O ROUBO DE CARGAS COMO CAUSA EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE POR FATO DO SERVIÇO.[1]

Amanda Mota Alves

Letícia Cristina Sousa Ferreira[2]

 

Sumário: Introdução; 1 A responsabilidade civil no transporte de coisas com base no Código de Defesa do Consumidor, Código Civil, e Decreto dos Transportes nº 2.681/1912; 2 Análise das causas de excludente de responsabilidade por fato do serviço: força maior e caso fortuito relacionado ao sinistro do roubo de cargas; 3 A possibilidade da não caracterização de excludente de responsabilidade legal no caso de roubo de cargas: polêmicas sobre a questão da imprevisibilidade; Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

Preliminarmente far-se-á uma apreciação sobre a responsabilidade dos transportadores imposta pelo ordenamento jurídico brasileiro (Código de Defesa do Consumidor, Código Civil, e Decreto dos Transportes nº 2.681/1912). Feito isto, será feita uma análise a respeito das causas excludentes de responsabilidade por fato do serviço, estudando assim, a força maior e o caso fortuito associando-os ao sinistro do roubo de cargas. E por fim, discutir-se-á se existe possibilidade da não caracterização de excludente de responsabilidade legal no caso de roubo de cargas.

Palavras-chave: Roubo de cargas; Excludentes de responsabilidade; fato do serviço; Código de Defesa do Consumidor; caso fortuito; força maior.

 

INTRODUÇÃO

É inegável a obrigação do Estado de proteger dos consumidores em face dos fornecedores ou prestadores de serviços, haja vista a vulnerabilidade do consumidor. Como salienta Cláudio Belmonte (2002, p. 78) “a proteção dos consumidores é justificada pela sua evidente inferioridade negocial nos contratos firmados com fornecedores ou prestadores de serviços, decorrência de uma sociedade de consumo contemporânea”.

Desta vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, decorre a necessidade de tutela do consumidor em face dos fornecedores. E consequentemente a necessidade da responsabilização pelo fato do produto e do serviço, quando “alguns produtos e serviços acabam entrando no circuito comercial com defeitos que culminam por causar lesão à saúde, à segurança e ao patrimônio dos consumidores e utentes” (ALMEIDA, 2008, p.84).

Há, porém excludentes de responsabilidade, como exceção a regra de responsabilização do fornecedor. Tais situações que excluem o fornecedor da responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço estão elencadas no Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 12, § 3º, e também no vigente Código Civil, no artigo. 393, parágrafo único. deste modo, ressalva que “o CDC adotou um sistema de responsabilidade civil objetiva, o que não quer dizer absoluta, permitindo a previsão de algumas excludentes, tais como inexistência do defeito de produto ou serviço” (MARTINS, 2012).

Como objeto de estudo deste paper delimitamo-nos a analisar o caso fortuito e a força maior como causas excludentes da responsabilidade por fato do produto e do serviço. João Batista de Almeida (2008, p. 93) esclarece que “apesar de não previstas expressamente na lei de proteção, ambas as hipóteses possuem força liberatória e excluem a responsabilidade, porque também quebram a relação de causalidade entre o defeito do produto e o dano causado ao consumidor”.

Será analisado ao decorrer deste paper aos casos de exclusão de responsabilidade quando “fato imprevisível, resultante de ato alheio, que vai além das forças do individuo para superá-lo, ao qual a pessoa não tem meios de se contrapor” (GUIMARÃES, 2011, p. 352), isto é, casos de força maior, mais especificamente nos casos de roubo de cargas.

1 A RESPONSABILIDADE CIVIL NO TRANSPORTE DE COISAS COM BASE NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, CÓDIGO CIVIL E DECRETO DOS TRANSPORTES Nº 2.681/1912

Cumpre esclarecer preliminarmente, o conceito de responsabilidade civil de modo mais abrangente e genérico. Segundo Maria Helena Diniz (2007, p. 34) a responsabilidade civil consiste na utilização de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial a causado a terceiros, decorrente de ato praticado por ela mesmo, ou por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou por mera imposição legal.

No tocante à responsabilidade civil do transportador Sergio Cavalieri Filho (2007, p.284) afirma que há um tríplice aspecto da responsabilidade do transportador, visto que há a responsabilidade em relação a terceiros, responsabilidade em relação aos empregados, e a responsabilidade em relação aos passageiros.

