1 INTRODUÇÃO

O que é uma (possível) escola cidadã na concepção da Pedagogia Social? E qual é a concepção de cidadania da (possível) escola cidadã? Estas duas questões são basilares para a compreensão da escola cidadã na sociedade em que vivemos. Elas são de cunho epistemológico porque coloca no centro das discussões todo um debate travado nos meios educacionais e sociais de qual seria o papel da escola na sociedade contemporânea, que passa por sérias mudanças para se adaptar às próprias mudanças do sistema que ela legitima.
Nesse sentido, vamos responder essas questões refletindo criticamente a partir das atuais condições da escola no capitalismo, cuja versão que conhecemos, e isso nos limita a pensar a escola cidadã, pois essa cidadania será sempre a partir da nossa visão de mundo, de homem e de sociedade que o capitalismo nos impôs, mesmo diante dos nossos esforços de criticar suas contradições e almejar outra possibilidade de existência que não nos seus parâmetros.
Assim, este texto está dividido em três seções que se complementam e respondem tanto a questão central posta no título, como aquelas que se encontram em todo o texto, principalmente como subtítulos.


2 O QUE (NÃO) É UMA ESCOLA CIDADÃ?


Pensar que a escola que temos não é cidadã já é uma grande contradição e, ao mesmo tempo, um desvelar essa contradição posta pelo sistema capitalista, qual seja de que a escola que ela propôs para a sociedade não é uma escola cidadã, posto que essa questão não era para ser discutida, caso a escola fosse lugar de emancipação humana. Há que se separar de imediato dessas análises a escola para a burguesia que de fato cumpre os anseios de cidadania dessa classe, que é a de formar suas crianças, adolescentes e jovens para assumir as funções de liderança no campo da economia e da política que são fundamentais por decidir a vida social como um todo e que está diretamente ligada aos interesses dessa classe de governantes.
A escola que não tem sido cidadã é a escola para o pobre sobre a responsabilidade do Estado ? a escola pública e a escola particular de qualidade duvidosa voltada também para os pobres que ainda conseguem a muito custo pagar para garantir para seus filhos, pelo menos, que todo dia tenha aula, não importando muito se essa tem ou não qualidade didático-pedagógica e epistemológica.
São muitos os problemas que fazem com que não tenhamos uma escola cidadã: falta de professores qualificados, bem como de gestores educacionais comprometidos com a educação libertadora; ausência de uma proposta de currículo centrada em conhecimentos científico-culturais que tenham relação direta com a vida dos alunos, de maneira que promova a consciência crítica; indefinição de uma pedagogia e psicologia centradas na emancipação social e cognitiva dos alunos; política de acesso e permanecia dos alunos a ponto de garantir o acesso aos mais elevados níveis de escolarização (do ensino fundamental ao universitário), dentre outros.
Historicamente, esses problemas foram se constituindo na educação brasileira como um todo, sendo que em alguns lugares do nosso território agrava-se mais ainda como é o caso de muitos municípios baianos que apresentam uma educação abaixo de qualquer índice de aprovação nacional; por exemplo, a realidade de muitos municípios da Região do Baixo Sul Baiano, da qual o Município de Valença faz parte, encontramos altos índices de repetência e evasão escolar de alunos, inexistência de um currículo de educação fundamental por parte das secretarias municipais, classes multisseriadas sem a necessária formação e qualificação dos professores para atuar nesse âmbito, bem como a ausência de uma prática educativa libertadora e uma psicologia da aprendizagem condizente com a realidade cognitiva dos alunos.
Em relação à educação daquelas crianças e jovens que estão nos distritos municipais que são mais afastados da sede a situação é pior ainda: prática pedagógica que beira ao senso comum, minimização dos conteúdos científico-culturais, bem como desconsideração da realidade rural local como conteúdo central na aprendizagem e mudança de atitude dos alunos, metodologia da aula expositiva, avaliação como produto, embora no discurso seja processual, disciplina baseada no autoritarismo do professor beirando muitas vezes a agressão verbal.
A situação dos/as professores/as nesses distritos é bastante vergonhosa em relação à sua atuação ? são professores/as multiusos: ao mesmo tempo dão aula sem os mínimos recursos didáticos, fazem a merenda escolar, limpam a escola, lavam banheiros, capinam a área externa da escola, ajudam na segurança da escola, matriculam, visitam os alunos quando estes não comparecem a escola, dentre outras. Tudo isso os/as professores/as são obrigados a cumprir sob a mira constante do desemprego imposta pelos prefeitos ou sobre a ameaça de serem transferidos para outra escola mais distante ainda da sede municipal. Estes dois instrumentos e outros são utilizados coercitivamente com os/as professores/as, obrigando-os/as a aceitar essa situação de exploração de sua mão de obra e aviltamento de sua condição humana e de professor/a.
A que se falar também de mais três problemas que afligem os/as professor/as nesses lugares, como os baixos salários que esses/essas professores/as ganham que não dá para a sobrevivência mínima, agressões verbais e físicas sofridas principalmente pelas professoras e surrupiamento dos seus décimos terceiros, proventos de férias e outros, por parte de muitos prefeitos desonestos.
Essa ausência de uma política educacional termina por comprometer a qualidade na educação, fazendo com que não tenhamos efetivamente uma escola cidadã. Assim, são esses os problemas que precisamos atacar para resolver essa problemática que, desde já, consideramos não ser uma tarefa das mais fáceis porque, em parte, depende tão somente da luta que os educadores em conjunto com a sociedade travarão para elevar a escola pública à condição de lugar de aprimoramento da cidadania, já que temos a certeza que a cidadania não começa na escola, e sim no âmbito social, para não dizer que já deveríamos nascer cidadãos.
Isto significa que a qualificação da escola para esse fim não será algo dado, mas construído a partir de uma concepção crítica de sociedade, de humanidade, de economia e educação que os educadores e a própria sociedade tenham. Esse ideal passa por uma luta de classes, de perda de hegemonia de uma classe sobre a outra porque a defesa de uma escola cidadã é na realidade

