O SER PROFESSOR COMO UM TRABALHO SUJEITO A FRUSTRAÇÕES:
UM DIÁLOGO COM WANDERLEY CODO

BEING A TEACHER AS A WORK SUBJECT TO FRUSTRATIONS:
A DIALOGUE WITH WANDERLEY CODO


Idanir Ecco

RESUMO: O trabalho do professor é concebido como uma ação transformadora tanto objetiva, quanto subjetiva, revestido de peculiaridades que lhes são próprias. Os trabalhadores da educação manifestam somatizando de diferentes formas, as condições de trabalho, que nem sempre lhes são propícias. O texto, resultado da transcrição de uma conferência, aborda questões relacionadas ao trabalho dos profissionais da educação em contexto de atuação, bem como traz reflexões correlacionadas à profissão docente.

Palavras-chave: Professor. Trabalho. Burnout.

ABSTRACT: The teacher's work is conceived as a transformative action, both objective and subjective, coated with peculiarities of their own. The education workers manifest somatizing in different ways, the working conditions, that are not always conducive. The text, a result of the transcript of a conference, addresses issues related to the work of the professionals of education in the context of performance, as well as contains reflections related to the teaching profession.

Key words: Teacher. Work. Burnout.


INTRODUÇÃO

O trabalho do professor, considerando suas peculiaridades, é um dos temas que ocupa destaque significativo entre os elementos que demandam atenção, estudo, preocupação no contexto educacional formal, escolar, haja vista, que se identifica, sem muito esforço, um expressivo número de publicações resultado de pesquisas, de reflexões considerando a temática.
As condições de trabalho dos educadores nem sempre são favoráveis: infra-estrutura comprometida, ambiente de trabalho desconfortável, parcos recursos financeiros, limitações de materiais didáticos-pedagógicos e tecnológicos, o peso da burocratização, dentre outras.
Considerando as observações, registradas acima, afirmamos com Codo e Vasques-Meneses (2009, p. 09): "Ser professor hoje em dia deixou de ser compensador, pois além dos salários nada atrativos, perdeu também o ?status? social que acompanhava a função poucas décadas passadas". Indubilavelmente, isso tudo, apresenta uma correlação com a satisfação, com o comprometimento, com a qualidade do trabalho do professor, traduzindo-se numa síndrome denominada de burnout, registrada na literatura, também, como sofrimento psíquico dos trabalhadores.
Wanderley Codo, Doutor Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titular da Universidade de Brasília e que atua na aérea de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Trabalho e Organizacional, esteve presente no V Fórum do Conhecimento , proferindo a conferência de abertura com o tema "Educação Carinho e Trabalho: a Síndrome da Desistência Do Educador". Na oportunidade, a referida palestra fora gravada e, posteriormente, transcrita.
De posse da transcrição da conferência, citada anteriormente, objetivando a apreensão eficiente e proveitosa da temática abordada, ousadamente, realizou-se a reconstrução da explanação mediante problematização e adoção de questões pertinentes ao tema abordado. A socialização deste trabalho justifica-se pela relevância da temática, haja vista sua atualidade, porque pertinente às questões desafiadoras relacionadas ao contexto da docência. O que segue, corrobora as afirmações supracitadas.

1 O TRABALHO DO PROFESSOR: ANÁLISE DIALÓGICA DE WANDERLEI CODO
Boa noite! Além, obviamente, do convite, para participar do Fórum do Conhecimento, qual a motivação, propulsora que o faz estar aqui?
Wanderlei Codo - Boa noite! O que me trouxe aqui, evidentemente, foi o trabalho com educadores, o trabalho com professores. Um trabalho que começou em torno de dois mil, um pouco antes, e foi uma investigação que foi feita com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. [...] deve ter começado em noventa seis a noventa e sete, alguma coisa assim. E nos procuraram, pois, queriam conhecer um pouco melhor os professores [...].