O art. 730 do Código Civil prevê que através do contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas, o que acarreta uma responsabilidade legal do transportador em relação a pessoa que adquiriu aquele serviço.

Existe, assim, uma responsabilidade do transportador levar o viajante, ou a coisa, sãos e salvos, de modo que, se não for cumprida esta obrigação, cabe indenização, independentemente da aferida a culpa do transportador (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 287). Isto porque o escopo primordial do contrato de transporte não é apenas o simples transporte da coisa ou pessoa, mas executar isto de modo que a pessoa ou a coisa cheguem ao local de destino de maneira mais adequada e acordada no contrato (DINIZ, 2007, p. 471). Ou seja, como esclarece MONTENEGRO (1996, p.113) “a responsabilidade do transportador é contratual. Trata-se de uma obrigação de resultado, conduzir sãos e salvos passageiros e mercadorias ao lugar de destino”.

Iremos nos ater ao transporte de coisa, que corresponde aquele realizado quando o expedidor entrega ao transportador determinado objeto, através de um pagamento de frete, seja transporta para outra pessoa, em local diverso daquele que a coisa foi enviada (DINIZ, 2007, p. 472).  A responsabilidade civil neste caso incorre tanto no expedidor quanto no transportador.

O ordenamento jurídico brasileiro abarca no Decreto nº 2.681/1912 (Lei das Estradas de Ferro), no Código de Defesa do Consumidor e também no Código Civil, dispositivos normativos que regulamentam a responsabilidade civil do transportador.

A Lei das Estradas de Ferro – Decreto nº 2.681/1912 – foi no Brasil a lei pioneira quanto a regulamentação da responsabilidade do transportador. Apesar de abordar apenas o transporte nas estradas de ferro, por aplicação da analogia, entende-se que o Decreto nº 2.681/1912 deve ser aplicado as demais modalidade de transporte. Nesse sentido Sergio Cavalieri Filho (2007, p. 288) diz que “o Judiciário fez com a Lei das Estradas de Ferro aquilo que Boulanger chamava de ‘poder de rejuvenescimento das leis, poder que consiste em fazê-las viver seguindo ou atendendo às exigências do tempo presente’.”

É interessante observar que no art. 17 do referido decreto, é apontada a responsabilidade do transportador como subjetiva com culpa presumida. Entretanto, se realizada cuidadosamente a exegese do dispositivo normativo compreende-se que se trata na verdade de responsabilidade objetiva, apesar de ter expresso literalmente que é presunção de responsabilidade. Veja-se, o art. 17 da Lei de Estradas de Ferro, ipsis litteris:

“Art. 17 – As estradas de ferro responderão pelos desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes e de que resulte a morte, ferimento ou lesão corpórea. A culpa será sempre presumida, só se admitindo em contrário alguma das seguintes provas [...]” (grifo nosso)

Por isso, CAVALIERI FILHO (2007, p. 289) aduz que “embora tivesse a lei, por errônea terminológica, falado em culpa presumida” trata-se de responsabilidade objetiva. Pois que o próprio art. 17 do Decreto nº 2.681/1912, “não permitia ao transportador provar que não teve culpa” exceto em alguns casos específicos determinados legalmente. Assim, fica nítida a aplicação da “responsabilidade objetiva ao transportador, fundada na teoria do risco” (CAVALIERI FILHO 2007, p. 289).

O Código de Defesa do Consumidor também se aplica ao contrato de transporte, visto que envolve uma prestação de serviço. E como previsto no art. 14, do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”. (grifo nosso)

Destarte, no tocante à responsabilidade do transportador, o Código de Defesa do Consumidor reiterou o que já estava previsto no Decreto nº 2.681/1912, a responsabilidade objetiva. Porém, é salutar ressaltar que:

[...] que Código fez foi mudar o fundamento dessa responsabilidade, que agora não é mais o contrato de transporte, mas sim a relação de consumo, contratual ou não. mudou também o seu fato gerador, deslocando-o do descumprimento da cláusula de incolumidade para o vício ou defeito do serviço. Esse defeito pode ser de concepção, pode ser de prestação, e ainda de comercialização. Sendo irrelevante se o defeito é ou não imprevisível. O fornecedor do serviço terá que indenizar desde que demonstrada a relação de causa e efeito entre o defeito do serviço e o acidente de consumo, chamado pelo Código de fato do serviço. (CAVALIERI FILHO 2007, p. 291)