de uma escola para além do capital, como defende Mészáros (2005, p. 65- grifo do autor), é aquela que elabora "estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente".
Mas, há um reconhecimento nos meios educacionais e sociais que a escola formal pode muito pouco em relação a implantar um processo efetivo de construção de outra cidadania para além do capital, já que ela está comprometida, de alma e corpo, com os ideais do capital. Nesse caso, a aposta que se faz é que a educação não formal cumpra essa tarefa de internalização das novas condições imateriais de outra produção da existência que não essa baseada na perversidade da desumanização de homens, mulheres e crianças. Dentro dessa concepção, a Pedagogia Social como herdeira dessa tradição e por ser um processo educativo preocupado com aquelas pessoas e grupos que passaram por processo de desumanização, cumpriria a tarefa de mudar as condições objetivas de reprodução do capital.

3 O QUE É UMA ESCOLA CIDADÃ NA PEDAGOGIA SOCIAL?


A Pedagogia Social é uma teorização da prática educativa que acontece intencionalmente nos espaços sociais marginalizados onde existem pessoas e grupos excluídos historicamente do mundo social e do trabalho; portanto, é uma prática educativa que tanto pode acontecer no âmbito da concepção formal de educação, como não-formal, mas que nasce no seio dos movimentos sociais e das necessidades de grupo por uma educação diferenciada, de contraconsciência dos grupos dominantes da sociedade. É uma educação com forte compromisso com a conscientização crítica dos sujeitos que dela faz uso político de embate ideológico, construindo também seus espaços e territórios de poder legitimando seus ideais.
Para Jacyara Paiva (2009, p. 3), a Pedagogia Social é uma prática educativa especial porque busca atender aquelas pessoas em "condições sociais conflitantes", que tiveram sua "cidadania adulterada", portanto sendo uma educação que se processa nos "espaços não escolares, não formais, praticando uma escuta empática dentro do contexto sócio-histórico em que o educando encontra-se inserido". Evelcy Machado (2009, p. 7) considera que a pedagogia social atua tanto na socialização dos indivíduos, como na intervenção social na via do chamado trabalho social com grupos e pessoas marginalizados. Essa autora explicita que o conceito de socialização diz respeito à "ciência pedagógica da educação social do indivíduo, que pode ser desenvolvida por pais, professores e família?, enquanto a de trabalho social é "direcionado ao atendimento a necessidades humano sociais, desenvolvido por equipe multidisciplinar da qual participa o Educador Social como profissional da Pedagogia Social".
Não resta dúvida que essa pedagogia assuma o método dialético para pensar os fenômenos sociais que necessitam de intervenção educativa emancipadora, isto porque esse método permite pensar e refletir a prática no bojo da filosofia da práxis ? única capaz de alimentar a prática educativa social e renovar a teoria pedagógica social. Concordo com Stela Graciani (2009, p. 213) quando afirma que a dialética na Pedagogia Social não é uma mera transposição de seus aspectos teórico-metodológicos, mas que deva ser um "processo de construção de conhecimento que se apropria criticamente da realidade para poder transformá-la". Essa é a base do social da Pedagogia Social, isto é, sua base epistemológica que lhe dá uma intenção, uma finalidade social ? emancipação dos oprimidos.
Há que se dizer que outras bases epistemológicas não garantem esta concepção de emancipação porque tem toda uma visão de mundo, de homem e de sociedade diferente que não corresponde a uma outra possibilidade de produção da existência, mas de conformação da atual com todas as suas contradições, segundo Antonio Pereira (2010a). Não dá para pensar uma Pedagogia Social da conformação, da adaptação e da negação de uma vida mais justa quando ela está comprometida, por exemplo, com uma epistemologia realista, estruturalista, positivista que não defende mudanças radicais, mas sempre no território do capitalismo. Sobre essa questão, são esclarecedoras as afirmações de Érico Machado (2009, p. 44 ? grifo do autor), quando diz que a Pedagogia Social pode estar a serviço ou servir para a manutenção da ordem vigente, indo de encontro às formulações críticas que se têm feito sobre ela, que "por meio de projetos, programas e instituições essas práticas educativas podem contribuir em um processo de apenas manutenção da realidade, colocando cada um no seu lugar, por assim dizer", não sendo portanto, práticas educativas de emancipação social.