E para conhecer melhor os professores, qual a estratégia ou procedimentos que se comprovou eficiente nesse sentido?
Wanderlei Codo - A gente sentou numa primeira reunião com a CNTE dizendo: olha para que você conheça os professores, você tem que conhecer a saúde mental dos professores, porque todos os problemas de trabalho do professor são da ordem da saúde mental. O professor não machuca a cabeça batendo a cabeça no vídeo do computador. Ele vai sofrer é de problemas de saúde mental e de outros problemas, também, do professor. Mas, todos eles ligados ao problema de saúde mental. E nós convencemos a Confederação, a CNTE a fazer uma investigação da saúde mental.

Descreva, mesmo que sucintamente, os procedimentos metodológicos, na perspectiva da definição ou delimitação do universo dessa pesquisa e da própria coleta de dados, objetivando investigar a saúde mental dos professores no Brasil.
Wanderlei Codo - Aí aconteceu uma coisa interessante. Era um estudo para dez mil pessoas, mais ou menos. A gente imaginava sortear cinco regiões. E, das cinco, um Estado para cada uma das cinco regiões. Depois tinha uma série de sorteios e tal e dava dez mil pessoas. E daí começou acontecer o seguinte: um determinado Estado chegava para gente e dizia (o sindicato de um determinado Estado): "olha, a gente quer participar do estudo". "Tá bom, então se vocês querem participar do estudo vêm para o treinamento, faço explicações". Mas, e daí, dentro do Estado, uma cidade dizia que, também, queria fazer parte do estudo. Dentro de uma cidade, uma escola, também, dizia: "eu, também, quero participar do estudo". O estudo acabou abrangendo os vinte e sete Estados da Federação, todos os Estados da Federação, inclusive Brasília, e acabou abordando cinquenta e duas mil pessoas. Das dez mil que estavam sendo planejadas antes, acabou sendo maior o estudo. Contra o nosso planejamento, acabou sendo o maior estudo sobre saúde mental e trabalho dos educadores que já foi feito no mundo. Este estudo foi publicado num livro que se chama "Educação: carinho e trabalho" [...]. Depois disso, nós fizemos mais três ou quatro estudos com educadores e fazendo o que agente sempre fez, desde mil novecentos e oitenta e seis: a gente fazia o diagnóstico de trabalho. Éramos convidados, por vezes convocados, por Secretarias de Educação ou Segurança, por Sindicatos, por empresas privadas ou públicas, para fazer diagnóstico de trabalho. É um diagnóstico do trabalho fortemente baseado em pesquisas, em investigação e um diagnóstico fortemente centrado em saúde mental. Um diagnóstico de saúde mental no trabalho.

Observações atestam que, em diferentes contextos/situações, trabalho é concebido como sinônimo de emprego. Qual a relação entre trabalho e emprego?
Wanderlei Codo - Em primeiro lugar é preciso pensar um pouco no que é o trabalho. Muita gente boa escreve em letra de forma confundindo, por exemplo, trabalho com emprego. Trabalho não é o emprego. Emprego foi uma determinada situação que o trabalho ocupou e que foi basicamente no século XX. Se você pegar o século XXI, já não é o século do emprego. Tem razão Jeremy Rifkin quando publica "O Fim dos Empregos" , que foi um livro que saiu a uns dez anos atrás. Trabalho não é emprego. Trabalho não é o que está ligado com salário. Trabalho não é o trabalho escravo como era na época que trabalho ganhou o nome. Quando trabalho ganhou nome, o que se considerava trabalho era o trabalho escravo. Por isso queria dizer tripalium, um instrumento de tortura com três pés. Quando você pergunta para uma dona de casa o quê que ela faz, ela diz: "eu não trabalho". Trabalha feito uma maluca (estou falando das donas de casa aquelas que estão em extinção; daquelas que só fazem isso na vida; as que não resolveram entrar na fábrica, daí por diante, ou dar aula). É uma coisa interessante! Sabiam que veio do professorado o forte do movimento feminista no Brasil? Porque eram as mulheres, noventa e nove por cento, das mulheres, agora está diminuindo um pouco, que iam para uma situação de trabalho e que começavam sentir todo o processo de opressão e a necessidade de libertação e etc. De maneira que o movimento feminista no Brasil está muito ligado às normalistas, aquela mesma que Nélson Gonçalves cantava (os mais velhos lembram da música),"Minha linda Normalista", etc, etc, etc. Então não é emprego, então não se confunde com salário. Então não se confunde com uma jornada de trabalho definida, etc. Então o que é trabalho? Trabalho é uma dupla relação de transformação entre o homem e a natureza. O homem transforma a natureza e é transformado por ela. O homem torna-se parecido com a natureza e a natureza torna-se parecida com o homem. Mas, não é uma dupla transformação qualquer. Quando um rato bebe um pouco de água, ele, também, está transformando a natureza e, também, está sendo transformado por ela. Ele fica parecido com a água que tomou e a natureza fica com a sua marca e não é trabalho. É uma dupla relação de transformação entre homem e a natureza, geradora de significado. Trabalho é trabalho quando muda a natureza e quando gera significado.