É, portanto, necessário que ocorra o fato do serviço para que se configure a responsabilidade objetiva do transportador. Tanto, que o vigente Código Civil, instituiu no seu art. 734 que “o transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”.  Nesse interim, que Maria helena diniz (2007, p. 56) afirma que claramente pela exegese dos artigos 734 e 927, parágrafo único, do Código Civil, a responsabilidade do transportador é objetiva.

Porém, é relevante ressaltar que existem hipóteses legalmente determinadas que possibilitem a exclusão da responsabilidade civil do transportador, as quais serão analisadas a seguir, primordialmente: força maior e caso fortuito.

2 ANÁLISE DAS CAUSAS DE EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE POR FATO DO SERVIÇO: FORÇA MAIOR E CASO FORTUITO RELACIONADO AO SINISTRO DO ROUBO DE CARGAS

Primeiramente, é salutar conceituar o significado de ambos e as possíveis divergências doutrinárias quanto à semelhança ou dessemelhança dos institutos do caso fortuito e força maior. Conforme o Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, in verbis caso fortuito advém do vocábulo latino casus significando acaso, obstáculo ao cumprimento da obrigação por motivo alheio a quem devia cumpri-la (SIDOU, 1990). Noutro dicionário, o de Humberto Piragibe Magalhães e Cristóvão Piragibe Tostes Malta, caso fortuito é acontecimento imprevisto e inevitável. Força maior é o acontecimento inevitável, aquilo a que não se pode resistir (MAGALHÃES & MALTA, 1998). Poderíamos então, conforme essa conceituação citar alguns exemplos do que viria a ser considerado caso fortuito e força maior, por exemplo, uma inundação, um incêndio, um desabamento são circunstâncias de força maior. Ou seja, são situações as quais não podemos evitar, e é onde, segundo uma parte dos doutrinadores, reside a característica da força maior.  Para eles, então, o caso fortuito, seria o sucesso imprevisível (TORNAGUI, p.320-321).

Há quem entenda também, esses dois institutos civis como semelhantes, que representa a mesma coisa, ou seja, é desnecessário e talvez até impossível dissociá-los como se fossem diferentes. É o que pensa o doutrinador e desembargador Sergio Cavalieri Filho, em sua obra Programa de Responsabilidade Civil, que define caso fortuito ou força maior como “o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar, ou impedir”. Esses fatos, indiscutivelmente, estão fora dos limites da culpa e excluem o nexo causal, por serem manifestamente estranhas a conduta do agente” (CAVALIERI FILHO, 2007 pg. 65). Assim, tais fatos se caracterizam por estar fora dos limites da culpa, excluindo por sua vez, o nexo causal, que é o que liga o fato ocorrido, o sinistro à conduta do agente. Podemos ainda citar aqui, o entendimento de V. César da Silveira, em seu dicionário de Direito Romano que afirma que:

                     

 “causus majores são acontecimentos mais fortes. Acontecimentos aos quais o homem não pode se opor, porquanto se devem a uma força a que ele é incapaz de resistir, e que acarretam a perda da coisa devida ou à impossibilidade de entregá-la ao credor. Tal é o caso da morte natural de um escravo, de um incêndio, da destruição em conseqüência do vento ou das águas, do naufrágio, de um ataque do inimigo ou de assaltantes. ‘Fortuitus casus est, qui nullo humano consilio praevideri potes’: Caso fortuito é o que não pode prever-se por nenhuma providencia humana’”. (SILVEIRA apud LEITE, 2006)

O Caso fortuito e/ ou força maior são causas de excludente de responsabilidade, previsto tanto do Direito do Consumidor, quanto no Código Civil. O Código Civil de 2002 aduz que: “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força : O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. O Código do Consumidor também prevê em sua redação:

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.     § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”.

