O retrato do clero em "O Crime do Padre Amaro"
Vivian Nina Nunes*

Palavras-chaves: decadência ? clero ? celibato.

A literatura, desde sua gênese, esteve diretamente relacionada ao momento histórico por qual a humanidade estava passando e por essa razão sempre refletiu e divulgou os fatos preponderantes (positivos ou negativos) no contexto em que estava inserida. Com a literatura realista não poderia ser diferente.
Distinguindo-se dos movimentos precedentes, o Realismo inaugura uma nova maneira de compreender e explicar a realidade: através do conhecimento científico. Para entendermos melhor essa influência das ciências nas artes, faz-se necessário expor algumas das teorias em evidência na época. A "Teoria das espécies", de Charles Darwin apresentou uma nova concepção de mundo, diferente da que até então se conhecia: a idéia de que o mundo havia sido criado em apenas sete dias foi contestada, dando lugar a esta nova, que afirmava ter passado o mundo por um longo e constante processo de crescimento e evolução. A enorme repercussão que teve o "darwinismo" revolucionou todas as demais ciências.
Por defenderem que a natureza humana é determinada por fatores externos, o positivismo de Auguste Comte e o determinismo de Hippolite Taine foram duas teorias decisivas para a convergência da biologia e das ciências sociais. Esta considera que a conduta das pessoas seria condicionada pela hereditariedade, pelo meio em que o indivíduo está inserido e pelo momento histórico, que lhe proporciona as circunstâncias necessárias. Aquela explica que os fatos físico, social ou espiritual, estão diretamente relacionados de forma imediata e mecânica por meio de leis naturais. Embasados nesses postulados científicos e filosóficos, os escritores realistas buscam estudar a sociedade com a mesma objetividade que orientava os cientistas nas suas pesquisas.
Em Portugal, a nova estética foi introduzida por um grupo de intelectuais durante a conferência no Cassino Lisbonense (1871), conhecida como questão Coimbrã. Dentre esses intelectuais destaca-se Eça de Queirós, autor da obra "O Crime do Padre Amaro", objeto deste trabalho.
"O Crime do Padre Amaro" foi a primeira produção literária do Realismo português, através do qual Eça procura colocar em prática tudo o que teorizou na conferência no Cassino Lisbonense: "a incorporação artística do método de observação da realidade, próprio das ciências experimentais da época", retratando a sociedade tal como era, sem ocultar nenhum aspecto, por mais execrável que fosse. Rompendo, deste modo, com todo o subjetivismo e idealização do Romantismo, movimento duramente criticado pelo escritor, que chegou a comparar os dois estilos, e depois deu o seu parecer de forma a menosprezar este último. No trecho abaixo, Eça expõe sem nenhuma reserva sua opinião sobre ambos os movimentos literários, e a forma como cada um ?analisa? e ?reproduz? a realidade histórica e social do momento:
Outrora uma novela romântica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje o romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-se o jogo das paixões a priori; hoje se analisa a posteriori, por processos tão exatos como os da própria fisiologia. (...) A arte tornou-se o estudo dos fenômenos vivos e não a idealização das imaginações inatas. (...) Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica.
Partindo dessa perspectiva, Eça procura produzir uma literatura engajada, de forma que viesse intervir na realidade, contribuindo assim para o desenvolvimento social, seu propósito era "criticar para corrigir". Essas críticas são direcionadas às várias instituições tanto políticas, sociais ou religiosas, esta última recebe especial atenção em O Crime do Padre Amaro. O autor revela este propósito em uma carta escrita a Teófilo Braga, na qual comenta sobre a produção de "O Primo Basílio":

É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso - e, com todo respeito pelas instituições de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações que lhe dá uma sociedade podre. Não lhe parece você que um tal trabalho é justo?

E pelo que consta o autor consegue com excelência o seu primeiro objetivo ainda que suas denúncias não retificassem, de fato, as atitudes torpes de uma sociedade decadente e corrompida.
Em "O Crime do Padre Amaro" Eça aborda vários temas religiosos, dogmáticos ou não, tudo para alcançar um retrato exato do clero. Veremos aqueles de maior relevância nesse processo de conceber a Igreja tal qual ela era.