Gerar significados, em suma, significa deixar marcas. Discorra mais sobre o trabalho como ação transformadora, ação que deixa marcas, significados.
Wanderlei Codo - Significado é uma palavra que vem do latim signo-ficare: quando signo fica. Trabalho, portanto, é um modo de deixar a nossa marca na natureza. Através da ação humana a gente marca o mundo onde a gente está. Olhe em volta e veja o que resta da natureza tal e qual foi encontrada a muitos e muitos anos atrás. Eu costumo brincar que o pessoal que fica falando em coisa natural, coisa natural... Um suco de laranja é rigorosamente artificial. Foi fabricado pelo homem. Se você plantar aquela laranja não dá nada parecido com aquilo. Aquilo é uma invenção humana. É trabalho humano, tanto quanto uma barra de chocolate, daí por diante [...] Nós inventamos um mundo para nós. E o trabalho é o modo como a gente inventa o mundo. O trabalho faz com que cada um de nós se sinta como um Deus, capaz de inventar um universo à sua imagem e semelhança. Não é isso que dizem de Deus, que fez o mundo à sua imagem e semelhança? Cada um de nós faz um mundo à sua imagem e semelhança. E é por isso que nós precisamos de Deus, porque nós somos seres mortais e ao mesmo tempo imortais e o que nos torna imortal é o nosso trabalho. Através do trabalho, a gente permanece por toda a vida da humanidade. Eu estou aqui trabalhando, por mais divertido que seja, estou aqui trabalhando e ao trabalhar eu estou transformando as pessoas, de uma maneira ou de outra.

Para melhor compreensão exemplifique a questão que o senhor está pontuando, isto é, que ao trabalhar transformamos as pessoas.
Wanderlei Codo - Imaginem, por exemplo, vocês saírem daqui dizendo que este sujeito falou um monte de besteira, que eu tenho que repensar tudo de novo e o que ouviram serviu para nada. Pronto, vocês estão transformados pelo resto da sua vida. Vocês nunca mais vão ler Wanderley Codo [...]. O trabalho torna-nos eternos. O trabalho nunca morre e, com ele, nós, também, não morremos. Acima de tudo, isso é muito prazer! O que é que dá prazer para qualquer animal? O que permite a sua sobrevivência ou do indivíduo ou da espécie? Comer, beber (estou falando de qualquer animal, até agora) comer, beber, dormir e sexo são prazerosos porque permite ou que o indivíduo sobreviva ou que a espécie sobreviva. Nós dividimos, também, com os animais todos esses prazeres. Comer, beber, dormir e sexo são prazeres que agente divide com os animais. Mas, tem uma coisa que torna os homens vivos e que permite que os homens sobrevivam que, não acontece com os animais, que é o trabalho. O trabalho permite que os homens sobrevivam enquanto indivíduo e enquanto espécie. O pedreiro que fez o salão, o eletricista que colocou as lâmpadas, o professor que veio falar sobre algumas reflexões, ele está mantendo, a si mesmo, enquanto trabalhador e mantendo a espécie, enquanto espécie humana. Então, trabalho dá muito prazer. O trabalho torna o ser humano, humano.