Pra tanto, não é todo caso que pode ser considerado caso fortuito, necessário é que estejam configurados os requisitos para configurar este, quais sejam, em suma: imprevisibilidade, que é a impossibilidade de prever o evento danoso, a inevitabilidade, que é a impossibilidade de se evitar o dano (alguns autores acreditam que a inevitabilidade é requisito exclusivo da força maior, como Sergio Cavalieri). Há quem fale ainda do requisito da necessidade (capacidade fática de o evento causar dano sem que para isso tenha contribuído o sujeito) (SABINO COELHO, 2012). Assim, exemplifica Gisele Leite:

“Na melhor lição doutrinária, exige-se para a configuração do caso fortuito ou força maior, a presença dos seguintes requisitos: a) o fato deve ser necessário, não sendo determinado pro culpa do devedor, pois do contrário, não há caso fortuito; reciprocamente, se há caso fortuito, não pode haver culpa, na mesma medida em que um fato exclui o outro; b) o fato deve ser superveniente e inevitável; Desse modo, se o contrato é celebrado durante a guerra, não pode o devedor alegar depois as dificuldades dessa mesma guerra para furtar-se às suas obrigações; c) o fato deve ser irresistível, fora do alcance do poder humano” (LEITE, 2007).

Dessa forma, vemos que se no caso não estiverem presentes nenhum desses requisitos não poderão configurar o caso fortuito e a força maior. Em suma, para que seja caso fortuito ou força maior, deve estar excluído do fato ocorrido o nexo causal entre o evento danoso e a pessoa responsável pelo serviço/produto no caso das relações de consumo.  Assim, resta considerar, em casos que não tenha nexo causal entre um e outro, a isenção de responsabilidade, pois ninguém pode responder por eventos a que não tenha dado causa. Portanto,  se quando examinarmos tecnicamente a relação de causalidade, observarmos que o dano decorreu de outra causa ou circunstância alheia a vontade do agente, exclui-se a responsabilidade, pois tal evento danoso não foi ocasionado por ele direta ou indiretamente mas sim por um terceiro. Segundo Aguiar Dias, (DIAS apud CAVALIERI FILHO, pg. 36 2007), terceiro é qualquer pessoa além da vítima e o responsável, alguém que não tem nenhuma ligação com o causador aparente do dano e o lesado.

Assim, podemos, a partir de agora, traçar um comparativo entre esses conceitos e o crime de roubo de cargas. Podemos perceber que tal crime, em relação ao direito do consumidor, pode excluir a responsabilidade do transportador (e transportadora de mercadorias), se estiverem previstos os requisitos do caso fortuito e se considerarmos que tal sinistro (roubo de cargas) é imprevisível. Porém há quem questione isso, considerando o fato de assaltos a caminhões como algo que não pode ser considerado imprevisível. É sobre essa polêmica que iremos adentrar com maior respaldo no próximo capítulo

Por enquanto, ateremo-nos ao conceito de imprevisibilidade, ou seja, o que pode ser considerado como imprevisível? Sergio Cavalieri Filho nos explica que “entende-se por imprevisibilidade, (nesse caso) a imprevisibilidade específica, relativa a um fato concreto, e não a genérica ou abstrata de que poderão ocorrer assaltos, acidentes, atropelamentos etc., porque se assim não for, tudo passará a ser previsível”. (CAVALIERI FILHO, 2007, pg. 65). Assim, o limite da culpa consciente (aquela prevista, mas não aceita) é que mesmo não sendo previsto, o fato deve ser ao menos, previsível, e evitado. Afirma ainda o renomado autor que:

Todos podemos prever, por exemplo, que um dia haveremos de morrer; que se sairmos à rua numa cidade violenta e insegura poderemos ser assaltados, que se vou viajar, dirigindo um automóvel, poderei sofrer um acidente. Não basta essa previsibilidade, como já se disse, para configurar a culpa. Será necessário que determinado acontecimento, concretamente considerado, pudesse ter sido previsto pelo agente, e consequentemente evitado, mas não o foi por falta de cuidado. Se, embora genericamente previsível, não foi possível prever a efetiva ocorrência do fato danoso, não haverá que se falar em previsibilidade (CAVALIERI FILHO, 2007, pg. 36).

