O que é sujeito moderno

Thiago B. Soares

A noção de sujeito moderno indica "aquele que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos". Até o último quarto do século XIX, a auto-imagem que tínhamos era a de que nós ? os bípedes sem penas ? poderíamos nos tornar sujeitos, por algum meio ou, melhor dizendo, por dois meios: ou mudando o indivíduo pela educação ou alterando a sociedade por reformas ou revoluções.
A base para sermos sujeitos vinha da idéia de que éramos, por assim dizer, "animados" (de anima) e/ou "inteligentes". Víamo-nos como seres possuidores de almas ou mentes, que eram instâncias unitárias. As tais unidades eram mais ou menos internamente homogêneas e capazes de uma transparência para si mesmas. Nosso confronto conosco mesmo, não raro, era explicado pela luta entre a "paixão" e a "razão". A primeira, mais atribuída ao corpo ou ligações com este; a segunda, articulada ao pensamento, ao imaterial e, se por acaso alguém viesse a dizer que também esta parte tinha algum vínculo com o corpo, então o corpo seria representado pelo cérebro, a "parte alta" ? superior ? do corpo. Nossa dificuldade de falar de nossos "conflitos internos" poderia ser facilmente resolvida pelos literatos, pelos escritores e poetas. Forças antagônicas com nomes de deuses e envolvidas em mitologias de todo o tipo poderiam descrever bem o que ocorria quando agíamos de maneira estranha ou de modo problemático.
Todavia, o século XIX foi deixando de lado a literatura e a filosofia ao falar de almas e mentes. Começamos a inventar a psicologia ? uma nova fábrica de auto-imagens. A própria filosofia foi preparando uma nova imagem dos indivíduos humanos, para dar de bandeja tal produto aos novos teóricos da fotografia dos bípedes sem penas ? os psicanalistas. Os filósofos alemães Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) começaram a colocar alguns detalhes a mais nos modelos de almas ou mentes, tornando-os então bem mais complexos do que o foi conseguido com racionalistas e empiristas dos séculos XVII e XVIII. Sigmund Freud (1856-1939) coroou esse caminho. Com ele, definitivamente deixamos de lado a imagem de "eu" segundo o modelo do pensamento moderno.
A psicanálise, com Freud à frente, disse que o "eu" ? ou mesmo o "sujeito", conforme o caso ? "não era senhor em sua própria casa". O "ego" não teria poder de decisão autônoma, mesmo em seu lar, ou seja, no campo mental. Conviveriam com o "ego" outras instâncias, cujas forças terminariam por dar a última palavra em boa parte das decisões e atos humanos. Não se tratava mais de nos vermos, quando de nossos estados vigentes de conflitos conosco mesmos, sob a luta "razão versus paixão". Nem era mais o caso de falarmos somente em conflitos. O "eu" havia sido recriado de modo a ter compartimentos, perdendo sua homogeneidade. O indivíduo autônomo ou o sujeito deixaram de ter uma unidade não problemática. A auto-transparência do "eu" foi revogada.
Nós, os homens e mulheres do século XX, não paramos muito para pensar se Freud estava ou não correto. Ou melhor, até fizemos isso, mas tal avaliação não determinou nossas escolhas teóricas. Quando abrimos os olhos, já estávamos todos falando como Freud nos ensinou. Incorporamos ao nosso vocabulário uma série de palavras da psicanálise. Colocamos em nossa linguagem, mesmo a mais comum, as teorias que nos levaram a uma imagem bem mais complexa de nós mesmos do que aquela produzida na modernidade. Transformamo-nos em bípedes sem penas que continuaram a se achar capazes de "ter consciência de pensamento e responsabilidade dos atos", mas que também estariam ligados a "forças internas" de várias ordens. E essas forças poderiam ficar sem controle, se é que tinham algum, e elas então comandariam os comportamentos. As tais forças poderiam ser mapeadas cientificamente.