A sua argumentação, fundamentando, que o trabalho proporciona prazer, é incontestável. Se o trabalho, porém, proporciona tanto prazer, por que o seu foco de estudo é o sofrimento, as dores do trabalho, mais precisamente, as dores e o sofrimento do professor?
Wanderlei Codo - A grande maioria do sofrimento do trabalho, quase todo o sofrimento do trabalho, quer dizer que você não está conseguindo trabalhar. O indivíduo que aperta sempre o mesmo parafuso, oito mil vezes por dia, dentro de uma linha de montagem, por exemplo, numa indústria metal-mecânica (está cheio delas em Erechim) é o indivíduo que está produzindo um automóvel e não sabe produzir um automóvel; que está produzindo um automóvel, mas não pode ter um. E ele sofre com isso. Ele está sofrendo porque lhe roubaram o significado do trabalho dele. Ele deixa de ser um trabalhador e passa a ser um vendedor de força de trabalho. E é essa força o que dói. E esta força quer ser transformada em trabalho. Aqui por perto vocês têm bastantes indústrias de beneficiamento de frango, de carne, etc. Aqui é uma linha de desmontagens. Em toda a linha, as peças entram e saem num produto final. Ali entra o frango inteiro e sai um monte de pedacinhos no final. E tem/tinha gente ali que ficava por de traz daquela asinha do frango cortando aquela pelinha de um dos lados só. O outro (lado), era outro trabalhador especializado em fazer, durante várias vezes por dia. Claro que eles ficavam com LER. Não só por esforço repetitivo, porque vovó quando fica fazendo tricô ela tem o mesmo esforço repetitivo que ele tem e não doe, não sofre. A diferença entre a vovó e ele, é que a vovó tem total significado do está fazendo e ele não tem nenhum significado do que ele está fazendo. Outra vez, o que se está fazendo é roubando o trabalho do trabalhador e transformando em força de trabalho. Trabalho, então, é responsável pela construção de nossa identidade. É assim que a gente se reconhece. A identidade é formada pela sexualidade, formada pela família, pela educação, mas para o homem, a concretidade é formada, também, e, principalmente, pelo trabalho. É assim que você se apresenta: eu sou psicólogo, sou professor, sou pedagogo... O trabalho faz com que a gente se vista de uma determinada maneira, com que a gente sente de uma determinada maneira, pense de uma determinada maneira, daí por diante...

E o trabalho do professor? Como é possível defini-lo, analisá-lo no contexto desta sua abordagem?
Wanderlei Codo - O professor é um dos trabalhos mais perfeitos que existe. Um dos melhores trabalhos que existe. Um dos trabalhos mais completos que existe. Todo trabalho modifica o outro, mas a distância entre o meu trabalho e outro, normalmente, é muito grande. Eu estou lá na marcenaria, eu faço esta mesa. Ela vai para a loja. Nesta loja ela é comprada por alguém. E aí alguém senta e se diverte com ela no almoço do domingo. Eu, se quer, sei quem foi que comprou, que uso vai ter, como é que isso foi parar na mão de quem. Eu preciso de um esforço muito grande para recuperar a transformação do outro, o que muitas vezes o trabalhador não consegue. O trabalhador desiste de pensar. Ele se emociona, às vezes, quando entra na casa de alguém, vê e descobre que aquela mesa foi ele quem fez. Tem uma velha canção que, se eu não me engano, é do Zé Geraldo: "Tá vendo aquele edifício, eu ajudei a levantar". [...] É muito difícil recuperar a transformação que o trabalho faz no outro. Agora, pega o professor: ele vê, a cada minuto, a cada coisa quando faz e quando não faz. Ele está vendo o tempo inteiro o outro transformar-se. Ele está sentindo. Ele ensina hoje a somatória e o aluno aprende a somar, utiliza amanhã cedo. E isso faz diferença no aluno, na família, no conjunto da sociedade. A sociedade sabe disso e clama pelo professor. Quantas vezes vocês já ouviram isso: "não vamos ter progresso no Brasil enquanto não melhorarmos a educação, a família" e etc. Então a possibilidade de transformar o outro é imediata no trabalho do professor. O trabalho permite que você transforme a si mesmo. O trabalho, por exemplo, transforma-me em um operário apertando parafusos e faz com que todos nós, os oito mil operários da mesma fábrica, sejamos iguais porque sabemos apertar parafuso. Só que o trabalho do professor transforma-o dia-a-dia, transforma-o a cada minuto. [...]