Dessa forma, em decorrência da dificuldade em se analisar se o fato era ou não previsível e se o for, apenas genericamente, mas não de fato previsível é que ocorre várias divergências doutrinarias, e inclusive jurisprudenciais acerca do sinistro do roubo de cargas, que uma parte considerável acredita ser, na atualidade, algo que não pode ser mais considerado como imprevisível, devido ao crescente numero de casos de roubo de cargas, e outros que consideram essa previsibilidade apenas como genérica, o que não caracteriza de forma alguma a culpa do agente, que não saberá de fato, se tal evento irá ocorrer. Podemos citar aqui, algumas jurisprudências relacionadas ao assunto em questão que divergem sobre o tema:

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL – PROCESSUAL CIVIL E CIVIL – AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL – TRASPORTE DE MERCADORIA – ROUBO – RESPONSABILIDADE DA TRASPORTADORA – O roubo de mercadoria praticado mediante ameaça exercida com arma de fogo é fato desconexo do contrato de transporte e, sendo inevitável, diante das cautelas exigíveis da transportadora, constitui-se em caso fortuito ou força maior, excluindo a responsabilidade dessa pelos danos causados. Agravo não provido. (STJ – AGRESP 470520 – SP – Relª Min. Nancy Andrighi – j. 25.08.2003).

 Do contrário, temos o entendimento de que:

 

SEGURO – Transporte de mercadorias – Seguradoras sub-rogadas que propuseram ação regressiva contra a transportadora, visando o ressarcimento dos prejuízos decorrentes da não entrega das mercadorias – Alegado pelo transportador motivo de força maior, visto que as mercadorias foram roubadas – Fato este plenamente previsível – Indenização devida – Existência, por outro lado, de contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil do transportador rodoviário por desaparecimento de carga celebrado entre a transportadora e a seguradora, denunciada à lide – Direito da transportadora em receber desta o reembolso da reparação que terá de pagar às seguradoras da proprietária da carga." (RT 725/258 – Ap. 525.407-5, 1º TACivSP, rel. Juiz Evaldo Veríssimo, j. 03.01.1995)

Assim, podemos perceber que o entendimento que exclui a responsabilidade do transportador em casos de roubo de cargas não é pacífico, o que no próximo tópico iremos explicar cada posicionamento. Por fim, podemos perceber que tanto o caso fortuito, quanto a força maior, são acontecimentos que escapam da diligência do indivíduo, mas que no caso das relações de consumo, prejudica diretamente o consumidor em casos em que se exclui a responsabilidade do agente, que não deu causa ao evento, e que não contribui para que o evento danoso ocorresse. Esses fatos, indiscutivelmente, encontram-se fora dos limites da culpa e excluem o nexo causal, por ser manifestamente estranhos à conduta do agente. 

3 A POSSIBILIDADE DA NÃO CARACTERIZAÇÃO DE EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE LEGAL NO CASO DE ROUBO DE CARGAS: POLÊMICAS SOBRE A QUESTÃO DA IMPREVISIBILIDADE

Como já é de nosso conhecimento, sabemos que nos dias atuais, os assaltos e a violência crescem a cada dia nas cidades, elevando o número de assaltos, de roubos, e consequentemente prejuízo de grandes empresas, na grande maioria dos casos. Com base em alguns dados estatísticos do SINDICARGA, SETCESP E SETECEB citados por, CREMONEZE e MACHADO FILHO, em seu artigo “O não reconhecimento do roubo de cargas como causa legal excludente de responsabilidade do transportador rodoviário”,  os registros de roubo de cargas em duas das principais cidades do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo chega a ser 80% dos casos de roubo de cargas, tendo como a “Via Anhanguera” a rodovia de maior incidência, seguida pela “Via Presidente Dutra” e “Castelo Branco”. Já nas outras regiões, como Nordeste, Sul e Centro-Oeste, o roubo de carga cresceu, de 1998 para 1999, 20%, 22,6% e 86% respectivamente. Os assaltos ocorrem mais em vias federais(59%) do que em estaduais (41%). (CREMONEZE & MACHADO FILHO, 2007).

Segundo o SETECESP – Sindicato das empresas de transporte de cargas de São Paulo e região, no ano de 2010, foram registrados um total de 7294 assaltos, com uma média mensal de 607,83 ocorrências, e no ano de 2011 foram registrados um total de 6958 assaltos, com uma média mensal de 579, 83 ocorrências. O prejuízo ultrapassa 575 milhões de reais, com uma média anual de aproximadamente 287,5 milhões de reais.