Assim, hoje, qualquer pessoa mais ou menos escolarizada fala em "desejos inconscientes", "decisões tomadas pelo inconsciente" e, não raro, remete isso a alguma coisa que se estabeleceu a partir de Freud. Ao dizermos isso, não nos referimos a nós mesmos como pessoas que, por falarem e agirem "sem consciência" e "sem responsabilidade", seriam seres doentes mentalmente, estariam "fora da razão". Usamos tal imagem de nós mesmos como o que espelha os que são sadios mentalmente. Até mesmo os que jamais acreditaram na terapia psicanalítica usam tal vocabulário, digamos, freudiano. A vitória popular de Freud na montagem de nossa auto-imagem atual é incontestável.
É claro que alguns ainda apimentaram mais tudo isso com um pouco de Marx ? começaram a dizer que não só "forças internas" poderiam ser responsáveis pela ação do sujeito, mas também "forças externas" assimiladas ao aparato "interno". Tais forças viriam da "ideologia", algo como que uma "falsa consciência" produzida por mecanismos sociais. Genericamente, e não raro de forma pouco rigorosa, essas pessoas abocanharam alguns preceitos do marxismo popular, e então adotaram a idéia de que não só o id e o superego se oporiam ao ego, mas que haveria aí um quarto componente mental, às vezes imiscuído nessas instâncias, na "caixa mental", às vezes separado delas, que era a tal "falsa consciência". Era algo como um tipo de véu, que tornava o indivíduo incapaz de agir da melhor forma. Resultado: o indivíduo humano teria ainda mais complicações para agir como sujeito, isto é, como alguém "consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos", pois uma vez consciente, mas com a consciência deturpada, poderia muito bem decidir segundo não o que seriam seus próprios interesses racionais ? os de sua classe ? mas segundo interesses contrários ao seus, ou melhor, aos de sua classe. Esse marxismo lambuzado de freudismo deu regras para muitas conversas e refez com pinceladas fortes a figura humana.
Muitos de nós, principalmente os escolarizados, passamos a nos ver segundo este modelo em meados do século XX. Mas isso não ocorreu sem oposição. Certos movimentos oposicionistas se fizeram em um nível altamente teórico. Em geral, geraram apenas dissidências na psicanálise. Todavia, em um determinado momento do século XX, houve uma crítica que, se tivesse vencido, teria nos feito procurar outra auto-imagem. E talvez nossa história atual fosse outra. Paradoxalmente, o filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980) foi o autor de tal crítica (digo paradoxalmente por uma razão simples: em determinado momento de sua vida, Sartre abandonou o existencialismo como doutrina independente e voltou a reafirmar o marxismo).
Sartre fez uma reclamação célebre contra a psicanálise. Ele não se conformava com uma teoria sobre nossa psiche que poderia desresponsabilizar as pessoas de seus atos. O existencialismo, o nome dado à corrente filosófica de Sartre, era justamente aquela "filosofia da ação" que dizia que todos eram livres para escolher seu destino, e que o problema era o de assumir ou não as responsabilidades das escolhas. Aliás, ficou famoso o fato de Sartre alertar todos que os nazistas não poderiam se desculpar dizendo que fizeram o que fizeram porque seguiram ordens. Ninguém poderia jogar a culpa de seus atos em outros, e então, muito menos, no seu inconsciente. A psicanálise, na conta de Sartre, estaria dando margem para tal, uma vez que Freud havia dito do "eu" ou do "sujeito" que ele "não era senhor em sua própria casa". O "ego" não teria poder de decisão autônoma, mesmo em sua casa, ou seja, no campo mental. Conviveriam com o "ego" outras instâncias, cujas forças terminariam por dar a última palavra em boa parte das decisões e atos. Sartre acreditava que tal teoria iria favorecer apenas os de má-fé e os covardes.
Sartre foi francamente derrotado na sua crítica contra Freud. Mas não porque a psicanálise encontrou boas respostas para ele, e sim porque a psicanálise ganhou o público e a questão de Sartre caiu, em parte, no esquecimento.
Apareceram respostas, no entanto, em defesa de Freud. Ou melhor, apareceram teóricos tentando adaptar o existencialismo à psicanálise. Isso não vem ao caso. O interessante é notar como é que a teoria vencedora teria se saído bem de qualquer maneira, se quisesse disputar no terreno puramente intelectual.