Todo o trabalho, portanto, independente da sua natureza, tem envolvimento afetivo. Considerando seus estudos, como é possível caracterizar a relação trabalho-afetividade no contexto de atuação docente?
Wanderlei Codo - O trabalho do professor é imediatamente afetivo, imediatamente tem carinho, envolve relações entre pessoas. Tente ensinar alguém que você não goste? Você vai se ver impossibilitado de trabalhar. O seu trabalho impõe uma relação de carinho, de afetividade, por tudo isso o trabalho do professor é um trabalho perfeito, é um trabalho completo. Trabalho perfeito é um trabalho completo. E porque dói tanto? Se você é professor já se perguntou porque não tem vontade de levantar da cama; você se sente cansado, desgastado pelo excesso de trabalho; você sente que as férias deveriam estar acontecendo mais cedo; você sente um processo de desgaste constante, uma exaustão diferente. Não é exaustão de quem carrega pedras ou corridinhas pela manhã. É o que se chama de exaustão emocional. Você fica exausto emocionalmente, fica irritado, fica com dificuldades nos seus vínculos, na expressão de seus afetos, na sua sexualidade, você fica se queixando de dores e vai para o médico e não tem nada, então, o médico lhe dá dois três dias de licença para ver se você melhora. Depois volta a enfrentar a aula e depois outras dores em outros lugares de outros jeitos e você fica como se o trabalho estivesse pesando nas suas costas o tempo inteiro.

Mas então, o que acontece com o trabalho do professor?
Wanderlei Codo ? O que acontece com o trabalhador do professor: em primeiro lugar é um trabalho perfeito. Você já percebeu que o professor paga para trabalhar? É muito comum o professor passar na papelaria antes de ir para aula e compra papel vermelho, purpurina, cola, porque, puxa vida, amanhã é dia das mães, etc e eles (os alunos) precisam apresentar alguma coisa, um presentinho para as mães e gasta para levar na escola e criar um inferno dos diabos, porque é cola caindo no chão, um passa cola no outro e assim por diante e aí chega ao final da jornada de quatro horas de trabalho o professor sai da sala e diz assim: "foi ótimo"! Se o professor trabalhasse com salário não teria ninguém dando aula nesse país. Exatamente por que o professor gosta tanto do trabalho que, se você não pagar nada, ele continua trabalhando. Com a crise da educação que teve no Brasil, o que começa acontecer? Menos gente entra para dar aula; menos gente quer se tornar professor, mas quem está dentro não sai. E quando sai arrepende-se profundamente e vai vender perfume da Avon. Arrepende-se profundamente, aí vai dar aula e leva os perfumes e no intervalo, aí vê o dinheiro. Também, professores universitários, aposentam-se aos setenta anos. Nós temos vários colegas assim. Aposentam-se com setenta anos e no dia seguinte às oito horas está no laboratório dando aula. Continua trabalhando. O que acontece? Acontece o seguinte... repara bem, entre outras coisas. Vamos começar do começo: é um dos melhores trabalhos e, portando, é o melhor trabalhador. O professor é uns dos melhores trabalhadores que existe por que tem uns dos melhores trabalhos que existe e trabalha numa organização muita ruim. A escola, é uma organização ruim. A escola é uma organização burocratizada. A escola é organização onde dificilmente todas as condições de trabalho estão acessíveis. A escola sofre de falta de planejamento todos os dias; nos livros da própria escola falta planejamento; na secretaria regional falta planejamento; na secretaria da educação tem falta de planejamento; no governo municipal, estadual e federal. Então, nós temos um excelente trabalhador e uma péssima organização de trabalho.