Podemos perceber, com base nesses dados, que o roubo de cargas não é mais um fenômeno completamente imprevisível, por ser habitual e constante no nosso país. Podemos demonstrar com o fato de que poucas seguradoras, ao se depararem com esses dados, aceitam celebrar seguro de transporte rodoviário, e, mesmo que celebrem, estipulam elevado prêmio, pois o risco também é considerável e eminente. É plenamente compreensível, portanto, o fato de muitos doutrinadores entenderem que não poderá se caracterizar a imprevisibilidade desse evento, visto que este poderá ocorrer a qualquer tempo e lugar, e diante de tal realidade, é bastante esperado, não caracterizando a excludente legal de responsabilidade (caso fortuito).

Assim, levando em consideração do crime ser frequente em todas as rodovias brasileiras, resta, portanto, para essa corrente, afirmar que tal sinistro impede o amoldamento do roubo à figura da fortuidade, pois não é algo que esta totalmente fora de cogitação, ou algo inesperado pelo individuo. Sobre tal argumento, pondera Paulo Henrique Cremoneze, e Rubens Walter Machado Filho:

“Vai-se mais além: ainda que o local onde se deu o roubo não seja, costumeiramente, palco de crimes, o contexto geral de violência e criminalidade que imperam hoje no mundo, especialmente no Brasil, são critérios suficientes para a caracterização do requisito previsibilidade. Afinal, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias, bens e valores deve estar preparado para as mais adversas situações, assumindo o risco em face da inequívoca previsibilidade delas ocorrerem. O roubo, após o furto, é, com toda a certeza, uma das principais ocorrências a que se tem previsibilidade em se tratando deste tipo de atividade comercial”. (CREMONEZE & MACHADO FILHO, 2007)

Cabe ainda mencionar que a responsabilidade do transportador só cessa com a entrega da mercadoria ao destinatário como afirma Sergio Cavalieri:

 

A responsabilidade do transportador inicia-se com o recebimento dos bens em seu deposito ou no local indicado pelo usuário e cessa com a entrega dos mesmos ao destinatário, cabendo a este a conferencia e as providencias legais em caso de ocorrência de perda ou dano causado aos bens transportados. A assinatura do recibo de entrega, sem ressalva, afasta qualquer reclamação posterior do destinatário, contra o transportador, por eventual dano ou perda. TJRJ, Ap. cível 6181/92 6º C., rel. Des. Sergio Cavalieri Filho Responsabilidade do transportador- Transporte rodoviário de cargas)

Pode-se, portanto, também, conforme esse entendimento da não exclusão de responsabilidade, desconsiderar o sinistro de roubo de cargas como fortuito interno (caso fortuito interno incide durante o processo de elaboração do produto ou execução do serviço), visto que deve ser absolutamente imprevisível e inevitável e não deve guardar nenhuma ligação com os riscos do transportador, o que, definitivamente, não é o caso do roubo de cargas.

Assim, é esperado, amparado pelo principio da equidade e proporcionalidade, que se demonstre o equilíbrio na aplicação de uma regra geral, que é de responsabilidade do transportador, visto que “o extravio da carga confiada para transporte é grave modalidade de falta contratual, na medida em que caracteriza a desídia do transportador, equiparado, como já se disse mais de uma vez, em suas funções regular a um depositário (deveres legais/contratuais de guardar, conservar e restituir)” (CREMONEZE & MACAHDO FILHO, 2007).

Todavia, cumpre afirmar que tal entendimento acima não é pacifico, nem doutrinariamente, nem jurisprudencialmente, pois há quem acredite piamente que cabe nesses casos, a exclusão de responsabilidade do transportador. A Súmula 187 do STF entendia que : “A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.” Dessa forma, obrigava o transportador a indenizar as vítimas, mesmo em casos de culpa de terceiro. Porém,

Com o correr do tempo a jurisprudência foi-se firmando no sentido do voto vencido, sob a consideração de que o fato exclusivo de terceiro, mormente quando doloso, caracteriza o fortuito externo, inteiramente estranho aos riscos do transporte. Não cabe ao transportador transformar o seu veiculo em carro blindado, nem colocar uma escolta de policiais em cada ônibus para evitar os assaltos. A prevenção de atos dessa natureza cabe ao Estado, inexistindo fundamento jurídico para transferi-la ao transportador” (CAVALIERI FILHO, 2007, pg. 296)