Freiras e padres não podem casar. São proibidos de ter filhos e de manter relações sexuais como qualquer mortal. Ao abraçar a vida religiosa, homens e mulheres assumem os compromissos do celibato e da castidade, indissociáveis do sacerdócio desde o século IV. Mas será que os votos são sempre respeitados? Este é o tema mais criticado no romance, pois é tão abrangente, do ponto de vista das conseqüências, que outros "erros" resultam dele, como por exemplo, o adultério; pois se não houvesse a imposição do celibato e da castidade, não seria ilícito, para padres, o envolvimento com mulheres. Esse é um dos argumentos expostos durante um monólogo de Amaro para tentar justificar a atitude dos clérigos; ele diz que se era proibido a eles a satisfação mais natural, que até os animais têm, de concretizar de forma digna e pura o instinto sexual, não restava alternativa se não buscar realizá-lo por vias obscenas, adúlteras, pois "tudo se ilude e se evita, menos o amor". O pároco torna-se porta-voz das acusações do narrador ao celibato, amaldiçoando aqueles que "inventaram" isto: "Um concílio de bispos decrépitos, (...) inúteis como eunucos", desta forma, o seu amor era apenas uma infração canônica, não um pecado da alma. A revolta de Amaro com as imposições da instituição é tal a ponto de querer se "fazer protestante".
Nesse momento da narrativa, já percebemos o conflito psicológico de Amaro, que começa se arrepender do sacerdócio, pois este o impede de usufruir os prazeres humanos e sociais. Esse desejo de Amaro de casar e possuir mulheres é revelado ainda quando criança, antes de ir pro seminário, até mesmo quando ele lá se encontra, os desejos carnais o perturbam, mas são sufocados por um breve período de tempo pela responsabilidade religiosa que assume e até mesmo porque no seminário não haviam mulheres, tanto é que bastou um "incentivo" para que eles ressurgissem.
Esse pensamento reflete a crítica de Eça também à imposição do sacerdócio, comum na sociedade da época, não se levava em consideração a vocação religiosa e talvez por isso o clero estivesse em situação tão degradante. Amaro não possuía nenhuma vocação para o sacerdócio, o aceita por comodismo, porque o seu caráter covarde e encoberto correspondia às atitudes de um sacerdote: "Tornou-se enredador, muito mentiroso", "era extremamente preguiçoso". A retrospectiva da infância do Padre é feita com o propósito de fundamentar seu caráter, de acordo com os princípios realistas, revelando aspectos que no presente poderiam passar despercebidos.
Na obra, o narrador permite que as práticas absurdas e desprezíveis dos clérigos sejam reveladas por eles próprios para reforçar a veracidade pretendida pelo autor. Isso acontecia sempre nos banquetes que eles frequentemente organizavam. O jantar na casa do abade da Cortegassa é o mais elucidativo de todos, visto ser nesta ocasião que é revelado o caráter de todos os eclesiásticos que compunham o cenário em que Amaro estava inserido. Um dos temas denunciados neste momento é a banalização da confissão, os padres usavam a confissão para chantagear os fiéis a seu favor, como podemos ver na fala de Pe. Natário: "Da confissão tira-se grande partido! Escutem criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira!... O que eu quero dizer é que um meio de persuasão, de saber o que se passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus é uma arma ? aí está o que é ? a absolvição é uma arma (pág. 87)".
Ainda nesse jantar, percebe-se a indiferença com que tratam a pobreza que havia na cidade, pois quando um mendigo bate à porta para pedir comida, recebe algumas migalhas e ainda contra a vontade da maioria dos presentes no recinto. Dentre os veteranos, só o abade da Cortegassa pareceu se importar com a miséria que havia nas redondezas. O Padre Natário se mostra como o mais egoísta e mesquinho deles, ainda com o pensamento medieval de que a pobreza (dos outros, diga-se de passagem) agrada a Deus. Nesse contexto, Amaro foi o único que se surpreendeu, mostrando que nesse momento, ainda possuía algum princípio moral e religioso. Porém à medida que pratica os atos pecaminosos, a culpa desaparece, ou seja, seu caráter vai se "aperfeiçoando", e até ao final do romance, estará moldado de forma a coincidir com o de todos que o cercavam, confirmando a teoria determinista de que o homem é produto da raça, do meio e do momento.