Essa mesma preocupação encontramos em Marlene Ribeiro (2005, p. 211-212), quando afirma que o adjetivo social dessa Pedagogia pode, muitas vezes, não significar reais transformações de sujeitos e grupos que são marginalizados, socialmente, porque podem estar ocultando a "contradição que sustenta a sua unidade dialética precária porque contraditória, cuja fragilidade/força se deve à disputa de projetos sociais", sendo que tal disputa é pela "hegemonia na sociedade e na educação [que] pode ser visualizada pelo acréscimo do "social" a esta última, carregado de sentidos". Portanto, pensar a Pedagogia Social no Brasil é refletir sobre essas questões de fundo epistemológico de maneira que ela tenha uma identidade própria, saindo da sombra da educação popular e da dúvida se é ou não educação formal ou não-formal.
Acredito que outras reflexões deverão ser feitas, principalmente no que tange à relação entre Pedagogia Social e Pedagogia Socialista, já que a primeira vem assumindo a mesma teoria do conhecimento, que é o materialismo histórico-dialético e suas categorias: totalidade, contradição, possibilidade e práxis. Definir essa base, o campo e habitus de ambas as pedagogias será essencial para a construção de um projeto de educação de formação humana emancipador.
Com essa posição, não se está querendo negar as reflexões educativas de outras epistemologias, pois essas são interessantes para pensarmos o processo educativo de maneira geral; ajuda-nos também a situar, teoricamente, o objeto da prática educativa e o campo da pedagogia geral e específica, contribuem para a compreensão do passado e do presente pedagógico e educativo, têm a capacidade de dar uma explicação sobre o homem, a sociedade, a ciência, o mundo, porém na transformação da situação aviltante de muitos indivíduos e grupos ? só a filosofia da práxis e a práxis pedagógica que emanam dessa filosofia são capazes de concretizar o projeto histórico da Pedagogia Social, que é a formação humana emancipatória daqueles que mais precisam de educação e de condições (i)materiais de vida dignas.
É esse caráter de contrainternalização que a Pedagogia Social tem graças ao seu alinhamento com a práxis, assumindo uma práxis pedagógica. A contrainternalização acontece na práxis pedagógica social porque, em parte, essa é uma educação que está fora da escolarização formal, do sistema rígido do Estado; assim, segundo Istvan Mészáros (2005, p. 53), menos comprometidos com a lógica do capital, porque são processos educativos não-formais que "não podem ser manipulados e controlados de imediato pela estrutura educacional formal legalmente salvaguardada e sancionada". Esse tipo de educação é bastante abrangente que vai desde o "surgimento de nossas respostas críticas em relação ao ambiente material mais ou menos carente em nossa primeira infância, do nosso primeiro encontro com a poesia e a arte, passando por nossas diversas experiências de trabalho, sujeito a um escrutínio racional". Este autor explicita que é essa educação não-escolarizada que nos permite envolver com as questões políticas, sociais e morais do nosso cotidiano.
Nessa perspectiva, a Pedagogia Social defende uma escola cidadã para além da conformação e comprometida com os diversos grupos sociais marginalizados e que necessitam de educação aliada a uma concepção de trabalho não alienadora. A escola cidadã seria o espaço de confluências de saberes, conhecimentos e desenvolvimento de atitudes capazes de colocar os diversos sujeitos oprimidos como protagonistas de sua existência. A prática educativa da escola cidadã na Pedagogia Social é a da práxis educativa de união teoria e prática educativa para formar o intelectual tradicional, mais o orgânico na concepção de Antonio Gramsci.
O sentido da palavra tradicional e orgânico para a Pedagogia Social é que tanto ela é um conhecimento científico e cultural posto para desalienação dos indivíduos, como pode ser uma prática que renova a cada necessidade social e educativo de um grupo; nesse caso é uma pedagogia do devir em busca de novos conhecimentos a partir do cotidiano, necessidade e possibilidade do grupo que a toma como referência de emancipação.
A escola cidadã na Pedagogia Social traz em seu bojo uma concepção de cidadania não como conformação, a possível, relativa, reprodutivista, consensual, mas como aquela que não apenas defende como luta para que os indivíduos e grupos sejam iguais; logo, é uma concepção de cidadania dialeticamente ligada a igualdade, que não pode se dá no atual sistema que é desigual, mas que suas bases precisam acontecer nesse sistema através das lutas empreendidas pelos sujeitos oprimidos quando se organizarem.