FORMAÇÃO IMAGINÁRIA

Na constituição dos discursos, é imprescindível compreender, ainda, a formação imaginária. Essa formação imaginária apresenta-se como base constituinte das condições de produção do discurso, em função da organização mental que estimula o dito, ao mesmo tempo em que permite a construção do que não pode ou não deve ser dito, ou seja, o não-dito. As relações de sentido se constituem nas referências e nas inter-relações que os discursos estabelecem entre si. Explicitando melhor esse fenômeno, torna-se necessário lembrar que um discurso não tem origem em si mesmo, mas é uma resposta a algum discurso anterior, remetendo o curso das enunciações para formações discursivas posteriores. Para Orlandi1, um discurso aponta para outros que o sustenta, sendo parte de um processo discursivo mais amplo e sistematicamente contínuo.
Desse modo, não há começo absoluto e nem ponto final, tendo todo dizer relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis. Pêcheux (1997) esclarece esse dispositivo ao salientar que um discurso é construído em decorrência das relações estabelecidas pelo seu autor às coisas que já foram ditas, à posição em que ocupa e à posição da pessoa a quem o discurso é dirigido e assim sucessivamente. O mecanismo de antecipação implica que o enunciador experimente, mesmo que parcialmente, o lugar de ouvinte, a partir do seu próprio lugar de enunciador. Pêcheux (1997) observa que essa habilidade é a capacidade de imaginar o modo como o próprio discurso produz efeito no outro, precedendo o ouvinte e prevendo onde este o espera. A argumentação baseia-se, em grande parte, nesse mecanismo visando seus efeitos no interlocutor. Quando se trabalha com a noção de relações de força, considera-se que o lugar a partir do qual o sujeito fala é constitutivo do que ele diz. Essas relações ganham especial importância em decorrência da hierarquização presente na sociedade, o que faz com que elas se enraízem no poder social desses diferentes lugares, determinando o que pode ser dito, como pode ser dito e a quem pode ser dito determinada coisa. Todos esses três mecanismos de funcionamento do discurso, como já comentado, possuem suas bases nas formações imaginárias (Pêcheux, 1997). Nesse funcionamento discursivo, não são os sujeitos físicos ou os seus lugares empíricos (basicamente sociológicos) que constroem o discurso, mas as imagens que resultam de projeções. São essas projeções, segundo esses mesmos autores, que permitem passar das situações empíricas ? os lugares realmente ocupados - para as posições dos sujeitos nos discursos.
Assim, ao se considerar esses três elementos, somando-se às condições de produção do discurso e ao interdiscurso, conclui-se que são as imagens que constituem as diferentes posições. Vale exemplificar que não é só a posição de pai, de mãe, de professor ou de enfermeiro que produz uma discursividade típica, mas essa posição em face da formação imaginária acerca do outro, da instituição e da sociedade. Aqui se observa o principal papel da análise de discurso, buscar atravessar o imaginário que condiciona o sujeito em sua discursividade, explicitar o modo como os sentidos estão sendo produzidos para, finalmente, compreender o que está sendo dito, pois "os sentidos não estão nas palavras nelas mesmas. Estão aquém e além delas" (Orlandi, 2001, p.42)
Dessa maneira, quando se assume uma discursividade a partir de uma formação imaginária, diz-se algo para que outra questão não seja explicitada. Deve-se destacar que sempre que se diz X, deixa-se de dizer Y, para que, então, o X faça sentido. Essa é a relação do dito com o não-dito e do falado com o silenciado em um discurso.
Dessa modo, a formação imaginária produz seus efeitos na discursividade dos sujeitos, ajudando a delimitar a formação discursiva e sendo o lugar em que a representação de si, do outro e a representação de como o outro representa esse sujeitos, determinam o que dizer e o que não dizer. Nesse sentido, quando se afirma que se gosta de algo, obrigatoriamente está sendo dito (mesmo ao não-dizer) que não se gosta de outras coisas que a própria discursividade do sujeito exclui, especialmente quando se conjugam imagens e projeções que reforçam o dito, como o aluno que ouve o professor, os fiéis ao líder religioso e o filho aos pais.