Qual o resultado dessa complexidade que caracteriza o trabalho e o contexto da profissão docente?
Wanderlei Codo - O resultado dessa sinuca, dessa armadilha, dessa trama, que nem se diz em espanhol, é que a tentativa do trabalho do professor acaba sendo uma tentativa que é extremamente desgastante. Ele acaba assumindo a responsabilidade por tudo que ele faz em sala de aula e acaba, por tanto, desgastando-se, sofrendo. Isso implica com o processo de exaustão, que passa pela falta de condições de trabalho, de preparação do meio ambiente, da sociedade [...]. Tem um processo, que é importante, e que é muito pouco conhecido, que foi uma das boas descobertas da nossa investigação. O educar envolve um vinculo afetivo, por que educar é um trabalho de cuidado e cuidado é uma coisa que funciona assim: olho no olho. Eu olho para você, eu vejo o que você está querendo. Eu atendo o que você está querendo. Eu preciso buscar uma maneira de atender a sua necessidade, que é diferente, que é outra. Eu preciso estabelecer um vínculo. Por isso, que se fala, "educação: carinho e trabalho", por que é trabalho, que se faz com carinho. É o carinho que está dentro do trabalho, que está embutido no trabalho. Esse vínculo que você é obrigado a formar com o seu aluno é um vínculo que, ao mesmo tempo não fecha, porque seu aluno vai embora, porque, apesar de lhe chamar de tia, você não é parte da família dele. Não fecha porque você tem quarenta alunos na tua frente, oitenta alunos, duzentos, você não sabe qual é a necessidade deste e daquele, do outro. E o que você começa ter? Um circuito afetivo quebrado. Você estabelece o vínculo e ele se quebra. Você vincula e afetiva, mas não pode afetivar. Não se afetiva, mas precisa se afetivar. Então, o tempo inteiro o seu afeto volta em um circuito que não termina, não fecha, que não se realiza. [...] E o que acontece com o professor? Acontece exaustão. Ele fica queixoso. O tempo inteiro ele se queixa. E sejamos honestos: muitas vezes as queixas não encontram substrato fisiológico. O Freud dizia que histeria provoca uma dor que não corresponde a anatomia. O braço que dói do histérico não é o braço que corresponde a anatomia. É o braço que é social, que é simbólico. As dores do professor, muitas vezes, são simbólicas, muitas vezes não correspondem à anatomia. Correspondem às dificuldades de um vínculo afetivo, às dificuldades de manter um relacionamento sexual erótico satisfatório, à impossibilidade de satisfazer os desejos sexuais, etc. Isso acontece com o professor. Isto é um problema sério no trabalho do professor, porque é filho, é produto de um trabalho perfeito. O professor, de certa maneira, é vítima de um trabalho perfeito. Ele precisa realizar seu trabalho e não consegue e isso implica num processo de exaustão emocional.

Que alternativas ou atitudes são assumidas pelos professores para manterem-se na ativa, apesar do seu trabalho constituir-se em exaustão emocional e sofrimento afetivo?
Wanderlei Codo - Para fugir da exaustão só tem duas saídas. Teria uma saída simples: parar de dar aula! Esquece-se do assunto e vai vender o perfume da vida e acabou. Acontece que o professor adora o que está fazendo. Como é que você vai falar para ele sair? Então, ele não sai! Então, se ele não sai fisicamente do trabalho ele tem duas formas de lidar com a exaustão e com o sofrimento afetivo: ou ele elimina simbolicamente o aluno ou ele elimina simbolicamente a si mesmo. Quando você elimina simbolicamente o aluno você está falando de desprofissionalização. Um professor dizia, em uma das entrevistas, é claro: "para mim são quarenta repolhos, quarenta cabeças que eu olho na minha frente e são meus alunos. São quarenta repolhos. Para mim não faz diferença se aprendeu ou não aprendeu. Não faz diferença se tem problema em casa ou se não tem. Eu quero saber que eu tenho mais uma aula e que no final do ano eu vou ter tido mais quarenta resultados." Você faz um processo de eliminar simbolicamente o aluno, para sofrer menos. Ou você elimina simbolicamente você. Você começa a detestar qualquer reunião. As melhores reuniões são as que você mais detesta porque elas envolvem você, sua participação, etc. Aí você não vai à reunião ou quando vai fica desenhando florzinhas e, atualmente, trocando mensagens no celular, escrevendo besteira para o amiguinho que está lá fora e recebendo besteira de volta e etc. Qualquer coisa, menos comprometer-se no trabalho. Isso chama-se baixo comprometimento no trabalho.

