O que é Liberdade de consciência.

 

“Portanto, muito embora aquele que não está sujeito à lei civil peque em tudo o que fizer contra a sua consciência, porque não possui nenhuma outra regra que deva seguir senão sua consciência, contudo o mesmo não acontece com aquele que vive em um Estado, porque a lei é a consciência pública, pela qual já aceitou ser conduzido”.

(Thomas Hobbes de Malmesbury; O Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil pag. 245). 

 

  A ritualidade, presente nas relações religiosas, tem por objetivo ser semelhante à burocracia presente nas relações Estado/cidadão.

  Todo o ambiente de forçada solenidade de uma repartição pública, todo o tom de ameaça velada, presente em uma intimação:

 “Se não comparecerdes em até 5 (cinco) dias úteis, contados à partir do envio desta, perderás o benefício...”  ou mesmo aquela frase afixada na parede:

Agredir um funcionário público em horário de expediente é crime previsto no código civil artigo *******”, só serve pra te fazer ter certeza de que, salvo raras exceções, você não terá o seu problema resolvido com a agilidade necessária.   E lembrar-lhe também do fato de estarmos em pleno o século XXI, e o nosso aparato de desinteligência Estatal ainda caminhar como na idade da pedra.

  Vá até um cartório e você presenciará a burocracia ali diante de você. É assim:

 

Chega pega senha, sentar-se.

Aguarda ser chamado em silêncio.

Levanta vai ao guichê humildemente rogar por um serviço que lhe é direito.

Justifica o pedido apresentando todas as certidões desde que Cabral aportou na Ilha de Vera Cruz. Sentar-se novamente.

Aguardar.

Aguardar.

Aguardar ainda mais.

Pagar tarifa, que não é barata, mesmo pagando todos os impostos que você já habitualmente paga, pois o cartório tem um dono (alguém que ficou rico com a burocracia do Estado).

Receber a informação que precisava em forma de documento carimbado com a assinatura de alguém reconhecido pela burocracia do Estado.

Sair.

 

Poderíamos ter resolvido tudo isso por e-mail, sim ou não?

   A modernização do Estado implica na perda do espaço hoje ocupado pelos aproveitadores, que uma vez estando ali, fazem de tudo para que não lhes seja tirado à mamata de se aproveitar da situação, igual tarado em trem lotado.

 O Estado que deveria nos servir se serve de nós, e nos leva, segundo Hobbes a uma perda significativa de nossa condição de consciência. 

  Mas o que Hobbes queria dizer com consciência na Inglaterra do século XVII? Deixemos que ele mesmo responda:

 “... pois a consciência do homem e seu juízo são a mesma coisa, e tal como o juízo a consciência pode ser errônea”. O Leviatã.

   Para Hobbes a consciência é igual ao juízo, ou seja, o acumulado de sensações e experiências que o individuo percebe cotidianamente por meio de seus sentidos. E não aquilo que constrói teoricamente em suas indagações filosóficas. Só podemos compreender como verdade aquilo que nos é apresentado em sua totalidade. Por exemplo: o que eu sei sobre o Sol pode não ser exatamente aquilo que o Sol sabe sobre si mesmo. Portanto tudo que sei sobre isto está submetido à contradição, caso amanhã o próprio Sol venha a público me desdizer. Todavia, tudo aquilo que o homem cria em sua mente e todas as conjecturas construídas a partir destas primeiras construções, são verdadeiras. Pois se o homem as construiu, fez de forma completa e racional, portanto, as conhece como são, por isso pode afirmar sua veracidade.

  Desta forma em Hobbes a verdade não é apenas mera adequação com aquilo que aparentemente me é disponível presumir, mas somente a existência em seu caráter ôntico, ou seja, relativo ao ser das coisas, que a mim ainda não está claro, pois, em muitos casos é inobservável e, portanto, não me é classificável naquele momento. Assim tanto consciência quanto juízo possui caráter temerário, pois são limitados ao que é observável e compreensível no momento. Sendo necessária, para minha maior segurança, a presença de outra opinião humana que me assegure à veracidade da proposição.

   Porém, de quantas opiniões humanas se compõe a verdade? Por isso segundo Hobbes surge à necessidade de um mediador, ou seja, o Estado. Este ente coletivo surge como apaziguador dos atritos entre as diversas opiniões, sendo aquele que em ultima instancia será o porta voz da verdade sobre os fatos. Por isso o Estado surge como um ente de poder eclesiástico e civil, pois, além de afirmar a você o que é justo, por meio das leis, agrega a elas também o sentido de verdade automaticamente. Sendo a verdade apenas a adequação a tudo quanto à lei afirma (ainda bem que ninguém lê estas coisas), construindo um sentido de verdade que provoca a desconstrução da consciência indagadora do homem e, portanto, filosófica do homem.

Perceber que a consciência pode se enganar não implica na necessidade de destruí-la. A imposição de um Estado portador do justo e do real desumaniza as relações a tal ponto de contratualizarmos até as relações afetivas (casamento contratual, registro civil para reconhecimento de paternidade, certidão de nascimento... veja só certidão de nascimento), essa é a declaração do fim da liberdade de consciência. 

  Hobbes, em sua época, fazia um paralelo entre a hegemonia da Igreja influenciando na constituição do Estado. Hoje nós podemos inverter, observando que só será possível a constituição de uma relação fraterna atual, se a libertamos dos vícios presentes na burocracia das relações espirituais. Lembra lá no começo a exemplificação do cartório? É uma analogia com a Igreja enquanto estatutária formal e burocrática.    O reconhecimento da veracidade de informações que desumaniza as relações presente no cartório que por sua vez representa o Estado, ocorre na igreja que por sua vez representa Deus. Ou seja, nos relacionamos com o Estado pela burocracia e com Deus pela Igreja. E em ambos os casos sofremos nas mãos de aproveitadores.

A busca da conscientização do homem esbarra na insistência embrutecida de um senso de autoridade e imposição. Não basta informar que tal habito é prejudicial a saúde é preciso baixar um decreto proibindo tal e tal habito. Este é um exemplo da atual incapacidade da maioria das pessoas de autogestão, construída e amplamente difundida, na relação de dependência da qual o Estado extrai a garantia de sua existência. Enquanto não formos capazes de assentirmos com a variabilidade de nossa consciência no que tange a muitos conceitos relacionados a opiniões preconcebidas, teremos dificuldade em pressupor a veracidade contida na expressão de outro, e assim justificamos um Estado opressor. Sendo que o Estado opressor garante sua existência baseado na nossa incapacidade de conter o ímpeto belicista diante da afirmativa contraria a nossa concepção. Por sua vez  e seguindo o mesmo mecanismo, a igreja só existe para normalizar as relações com o divino dada a nossa incapacidade de conceber uma relação diferente da que nós mesmos inferimos como real e verdadeira. A religião constrói a intolerância, pois, é a intolerância que destrói a consciência que por sua vez garante a necessidade da religião para normalizar as relações com o divino.

 Porém o evangelho não destitui a consciência do centro de decisões, pois ele afirma que somente em fraternidade com o próximo, ou seja, supondo e tolerando, é que estamos em contato com o divino.

 Liberdade de consciência é lembrar que o divino pode se manifestar através do outro e não somente de mim mesmo.

Pense nisso!