A Desconstrução do sujeito moderno

Inaugurador de uma nova era metafísica, o filósofo na verdade avançou mais, ajudando a converter essa idéia em princípio de conduta moral que, hoje, deseja-se reduzir à injunção tecnológica, ao postular, há mais de cem anos, que, "embora seja um começo necessário, não basta ser apenas ser um único homem: isso seria exortar-vos a restringir-vos. Devemos passar de uma individualidade a outras e vivenciar as diversas existência de uma multidão de seres !" (VP 1935, p. 389).
A convergência dessa idéia com algumas teses dos principais teóricos da cibercultura é notável, dado que, segundo as mesmas, os recentíssimos progressos tecnológicos verificados com o aparecimento das máquinas geradoras de realidade virtual (simulação) e as redes de interação telemáticas ensejam a criação de uma cultura responsável pela erosão da subjetividade moderna.
"[Neste âmbito] os antigos dualismos e as seguras fronteiras que caracterizavam [ideologicamente] a nossa tradição cultural são postos em cheque. Separações radicais como eu-outro, corpo-mente, criador-criatura, verdade-ilusão, real-irreal, entre outras - não são mais tão nítidas e operacionais no mundo da relação homem-máquina."
Para os porta-vozes da tese, as tecnologias de comunicação estariam, realmente e em especial, promovendo uma multiplicação de contatos e conhecimentos cujo resultado principal, socialmente falando, é a paulatina mudança nas concepções vigentes sobre como se estrutura e funciona nosso eu. O desenvolvimento de mecanismos de interação virtual estaria transcendendo a oposição entre emissor e receptor, fazendo-nos usuários interagentes de redes abertas e sem centro, nas quais "os sujeitos se tornam cada vez mais instáveis, múltiplos e difusos".
Através da máquina, começamos a viver situações em que não apenas o referido eu tornou-se múltiplo, fluido e aberto mas, além disso, está havendo uma ruptura do princípio de identidade. Segundo um dos participantes da lista de discussão alt.cyberpunk, citado por Tiziana Terranova,
"Penso que a fronteira do eu está se tornando maior e em vias de se tornar indefínivel [via o ciberespaço]. Agora ainda estamos em um nível baixo, porque só dispomos do texto, sem a realidade virtual e a total telepresença. Mas já se pode ver nossos pequenos nacos de carne sugerindo a nossos ouvidos que devemos estar prontos para esse tipo de coisa. As pessoas que já estiverem engajadas nisso terão muito menos problemas quando chegarmos à realidade virtual totalmente imergente, quando essa for usada para mudar e expandir os nossos eus. [Então, ao invés] do vírus, haverá uma dissolução das barreias físicas, não apenas das nações, mas também do eu de cada corpo individual".
A sociedade cibernetizada pretende permitir a refração da personalidade em múltiplos eus, radicaliza as possibilidades de emprego da ficção no comércio cotidiano. As pessoas estão passando a ter chances de, virtualmente, trocarem de sexo, modificarem a idade e assumirem novos papéis e identidades.
No tempo real do ciberespaço, oferecem-se ao indivíduo possibilidades além daquelas já avançadas pelos velhos meios de comunicação.
A construção e reconstrução do eu passa a depender não só do crescente número de pessoas com quem contactamos mas de como elas nos respondem. A participação em uma esfera pública virtual estimula a criação de vários eus pois, conforme testemunha uma aficionada em cibersexo, escolher ser plural é uma tendência que a nova tecnologia estimula. Neste espaço, observa, há muita liberdade de ser e fazer o que se desejar, você pode ser o que quiser, na hora e do jeito que preferir:
"Fazendo o papel de homem, tive sexo com uma mulher. Fazendo-me de homossexual masculino, fiz sexo com um homem. Fazendo-me de homem, fiz sexo com outro, que se passava por mulher. Aprendi tudo sobre sado-masoquismo, seja como sádico(a), seja como masoquista. Em resumo fiz sexo de todos os modos que eu jamais poderia pensar."
Os princípios de simulação e interação que se impuseram às tecnologias do espírito no último decênio estariam radicalizando as tendências dissolutórias da mídia audiovisual, possibilitando-nos não apenas ver mas, avançando, participar ativamente, ainda que de modo virtual, da criação e recriação do conjunto da experiência. A sociabilidade virtual engendrada pela televisão convencional permitia-nos assistir aos acontecimentos. As máquinas criadoras de realidades virtuais, sejam telejogos, espaços on-line ou câmaras de simulação, levam-nos mais longe, possibilitando que venhamos a nos tornar seus protagonistas.
As concepções acerca do eu criadas pelos modernos, racionalistas e liberais, assim como as relações sociais que as apoiavam, tendem a caducar, na medida em que as tecnologias emergentes permitem experimentar uma variedade de estilos de vida e imagens que nos privam de um centro fixo e estável. Os propósitos sociais que eram atendidos pela crença em tais concepções estão se tornando difíceis de estabelecer num contexto em que
"A credibilidade no mundo interior é colocada sob suspeita, a existência de um centro subjetivo no ser é tornada problemática e as instituições que se justificavam por essas premissas são sujeitas a uma análise crítica."
Em síntese, o resultado conjunto desse processo seria, portanto, nosso ingresso em um mundo no qual nós já não vivemos um sentimento seguro de possuir um eu estável e no qual há cada vez mais dúvida sobre a suposta existência de uma identidade bem delimitada.
Nietzsche revela-se uma referência sumamente importante para esclarecer e avaliar esse entendimento porque, várias décadas antes do surgimento da informática, refletiu sobre o significado dessa experiência. As cogitações sobre os possíveis modos de ser do homem em curso hoje em dia foram discutidas por ele bem antes de serem inventados os computadores.
De certo modo, o pensador deu origem à situação filosófica e intelectual que acabou por tornar problemática não a divisão mas a unidade da consciência, em que pese os estados alterados de consciência não terem virado moeda corrente em nosso cotidiano, como pretendem certos propugnadores da tese.