4 QUAL É A CONCEPÇÃO DE CIDADANIA DA ESCOLA CIDADÃ?


Essa luta requer uma concepção de cidadania diferente daquela posta em voga pelo capitalismo, muito próxima da concepção analisada por Marshall (1967), quando diz que a cidadania significa a participação dos indivíduos na sociedade em que vive na forma de deveres em relação ao Estado e este, por sua vez, lhes garante os direitos inerentes à sua vida. Este autor classifica a cidadania em: de primeira, segunda e terceira geração, respectivamente, os civis (liberdade, igualdade, propriedade, vida, segurança) e políticos (liberdade de associação, de reunião, de participação em partidos políticos, de sindicalização, de votar e ser votado), os sociais (educação, saúde, segurança, trabalho) e econômicos (trabalho, poupança, aplicação), coletivos (direitos da criança, do velho, da mulher, das minorias étnicas, da diversidade sexual, cultural, etc.).
Contudo, em Marx a concepção de cidadania é crítica e mais ampla do que a de Marshall porque está na concepção de emancipação humana que integra a cidadania, que é um tipo de emancipação, chamada de política. Marx tem a política como algo que aliena por ser imposição de poder de uma classe sobre a outra, portanto a emancipação política, ou seja, a cidadania, não significa que seja emancipação social na sua forma ampla; para ser é preciso que a propriedade privada seja suprimida pela revolução proletária. É nesse sentido, de revolucionário, que Marx (2008) acredita na política, ele expressa isso muito bem quando faz uma crítica aos comunistas e socialistas utópicos que buscam o consenso com a burguesia ou acreditam que é possível conquistar direitos para os proletários sem a luta de classes, isso é impossível sem uma ação política efetiva.
No capitalismo, a cidadania como emancipação humana é uma farsa, um engodo porque é um sistema que vive da opressão e que contraditoriamente se constitui defendendo a diferenciação entre as classes: burguesia e proletariado. Inclusive foi isso que lhes permitiu o pleno desenvolvimento de suas forças produtivas. Sobre essa questão, Marx e Engels (2008, p. 13) dizem que a burguesia conseguiu dissolver a dignidade humana "no valor de troca e substituiu as muitas liberdades, conquistadas e decretadas, por uma determinada liberdade, a de comércio. Em uma palavra, no lugar da exploração encoberta por ilusões religiosas e políticas ela colocou uma exploração aberta, desavergonhada, direta e seca".
Nessa perspectiva, Marx e Engels (2008, p. 42) consideram que se deva defender não uma cidadania limitada apenas como participação política dos indivíduos, mas uma cidadania plena com igualdade de condições para todos e que isso se dá ainda no atual sistema ou que pelo menos as novas forças surjam ainda no interior do atual sistema. Neste sentido, argumenta: "fala-se de ideias que revolucionaram uma sociedade; com isso se expressa apenas o fato de que interior da velha sociedade se forma os elementos de uma nova, e que a abolição das velhas idéias acompanha a supressão das velhas condições de vida".
Fica claro que a concepção de cidadania da escola cidadã deve ter por base a ideia de que é revolucionando a sua prática educativa para a conscientização crítica e emancipação humana dos sujeitos dessa escola que fará dessa escola elementos de produção das novas condições de vida. A escola cidadã é aquela que assume a cidadania plena, mas que sabe que esta não ocorrerá na atual sociedade, mas que as suas bases precisam ser lançadas ao assumir uma teoria pedagógica revolucionária e incluir todos os indivíduos historicamente excluídos; porém Paulo Freire (1987, p. 183-184) diz que os excluídos sozinhos não podem assumir esse projeto histórico mas com lideranças revolucionárias, que, caminhando juntos, construirão a práxis transformadora. Este autor reconhece que embora não tivéssemos tido uma experiência revolucionária concreta, isto não é um impedimento para refletir sobre esse tema e galgar esse tipo de participação ativa na sociedade, mesmo porque existem os opressores e os oprimidos ? situação necessária para a revolução.
Para ser escola cidadã é preciso tomar a inclusão como totalidade, contradição e práxis, categorias do materialismo histórico-dialético, que em um processo de participação social são imprescindíveis para formar o intelectual orgânico, aquele que tem uma participação ativa no processo de transformação social. E qual o real significado dessas categorias na prática educativa social? Acreditamos que o significado está na possibilidade de uma prática educativa revolucionária quando toma por caminhada a totalidade dos processos sociais e educativos, por reflexão às contradições existentes na prática social e educativa, por ação a práxis ? estas têm a condição necessária de fazer com que a Pedagogia Social se torne efetivamente uma ciência e uma ação das possibilidades de humanização.
A totalidade significa que consideremos a realidade material humana em seus aspectos relacionais e ao mesmo tempo diversificado e determinado; como defende Lukács (1967, p. 240) quando afirma que a totalidade é considerar que a "cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas".
Marx (1973, p. 20-21) exemplifica como seria a noção de totalidade na prática concreta de analisar a sociedade do ponto de vista do materialismo histórico:

