pessoas e não as instituições pelos fracassos, ele está claramente trabalhando com base em interesses não tão simples de serem compreendidos, embora não tão difíceis de serem identificados.

 

 

3 A EDUCAÇÃO COMO FORMA DE REPRODUÇÃO DA ESTRUTURA SOCIAL

 

 

A partir do momento em que a educação se torna uma instituição universal e dominante, ela também se torna uma força muito poderosa em seu próprio interesse, começando a definir qual conhecimento e status uma sociedade deveria ter (TURNER, 2000).

Pode-se fazer uma analogia entre o poder exercido pelo sistema educacional atualmente, e o exercido pela Igreja Católica na idade média. Naquele tempo, a igreja determinava o que deveria e o que não deveria ser fonte de conhecimento, o que era divino e o que era profano etc. Em suma, dominava de modo cruel e desumano todos os que se opunham aos dogmas impostos por ela.

Conforme dito anteriormente, o sistema escolar surge para fazer várias coisas, e uma delas é o seu comprometimento com a manutenção da estrutura social, a partir dos ensinamentos da ética e da moral vigentes na sociedade. Movimentos que são contrários aos interesses do grupo que está no poder, tendem a ser sufocados. Assim, dificilmente alguém em processo de formação de personalidade e interiorização das normas e valores da sociedade, valendo-se do sistema educacional, terá possibilidades de analisá-lo de forma crítica, buscando posicionar-se de acordo com uma ideologia que não a proclamada pelo sistema educacional.

Ao mesmo tempo em que somos moldados a agir de acordo com as regras impostas pela sociedade, somo ensinados a aceitar tais regras sem questioná-las, sem debatê-las. “De fato, alguns argumentam que a ‘titulação’, ou a necessidade de garantir níveis para ganhar acesso aos empregos, força as pessoas como você a aceitar o que as escolas exigem, se você deseja se dar bem.” (TURNER, 2000, p. 154).

O sistema de ensino brasileiro assume como um de seus objetivos a socialização, concebendo a educação como direito universal e sendo também um instrumento de mobilidade social, buscando garantir a ordem e reproduzindo os valores da sociedade (TURNER, 2000). Mesmo com o sistema de cotas em universidades, buscando assim uma maior oferta de oportunidades para todos, a sociedade impõe barreiras quase intransponíveis aos indivíduos provenientes das classes subalternas.

Com o ensino público subordinado ao Estado, cabe a este a tarefa de investir na educação, visando proporcionar a todos os membros da sociedade oportunidades iguais. E como é função do Estado zelar pela manutenção da ordem social, qual maneira seria mais fácil e eficaz que começar inserindo a ideologia liberal no sistema escolar? No campo teórico, somos levados a acreditar que todos possuem as mesmas condições de se dar bem na vida, mas no campo prático, não é assim que o sistema funciona. Torna-se extremamente complexo pensar uma sociedade mais justa e igualitária, onde o próprio meio que deveria nos proporcionar essa igualdade é o primeiro a nos selecionar e, como efeito dessa seleção, surge a discriminação.

 

 

3.1 SELEÇÃO E DISCRIMINAÇÃO DO SISTEMA ESCOLAR

 

 

Como dito anteriormente, alguns teóricos do conflito enfatizam a importância da educação para a pacificação daqueles que não garantem economicamente a sociedade, observamos claramente a função da educação como um instrumento de regulação social utilizado pelas elites. Assim, caso você não consiga obter êxito na sua vida profissional, a “culpa” é sua. Somos novamente induzidos a pensar que a todos são dadas as mesmas oportunidades de atingir o sucesso.

A teoria da rotulação nos diz que as identidades desviantes são criadas através da rotulação, e não através de motivações ou de comportamentos desviantes (GIDDENS, 2005). Desse modo, percebemos o quão importante são os juízos que fazem de nós, muitas vezes preconceituosos, para a formação da nossa personalidade como sujeitos ativos na sociedade. É justamente nesse ponto que a teoria da rotulação vem a nos mostrar o poder existente na rotulação de uma atitude como desviante. Para Howard Becker, o comportamento desviante nada mais é que o comportamento assim rotulado pelas pessoas, e que esse comportamento desviante não é o fator determinante para se tornar desviante. Existem sim, processos que não estão relacionados ao comportamento em si, mas que exercem grande influência ao se rotular ou não uma pessoa de desviante (GIDDENS, 2005).