O mesmo doutrinador afirma ainda que:

 [...] tem se tornado frequentes os assaltos a caminhões, apoderando-se os meliantes, não só das mercadorias mas, também, do veiculo. Há verdadeiras quadrilhas organizadas explorando essa nova modalidade de assalto, muitas vezes até com a participação de policiais. Coerente com a posição assumida quando tratamos dos assaltos a ônibus, entendemos, também aqui, que o fato doloso de terceiro se equipara ao fortuito externo, elidindo a responsabilidade do transportador, porquanto exclui o próprio nexo de causalidade. O transporte, repetimos, não é causa do evento; apenas a sua ocasião. Não cabe ao transportador transformar o caminhão em um tanque de guerra, nem colocar um batalhão de segurança para cada veiculo de sua empresa a circular por todo País. A segurança pública é dever do Estado (CAVALIERI FILHO, 2007 pg. 324).

Portanto, há entendimento contrário ao que foi aqui primeiramente colocado, observando que sob tal assunto paira importante polêmica, principalmente no que diz respeito a configuração ou não da imprevisibilidade no que tange o roubo de cargas no Brasil. Cabe ao juiz, ao analisar o caso concreto, identificar os requisitos para caracterizar o caso fortuito, e na ausência deste, excluir a responsabilidade. No julgado abaixo, vemos que o fato danoso, não continha nenhum nexo causal com a transportadora e o TJRJ, decidiu que dever-se-ia excluir a responsabilidade:

Responsabilidade civil do transportador – Roubo de carga – Fato doloso de terceiro equiparável ao fortuito externo – Exclusão de responsabilidade. O fato exclusivo de terceiro, como o assalto à mão armada, por ser inevitável, equipara-se ao fortuito externo, excludente do próprio nexo de causalidade. É fato inteiramente estranho, sem nenhuma conexidade com o transporte, não inserido nos riscos próprios do deslocamento da mercadoria. O transporte, em casos tais, não é a causa do dano, apenas a ocasião, cabendo à autoridade pública a prevenção de atos lesivos da natureza do que aqui se cogita. TJRJ, Ap. cível 4510/94 (2º C., rel. Des. Sergio Cavalieri Filho)

Afirma ainda Maria Helena Diniz que: “é obrigação do remetente ou expedidor da mercadoria correr os riscos oriundos de vício da coisa, de caso fortuito ou força maior, logo, o condutor estará isento dessa responsabilidade” (DINIZ,1996, p. 285).

Enfim, tais afirmações e posicionamentos ensejam debates jurídicos, e alimentam divergentes opiniões a respeito do tema. Porém, é salutar observamos que ante os fenômenos de grave violência na atualidade se tornar perfeitamente previsíveis, cabe ao transportador tomar as medidas necessárias à segurança da mercadoria, visto que o contrato deve ser cumprido, e para que este seja perfeitamente cumprido, é necessário que se invista em segurança haja vista que a possibilidade de roubo a ponto de frequente incidência os obriga a tomar as medidas cabíveis de proteção. É deveras inverossímil que o roubo seja considerado algo fortuito e imprevisível, pois os fatos atuais já não são os mesmos antes considerados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contrato de transporte é um dos negócios mais antigos e usuais, sendo comum a utilização deste serviço por inúmeras pessoas. A empresa que realiza o transporte, que pode ser física ou jurídica, deve estar apta “à oferta e à prestação de serviços de deslocamento de pessoas e de mercadorias por via terrestre, aquaviária, ferroviária e aérea, mediante contratos celebrados com os respectivos usuários, revestindo-se para tanto de forma empresarial, e assumindo os riscos decorrentes desse empreendimento” (DINIZ, 2007, p. 471). A proporção

Entretanto, como já analisado ao decorrer deste paper esta responsabilidade objetiva do transportador, deve ser minimizada, através das causas excludentes de responsabilidade por fato do serviço, sejam elas força maior e caso fortuito.