Em suma, o que revela o baixo comprometimento dos professores no trabalho?
Wanderlei Codo - E o que você tem aí? É um triangulo composto por exaustão emocional, baixo comprometimento e desprofissionalização. Este trio chama-se burnout, que atinge hoje trinta e cinco por cento dos professores. Estes sofrem de um sofrimento psicológico que se chama burnout e é composto por este tripé: exaustão emocional, baixo comprometimento e desprofissionalização [...]. Cuidado, em primeiro lugar burnout não é doença. Burnout é um sofrimento psicológico. Se você perdeu a sua mãe e está triste, eu não posso dizer que você é um doente mental. É mais fácil eu dizer que você é um doente mental se você perdeu sua mãe e não ficar triste. O burnout é exatamente a mesma coisa: se você tem essas condições de trabalho, se você tem problemas de trabalho, evidentemente você está falando de um sofrimento psicológico e não de uma doença mental. Eu estou lhe falando aqui, que o burnout protege essa saúde mental. Eu estou insistindo nesse ponto porque tem gente que está pensando assim: "ah, vamos dar licença para trabalhador que está com burnout". Não pode. O sujeito está sofrendo porque não consegue educar, aí você tira ele da escola? Seria mais ou menos equivalente você chegar num psicólogo e dizer assim: "doutor eu tenho problema de relacionamento sexual". "Então não transa mais"! Evidentemente vai piorar o pobre do sujeito se você falar para ele parar com a festa. Com a questão do burnout é a mesma coisa. Se o sujeito está querendo educar, se ele tem amor ao trabalho que ele está fazendo, cansa-se, esguelha-se pelo trabalho que ele está fazendo, então para de educar. Aí você transforma o burnout em depressão (esta última frase é uma figura de linguagem, pois claro que não é tão fácil assim). Mas não pode trabalhar com burnout como se trabalha com qualquer outro sofrimento psicológico. Quando você está com LER (lesão por esforço repetitivo) você tem que parar porque o que a LER está lhe dizendo assim: esse trabalho não pode estar aí. Esse trabalho tem que ser modificado. Não pode ser do jeito que ele está, por isso você para o trabalho. Mas quando o professor está com burnout o que ele está lhe dizendo? Que quer ensinar e não está conseguindo. Então é outra linguagem, é outro sofrimento, é outra forma de compreender essa relação. Não pode tratar todos os sofrimentos iguais, isso porque qualquer pessoa que lida com sofrimento humano sabe disso. Você tem um quadro onde ocorre mais ou menos sistematicamente o fenômeno do burnout que implica no sofrimento. O sujeito quer educar e não consegue. [...] então ele sofre porque não consegue educar direito. Isso implica mais sofrimento e vai numa espiral e vai aumentando, aumentando e aumentando.

Sucintamente, o que interfere no burnout, isto é, na sua incidência em maior ou menor grau?
Wanderlei Codo ? Os estudos que a gente tem feito, tem mostrado que tudo que acontece na educação interfere no burnout. Se o salário é ruim ou irregular interfere aumentando o burnout; se as condições de trabalho são melhores, diminui o burnout; se as relações entre os colegas são boas, o burnout diminui e se são ruins o burnout aumenta; as relações com as chefias são boas o burnout diminui e se não, o burnout aumenta; as relações com os alunos, com a comunidade, com os pais de alunos... se as condições cívicas, se a possibilidade que o professor tem de se aperfeiçoar etc, etc, etc... tudo interfere com o burnout.