Quando consideramos um determinado país do ponto de vista da economia política, começamos por sua população, pela divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos produtivos, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc. Parece justo começar pelo real e concreto, pela verdadeira suposição; assim, por exemplo, na economia, pela população que é a base e o sujeito da ação social da produção em seu conjunto. Contudo, se examinarmos com maior atenção, isto se revela um procedimento falso. A população é uma abstração caso deixe de lado, por exemplo, as classes que a compõem. Estas classes são, por sua vez, uma palavra vazia se desconheço os elementos sobre os quais repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, os preços etc. Se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do conjunto e, necessitando cada vez mais, chegaríamos analiticamente a conceitos cada vez mais simples. Alcançando este ponto, teríamos que empreender novamente a viagem de retorno, até encontrar de novo a população, mas desta vez não teríamos uma representação caótica de um conjunto, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações.


A contradição é quando uma realidade, fenômeno, coisa apresentam ao mesmo tempo afirmação e negação, incorporando duas possibilidades contrarias, que muitas vezes passam despercebidas pelos sujeitos que vivem essa realidade, porque estão, em parte, alienados dessa realidade contraditória, mas que precisa ser superada, como por exemplo, a contradição capital-trabalho que se refere às duas classes antagônicas a do capitalista e a do trabalhador, o primeiro para enriquecer explora o segundo em sua força de trabalho, não lhe pagando um salário justo pelo trabalho executado, já que o trabalhador sempre trabalha a mais do que o necessário para produzir uma determinada mercadoria e o excedente desse trabalho é apossado pelo patrão na forma de lucro.
O capitalista e o trabalhador formam a primeira contradição essencial para compreender as outras contradições que dela emanam. Marx (1986, IV, p. 188) reconhece que "a contradição, expressa de forma bem genérica, consiste em que o modo de produção capitalista implica uma tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas, abstraindo o valor e a mais-valia nele incluídos, também abstraindo as relações sociais". Nessa perspectiva, Tse-Tung (1937, p. 331) afirma que no capitalismo as "duas forças contraditórias, o proletariado e a burguesia, formam a contradição principal" e que desta derivam as "outras contradições, como aquelas entre a classe feudal remanescente e a burguesia, a classe pequeno-burguesa e a burguesia, os proletariados e os pequeno-burgueses [...], todas são determinadas ou influenciadas por essa contradição principal".
A práxis pedagógica, segundo Pereira (2009), como categoria central da Pedagogia Geral e da Pedagogia Social, significa a possibilidade de transformação dos indivíduos, de sua autonomia, do seu fazer revolucionário através de uma ação pedagógica emancipadora. Nesse sentido, o conceito de práxis que a Pedagogia adota tem o mesmo sentido sugerido por Vázquez (2007, p.) quando diz se tratar de uma atividade com o objetivo de transformar uma determinada realidade humana, realidade aqui entendida na sua amplitude seja, física, psíquica, social. Essa atividade é uma ação concreta executada por sujeitos concretos que lutam coletivamente e constantemente para emancipar pessoas e grupos e o seu próprio grupo de uma determinada opressão histórica ou momentânea. Também essa atividade está relacionada à produção humana de sua cultura, quando fabricamos artefatos para a própria sobrevivência do homem e da sua humanização.