Encontramos ainda referência aos sete pecados capitais, praticados pelos clérigos. Iniciando pela luxúria, este é um pecado muito bem representado na obra, possui muitos "simpatizantes", a maioria dos padres possui uma amante: do Cônego Dias, Augusta Caminha (S. Joaneira); de Amaro, Amélia; do padre Brito, a mulher do regedor, dentre outros. A gula, que parece ser um pecado menos grave, abrange a todos, mas duas personagens em especial, são caracterizadas pelo fato de comerem em excesso: o antigo pároco da cidade, José Miguéis "que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões" e o Cônego Dias que "ultimamente engordara um pouco,... o beiço espesso fazia lembrar velhas anedotas de padres lascivos e glutões". O apego às coisas materiais, a avareza, dominava mais ao Cônego Dias, "que passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas", ao padre Natário, ao abade da Cortegassa e Amaro.
A vaidade tem como principal representante o próprio Amaro, que revela o desejo de merecer elogios para alimentar seu ego, pois acredita ser superior aos outros já que é um representante direto do supremo ser divino; sua vaidade é exposta juntamente com a inveja sem igual que sente de João Eduardo, porque este pode possuir Amélia sem nenhum impedimento. O cônego Dias é ironicamente visto como a personificação da preguiça, ainda que não seja o único a praticar este pecado.
Como sendo o principal representante do clero, Amaro é a pessoa que reúne a maioria dos pecados capitais: a ira se manifesta em vários momentos e quase sempre relacionados aos ciúmes que sente de Amélia. Como em um momento em que Amélia diz que vai a uma festa, e Amaro agarra-lhe os pulsos e ameaça de matá-la (pág. 242, 2002), tornou-se possessivo e violento nesses momentos. O cônego Dias é o segundo mais cotado na disputa de quem comete mais pecados, mas isso também tem uma razão de ser, ele foi o mestre de moral de Amaro no seminário, portanto, um modelo a ser seguido. O abade Ferrão é o único sacerdote diferente na obra, servindo de contraponto para destacar os atributos negativos dos demais religiosos e, de certa forma, para confirmar a opinião de Eça sobre o clero: de que entre muitos, talvez houvesse um virtuoso.
Eça ainda critica a Igreja por ignorar a ciência e dar para tudo explicações místicas, como por exemplo, a criação do mundo, a existência das espécies, a formação das línguas. Esse questionamento é feito através do personagem Dr. Golveia, que se coloca como defensor das teorias científicas então vigentes, convicto de que havia uma explicação racional para todas essas coisas. Critica também os sacramentos da Igreja como o Batismo por ser imposto sem a aceitação da razão, de forma que a pessoa não tenha tido liberdade para escolher sua crença e religião.
Um assunto bem polêmico ainda é colocado pelo autor, ainda que de forma sutil, quase imperceptível: o homossexualismo. O beato Libaninho é a alusão que Eça faz para sugerir que essa prática era comum no meio dos padres, já que o efeminado beato estava sempre na companhia deles. Havia motivos razoáveis para não acusar diretamente os padres, pois é bem menos abominável um homem não resistir a seus instintos naturais de desejar uma mulher e demonstrar sua virilidade, do que abandonar toda a masculinidade própria da raça e transferir o seu desejo para alguém do mesmo sexo, por motivos sociais, éticos e morais, talvez até machistas.
Como podemos perceber, a crítica ao clero é feita do início ao fim da narrativa, mostrando que eles agem apenas por interesses grosseiramente materiais como dinheiro, alimento e sexo, estabelecendo uma contradição entre o que são e o que aparentam ser. A obra de Eça de Queirós foi escrita no século passado, mas continua atual, aumentando ainda mais a relevância tanto do estilo como dos temas abordados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELLINE, Ana Helena Cizzoto. Roteiro de Leitura: O Primo Basílio de Eça de Queirós. São Paulo, Ática, 1997.
QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. 15 ed. São Paulo, Ática,2002.
SILVEIRA, Francisco Manoel. Preliminares. In: A literatura Portuguesa em Perspectiva: Romantismo/Realismo. São Paulo: Atlas, 1994.