O burnout constitui-se, assim, num instrumento de diagnóstico. Que implicações decorrem dessa condição?
Wanderlei Codo - Acontece que o burnout transformou-se num excelente instrumento de diagnóstico. O burnout é hoje o que é a febre para o médico. Quando aparece a febre, pode ser por mil razões, é um sinal claro que alguma coisa está errada. E, através do burnout, você pode apontar, assim como com a febre. Através do burnout você pode apontar que tem um problema e esse problema pode ser tratado. O burnout é um instrumento de diagnóstico excelente porque ale anuncia o problema antes que ele estore. Quando você percebe uma dificuldade com a chefia, isso em qualquer trabalho, não só com o educandor? Quando quebra o pau [...]. Quanto você sente um problema de relacionamento com os colegas? Quando estora tudo. Quando você sente problema com o aluno? Quando estora tudo. O burnout estora antes. Ele permite a você intervir no processo de trabalho antes. E a tecnologia que nós temos hoje permite, perfeitamente, você fazer um diagnóstico do trabalho e saber onde é que você tem que mexer, o que é que você tem que modificar. Perguntam sempre: "e agora o que é que faço contra o burnout?" Sozinho não faça nada. Sozinho a única coisa que você vai fazer é culpar-se por um problema que não é seu. Se o problema é da organização do trabalho, é dela as questões que você tem que tratar. É ali que você vai ter que tratar a questão do burnout, não é na relação individual. Não é você e seu marido que não se dão bem. Não é você e seu filho que estão com problema. É a sua relação com o trabalho que está com problema e é esta relação que precisa ser trabalhada. É ela que precisa ser cuidada. É ela que precisa ser vista. O burnout é um sintoma que tem alguma coisa errada na sua relação de trabalho. [...] Nós estamos num movimento muito importante, muito bom, muito grande no país em relação a avaliação. Tem a Prova Brasil que examina todas as escolas. Tem o Saeb que avalia as escolas. Isto está acontecendo em todos os níveis de educação e é muito bom que aconteça. [...] Mas eu estou defendendo no país inteiro, que esta avaliação tem que ser complementada com a avaliação do sofrimento psicológico do professor. E se você não avalia o vínculo afetivo, a relação que ele tem com o trabalho, se você não avalia pelo menos o burnout, você não tem uma avaliação completa do processo educacional, porque falta o relacionamento do trabalhador com o seu trabalho. E sem o relacionamento do trabalhador com o seu trabalho não é possível avaliar o trabalho de ninguém [...].

Para concluir, uma breve consideração sobre o educar, objetivo primordial no trabalho do professor.
Wanderlei Codo - Educar é uma tarefa impossível exatamente porque é fascinante, exatamente porque é onipresente, exatamente porque é onisciente. Exatamente porque educar transforma cada professor num Deus e cada aluno numa promessa. Realizar o desejo da sociedade, realizar o desejo de cada garoto é uma obrigação nossa. É uma obrigação grande. É uma obrigação que pesa e é uma obrigação que nos fascina, que faz com que cada um de nós se sinta melhor [...], sinta-se mais importante para si mesmo, para o resto do mundo, etc. O nosso trabalho, e eu, também, sou professor, eu estou falando como professor, o nosso trabalho permite-nos muito prazer, permite-nos muito sofrimento e permitirá que façamos um mundo melhor. A gente pode e tem direito de ser feliz no nosso trabalho. É isto que nós precisamos aprender. Obrigado!


REFERENCIAS

CODO, Wanderlei . Educação: Carinho e Trabalho. Brasília: Vozes, 1999.

_________ ; VASQUES-MENEZES, Iône. Burnout: sofrimento psíquico dos trabalhadores em educação. In: FORUM DO CONHECIMENTO. 5., 2009, Erechim. Anais... Erechim, RS: Fapes, 2009. 1 CD-ROM.

INEP. Prova Brasil: avaliação tem foco na escola. Disponível em: http://www.inep.gov.br/basica/saeb/prova_brasil/. Acessado em: 05 de maio de 2010.

SERANO, D. O Fim dos Empregos: Resenha do livro "Fim dos empregos" de Jeremy Rifkin. Disponível: http://www.portaldomarketing.com.br/Artigos/O%20Fim%20dos%20Empregos.htm. Acessado em: 05 de maio de 2010.