Nesse sentido deve-se também ressaltar a crescente violência que assola a sociedade. Sendo os transportadores de cargas vítimas frequentes de assaltos e furtos. Maria Helena Diniz (2007, p. 476) afirma que incorrerá “responsabilidade se houver perda ou extravio, furto ou avaria, na mercadoria transportada, exceto se oriunda de vício próprio, força maior ou caso fortuito”.

No tocante ao roubo de cargas, há divergências doutrinárias e jurisprudenciais quanto a aplicação das excludentes de responsabilidade força maior e caso fortuito devido a questão da imprevisibilidade. Sendo assim para parte da jurisprudência nos casos de roubo de carga, aplica-se o caso fortuito e força maior, retira-se a responsabilidade objetiva de indenizar do transportador. Porém como já dito, há divergência, sendo, portanto imprescindível à análise de cada caso concreto, para que seja averiguado que há ou não aplicação do caso fortuito e força maior.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICAS. Dicionário Jurídico. Org. por J. M. Othon Sidou. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

 

ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

BRASIL. Decreto nº 2.681. Regula a responsabilidade civil das estradas de ferro. Brasília: Senado: 1912

_______. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, em vigor a partir de 11.01.2003. Institui o Código Civil Brasileiro. Brasília: Senado, 2002.

 

_______. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília: Senado, 1990

 

BELMONTE, Cláudio Petrini. Proteção contratual do consumidor: conservação e redução do negócio jurídico no Brasil e em Portugal. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2002.

 

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2007.

 

CONJUR. ECT não indenizará cliente por roubo de vídeos. 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-nov-12/roubo-cargas-motivo-forca-maior-afasta-responsabilidade-ect. Acesso em: 09 mar 2013.

 

CREMONEZE, Paulo Henrique; MACHADO FILHO, Rubens Walter. O não reconhecimento do roubo de cargas como causa legal excludente de responsabilidade do transportador rodoviário. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 836, 17 out. 2005 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7437>. Acesso em: 09 mar. 2013

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. Vol. 7. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

__________. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 2.ª ed., 1996.

 

LEITE, Gisele. Considerações sobre caso fortuito e força maior. Rev. Jus Vigilantibus, 12 de fev. 2006. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/20117/1> Acesso em: 05 mai. 2013.

 

GUIMARÃES, D. T. Dicionário Técnico Juridico. 14ª ed. São Paulo: Editora Rideel, 2011

 

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7 ed.. São Paulo Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

MAIA, Alneir Fernando Santos. A inclusão do caso fortuito e da força maior como excludentes de responsabilidade civil nas relações de consumo. Revista Meritum, Universidade FUMEC, Vol. 7, Nº 01 - janeiro/junho 2012. Disponível em: http://www.fumec.br/revistas/index.php/meritum/article/view/1209. Acesso em: 06 mar 2013.

 

MAGALHÃES, Humberto Piragibe & MALTA, Cristóvão Piragibe Tostes. Dicionário Jurídico. 8ª ed., Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1998.

 

MARTINS, Plínio Lacerda. O caso fortuito e a força maior como causas de exclusão da responsabilidade no código do Consumidor. 2012. Disponível em: https://aplicacao.mp.mg.gov.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/354/caso%20fortuito%20e%20for%C3%A7a%20maior_Martins.pdf?sequence=1. Acesso em: 04 mar 2013.

 

MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 2ª Ed. revista atualizada e ampliada. Editora Revista dos Tribunais, 2008.

 

MONTENEGRO, A.L.C. Responsabilidade Civil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996.

SABINO COELHO, Ana Carolina Melo. A responsabilidade Civil Objetiva no Código de Defesa do Consumidor. Portal de e-governo, inclusão digital e sociedade do conhecimento, 2012. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/responsabilidade-civil-objetiva-no-c%C3%B3digo-de-defesa-do-consumidor> Acesso em : 12 mai. 2013.

STF Súmula nº 187 - 13/12/1963 - Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal - Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 96.

 

TORNAGUI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. vol.2. p.320-321. RT, 1975.



[1] Paper apresentado como requisito parcial de aprovação na disciplina de Direito do Consumidor, lecionada pelo Prof.º Esp. Roberto Almeida, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[2] Alunas do Curso de Direito do 8° Período/Vespertino, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.