Conforme o pensador observou genialmente, a civilização moderna é, como época de transição, período em que as coisas deixam de ser impostas e em que, cada vez mais, preponderam os comediantes, os encenadores de papéis que, embora conscientes de não serem o que encenam, não sabem o que fazer consigo mesmos, fora do roteiro prescrito pela sociedade e inscrito em suas mascaradas. Os comediantes de toda a espécie são os verdadeiros mestres do rebanho, na medida em que, conforme avança a era democrática, se afrouxam os laços do indivíduo com sua identidade. Referindo-se à situação existente no final do século XIX, o filósofo observa que:
"A previdência vital impõe ainda hoje a quase todos os europeus um papel determinado, aquilo que chama sua carreira; alguns mantêm a liberdade, uma liberdade aparente, de escolher seu papel, mas para a maioria são os outros que o escolheram. O resultado é muito peculiar: quase todos os europeus se confundem com seu papel até uma idade avançada."
As perspectivas vindouras apontam, porém, em outra direção. A história revela que em certas épocas pode acontecer o contrário. "O indivíduo pode , então, persuadir-se de que é capaz de fazer quase tudo, que está à altura de quase todas as incumbências, onde cada um ensaia consigo mesmo, improvisa, ensaia novamente, ensaia com prazer, onde toda natureza cessa e se torna arte".
Salientando que essa tendência é própria das culturas democráticas e plebéias, o filósofo conclui que, embora a tradição ainda se faça sentir, nós, "homens modernos, nós nos encontramos nesse caminho e cada vez que um homem começa a descobrir em que medida desempenha um papel, quanto pode ser comediante, torna-se comediante", pois, entrando em uma espécie de jogo, não mais crê que possa "contar, prometer, fazer planos para o futuro".
A situação tem um sentido positivo porque a soberania individual e a ordem hierárquica procuradas pelo pensador pressupõem o surgimento de um homem capaz, primeiro, de se desvincular dos papéis prescritos por sua sociedade mas, em seguida e sobretudo, de criar e viver novos ideais políticos, estéticos e filosóficos. O potencial aí contido não era, porém, seguro aos olhos do pensador. A cultura moderna é, sem dúvida, cada vez menos séria mas isso não assegura que o tipo artista predominará sobre o comediante, chegará à supremacia no futuro, porque esse não se reduz a um ator, é antes de mais nada um escultor de si mesmo, o criador de novos valores.
"A falsidade com a boa consciência, a alegria de dissimular, irrompendo como força, repelindo o que se chama caráter, submergindo e apagando por vezes o desejo íntimo de interpretar um papel, envergar uma máscara, uma aparência; um excesso de faculdades de assimilação que não mais encontram satisfação ao serviço de um utilidade mais próxima e mais imediata" - elementos como esses poderiam ser pressuposto da ascensão do artista mas, talvez, "pertençam somente ao comediante" (GC, p. 361).
A sociedade contemporânea é, por isso mesmo, ambivalente: "As mesmas novas condições em que se produzirá, em termos gerais, um nivelamento e mediocrização do homem - um homem animal de rebanho, útil, laborioso, variadamente versátil e apto -, são sumamente adequadas a originar homens de exceção, da mais perigosa e atraente qualidade" (ABM, p. 150). De certo modo, possui um simulacro de cultura, porque falta-lhe o homem sintético: o que temos é um tipo de caos; mas por outro lado, esse é condição para a criação daquele: [Afinal] "Tu [só] o serás depois de haver passado por um grande número de individualidades, de tal modo que, em função dela mesma, tua última individualidade tenha necessidade de todas as outras", escreveu Nietzsche (VP, 1935, p. 389).
A explicação para que tenha de ser assim, e não de outra forma, significou uma transmutação dos valores ocidentais: precisa ser buscada no estatuto do sujeito, que, reavaliado pelo filósofo, deixa de ser visto como o eu abstrato, estático e unitário. O sujeito é uma entidade fictícia pois, vendo bem, a vontade com que está associado é um resultado de um combate ou luta através do qual se estabelecem relações de comando e obediência entre as várias partes do nosso corpo. A premissa é o corpo e esse deve ser entendido como "uma estrutura social de muitas almas" (ABM, p. 25).
"A verdadeira idéia da classe de unidade que é o sujeito é alcançada quando o concebemos como regente superior de uma comunidade de seres (não como "almas" ou "forças vitais") tanto quanto a dependência deste regente a seus regidos e às condições de hierarquia e trabalho como possibilidade do indivíduo".
A referência à noção de comunidade feita pelo pensador procura realçar o fato de que o sujeito regente não é sempre o mesmo, depende dos regidos e, obliquamente, é limitado por todos os outros. O indivíduo deve ser visto como um "sistema cujo centro se desloca incessantemente" (VP. 1906, p. 281). A força que, no momento, manda extrai seu poder de um processo da qual não é o ponto de partida mas, sim, o resultado mais ou menos transitório e que, como tal, processo, envolve o combate das várias almas que coabitam nosso organismo.
Entender o sujeito como multiplicidade significa pois explodi-lo e dispersá-lo em um sem número de fragmentos, cada um dos quais é possuidor de uma vontade de poder sobre o restante, é habitado por um impulso dominador, que procura colocá-lo no centro ou eixo de gravidade de uma massa movente de forças, que enseja, quando pensada, a noção de eu e a idéia de individualidade.
Primeiro, os sentimentos, paixões, impulsos, forças e afetos que disputam a primazia sobre nosso corpo, formando-o, constituem um conglomerado mais ou menos estável. Em seguida, convertem-se, sob pressão externa, em certas disposições mais ou menos permanentes, que ensejam o surgimento da consciência, necessariamente coletiva, e, assim, das personagens com que representamos ou vivemos nossa existência intramundana (GC, p. 252-255)