O sistema de justiça criminal, enquanto mecanismo de controle, está inserido na mecânica global do controle social, sendo concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual se juntam não apenas as instituições de controle social formais, mas também o conjunto dos mecanismos do controle social informal, como a família, a escola, a mídia, o mercado de trabalho, a religião, etc. (ANDRADE, 2006). Desse modo, vemos que a escola não só seleciona os alunos, mas também os estigmatiza de forma rígida. Cabe lembrar que a rotulação não afeta apenas a maneira como os outros verão um indivíduo, mas também influencia o sentido individual do eu (GIDDENS, 2005). Edwin Lemert nos diz que em alguns casos, o indivíduo acaba aceitando o rótulo de desviante, passando este a se tornar central para a identidade da pessoa, levando a uma continuação ou intensificação do comportamento desviante (GIDDENS, 2005).

Um grande paradoxo envolvendo o sistema escolar, é que o processo de rotulação, o aprender a ser desviante, ganha um enorme destaque nessa instituição, que deveria ser para ensinar o oposto desse processo estigmatizante. É na zona mais baixa da escalada social que a função selecionadora do sistema educacional se transforma em função marginalizadora. O sistema escolar reflete a estrutura vertical da sociedade, contribuindo para criá-la e conservá-la através dos mecanismos de seleção, discriminação e marginalização (BARATTA, 2002).

Sobre a diferenciação social dentro do sistema escolar, Baratta afirma ( 2002, p. 173):

[...] outra freqüente legitimação da diferenciação social no âmbito do sistema escolar se baseia no conceito de mérito. A crítica deste conceito colocou em relevo, sobretudo, como no caso dos testes de inteligência, que as diferenças de desenvolvimento mental e de linguagem que os meninos apresentam no seu ingresso no sistema escolar são o resultado das diversas condições sociais de origem. Com o sistema dos testes de inteligência e do mérito escolar estas diferenças são aceitas acriticamente e perpetuadas.

O sistema de notas é um exemplo da seletividade presente na realidade escolar. Assim, os alunos classificados como maus são, geralmente, considerados de modo muito mais desfavorável do que mereciam, ocorrendo o oposto com os alunos classificados de bons alunos (BARATTA, 2002).

Através da pesquisa realizada[2], constatamos os efeitos da seleção e da discriminação no sistema escolar a partir da percepção dos alunos. Quando indagados sobre o tratamento dos professores, apenas 55% dos alunos afirmaram que todos os alunos são tratados igualmente. 80% dos alunos disseram que o fato de ter boas notas ajuda no relacionamento com os professores e funcionários da escola. Em relação ao mercado de trabalho, 80% dos entrevistados concordam que os alunos que tiram boas notas terão maior facilidade para conseguir um emprego quando terminarem o ensino médio.

 

 

4 CONCLUSÃO

 

 

Como resultado da nossa pesquisa e dos estudos realizados sobre o tema, chegamos à conclusão de que o sistema escolar é realmente um aparelho de seleção e discriminação social, funcionando de acordo com os interesses das classes política e economicamente dominantes. Podemos constatar que na nossa sociedade, apenas os indivíduos que tiveram uma educação apropriada farão parte do sistema, e cada vez mais os que não tiveram as mesmas oportunidades serão excluídos.

É preciso desmistificar a visão do sistema sobre os alunos que apresentam dificuldades, e não apenas rotulá-los como incapazes ou menos inteligentes. Precisamos de um sistema escolar que volte suas atenções a todos os alunos de forma igualitária, mas que tenha consciência das desigualdades existentes na sociedade, que afetam de modo particular cada aluno, cada classe social. Para reduzir as desigualdades existentes na nossa sociedade, faz-se necessário um sistema educacional que não esteja comprometido com a manutenção do status quo, mas sim com a formação de cidadãos mais conscientes, mais humanos, mais interessados com as questões sociais.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Disponível em: < http://www2.mp.ma.gov.br/ampem/artigos/Artigos2006/A_soberania_patriarcal_artigo_Vera_Andrade.pdf >. Acesso em: 20 ago 2009.

 

ARANHA,Maria Lúcia de Arruda; Martins, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. 2. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2004. cap. 15.

 

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2002.

 

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Tradução: Sandra Regina Netz. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.

 

HADDAD, Sérgio. Os mecanismos de reprodução da desigualdade no sistema público escolar. Disponível em: < http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/sera-o-professorado-o-unico-culpado/?searchterm=sistema%20escolar >. Acesso em: 18 ago 2009.

 

OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à sociologia. 25. Ed. rev. e atual. São Paulo: Ática, 2005. cap. 8 e 12.

 

TURNER, Jonathan. Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 2000. cap. 9.



[1] Alunos do 2º período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. Emails: [email protected] e [email protected].

[2] Questionário aplicado aos alunos do 2º ano do ensino médio da rede pública, turno noturno, do Centro Educacional Mônica Vale. Pesquisa realizada no dia 21 de agosto de 2009.