Entende-se ,então, que para uma ação ser considerada práxis é necessária uma intencionalidade, com fins claros de emancipação; caso contrario, não se configura como bem alerta Vázquez (2007, p. 220), ao afirmar que "vários atos desarticulados ou justapostos casualmente não permitem falar de atividade é preciso que os atos singulares se articulem ou estruturem como elementos de um todo, ou de um processo total, que desemboca na modificação de uma matéria-prima". Logo, uma ação no âmbito da Pedagogia que não tenha uma intencionalidade de transformação do real educativo não é uma práxis.
Pereira (2010b) afirma também que as ações educativas esporádicas que não visam fazer a contrainternalização daqueles conhecimentos e saberes alienadores que a escola ensina não é práxis, que reproduz toda a lógica educativa capitalista em uma pedagogia ou educação surgida no interior de um movimento social não é práxis, que busca resolver um fenômeno social com um fenômeno educativo sem depois refletir criticamente esses fenômenos em busca de emancipação dos sujeitos, como ocorre com muitas ações educativas voltadas para os meninos/as de rua, moradores de rua, mulheres e homens profissionais do sexo, idosos asilados ou não, mulheres vitimadas pela violência doméstica, moradores de comunidades pobres, não é práxis.
Para ser práxis, a ação tem que ser política, de contra-hegemonias, como afirma Gramsci (1989, p. 21), e que começa pela "consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) e a primeira fase de ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam". Nesse caso, a Pedagogia Social deve estar atenta ao conceito de práxis que adota para que de fato o seja e não uma mera prática que não levará indivíduos e sujeitos a um novo patamar social que não o da opressão vivida historicamente. A relação teoria e prática pedagógica social são relações dialéticas que devem ser defendidas pela Pedagogia Social como única possibilidade de romper com o senso comum na educação e adotar uma concepção dialética.

5 CONCLUSÃO

Sabemos que toda prática pedagógica precisa ter uma coerência epistemológica, pois é isso que dá a sua identidade no sentido a quem ela está a serviço; sem essa identidade fatalmente é uma prática que cai no descrédito, é uma prática que tem um discurso muito bonito e até crítico, mas uma ação pouco eficiente e não transformadora. Moyses Pistrak (2000, p. 22) defende uma teoria marxista para a Pedagogia Social e defende que os educadores tenham essa consciência, pois a maioria "não tem uma consciência clara do fato de que a pedagogia marxista é e deve ser antes de tudo uma teoria de pedagogia social, ligada ao desenvolvimento dos fenômenos sociais [...]".
Pistrak (2000, p. 24-25) afirma ainda que "sem teoria pedagógica revolucionária, não poderá haver prática pedagógica revolucionária". Ele é mais enfático ainda quando diz que "sem uma teoria de pedagogia social, nossa prática levará a uma acrobacia sem finalidade social e utilizada para resolver os problemas pedagógicos na base das inspirações do momento [...]". Isto significa dizer que para a escola ser cidadã e as práticas sociais se constituírem como de construção de cidadania plena no sentido de formação humana, é preciso que ela adote: a) adoção de uma teoria e prática pedagógica crítica revolucionaria; sem essa precondição não se tem uma educação e uma escola cidadã na condição de emancipação humana; b) adoção de uma teoria psicológica de internalização de conhecimento revolucionária associada a teoria pedagógica revolucionária; c) aceitação total de todo e qualquer indivíduo e grupos nessa escola e nas práticas educativas fora da escola ? não importando as suas condições (i)matérias.
Esses elementos são desejos que podem ser realizados pela escola que temos, a escola concreta, pois em parte depende da conscientização crítica que os educadores tenham do processo educativo e do desejo de querer fazer as reais mudanças para implantar uma escola diferente. Isso parece ser utopia, mas cremos na possibilidade de emancipação da escola se adotar uma teoria e uma prática de pedagogia social revolucionária.


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