Hegel

(Provável justificativa)

Cada indivíduo também é filho de um povo em uma fase de seu desenvolvimento. A pessoa não pode passar por cima do espírito de seu povo, assim como não pode passar por cima da terra. A terra é o centro de gravidade, só se pode imaginar que um corpo que deixe este centro vá explodir no ar. Assim acontece com o individuo. Somente através de seu esforço ele poderá estar em harmonia com sua substância, deve trazer a vontade exigida por seu povo para a sua própria consciência, para articulação. O indivíduo não cria o seu conteúdo, ele é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo (Hegel p. 77).

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Sobre a sujeição do indivíduo (sujeito)

Mesmo em um estado primitivo existe a sujeição de uma vontade sob a outra, mas isto não significa que o indivíduo não tenha uma vontade própria, e sim, que a sua vontade particular não vale (Hegel p. 89).

Vontade e Verdade

[...] pois a Verdade é a união da vontade universal com a vontade particular (Hegel p.90)

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Poder religioso e estatal

A convicção correta de que o Estado se baseia na religião pode proporcionar a esta uma situação que pressupunha a existência do Estado (Hegel p. 101).





Luiz Costa Lima

Abstrair o sujeito, ou seja, querer-se representar o mundo sem sujeito, dizia Nietzsche, é uma contradição (apud LIMA, 2000, p. 135).
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O uso da mímesis
Pela mímeis, temos uma forma de acesso ao impensado não só de nossa própria época mas de épocas passadas. Mas não conseguimos esse acesso senão a partir do estoque de semelhanças estabelecidas a partir do presente (Costa Lima, p. 65).

Sujeito por Costa Lima

Em suma, representação e sujeito se tornam objetos de consumo de massa, enquanto conceitos (Costa Lima, p.75).

Heidegger e a representação

Heidegger (1950 apud LIMA, 2000, p. 78) compreendida essencialmente, imagem de mundo assim não significa uma imagem do mundo mas sim o mundo captado como imagem. O existente, em seu todo, é então fixado pelo homem que representa e produz.

Heidegger (1950 apud LIMA, 2000, p.78) diz que o mundo se torne imagem é o mesmo processo pelo qual o homem, dentro do existente, se converte em sujeito.

Cogito Cartesiano (primeira forma de sujeito oriundo da razão) Concluinte

Descartes (1637 apud LIMA, 2000, p. 88) afirma que
[...] considerando que todos os mesmos pensamentos que temos estando despertos podem também suceder quando dormimos, resolvi fingir que todas as coisas que jamais haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas logo depois levei em conta que, enquanto queria assim pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando essa verdade: Penso, logo existo, era tão firme e tão segura que as mais extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de abalá-la, julguei que podia recebê-la sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava.
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