O PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA NA CRIANÇA: UM ESTUDO A PARTIR DA TEORIA SÓCIO-HISTÓRICA DE VYGOTSKY

Marília Arruda Araújo

RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo sobre o processo de aquisição da linguagem escrita na criança tomando por referência a teoria sócio-histórica de Vygotsky. Nele, encontram-se reflexões sobre a relação pensamento e linguagem, sobre a zona de desenvolvimento proximal, bem como sobre o papel do brinquedo e da linguagem escrita para o desenvolvimento cultural da criança. Como fundamentação teórica buscamos como fonte para este estudo, as seguintes obras do referido autor: Pensamento e Linguagem e A formação social da mente.

 

Palavras-chave: Desenvolvimento e aprendizado; Linguagem escrita, Zona de desenvolvimento proximal.

INTRODUÇÃO

Na área de educação existem inúmeros desafios a ser enfrentados para que seja possível às crianças, um ensino capaz de lhes proporcionar o seu desenvolvimento cultural. O processo de desenvolvimento cultural da criança pode ser atingido a partir da inserção social delas nas práticas sociais através das suas relações com os adultos. Essa relação com os adultos pode se dar desde instituições mais simples até as mais complexas. As aquisições dos bens culturais começam na família e se estende a outras instituições, dentre elas, a escola. Desse modo, o presente trabalho busca estudar o processo de aquisição da linguagem escrita na criança tal como ela é concebida a partir da teoria sócio-histórica de Vygotsky. Em outras palavras, busca saber se as práticas pedagógicas adotadas pelas escolas têm papel determinante no desenvolvimento cultural da criança através das suas propostas pedagógicas para aquisição da linguagem escrita.

Para respondermos a indagação acima buscamos apoio teórico nas seguintes obras de Vygotsky: A formação social da mente e Pensamento e linguagem. Na primeira, resgatamos os textos “Interação entre aprendizado e desenvolvimento”, “O papel do brinquedo no desenvolvimento” e “A pré-história da linguagem escrita”. Em Pensamento e linguagem resgatamos: “Pensamento e palavra” e “O desenvolvimento dos conceitos científicos na criança”.

Nosso estudo se apresenta como estudo bibliográfico através do qual buscamos resgatar textos e obras do autor para compreendermos como ele entende a natureza do objeto de estudo fruto deste trabalho.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Lev Semenovich Vygotsky nasceu no dia 17 novembro de 1896 na Bielarus. Seus pais eram membro de família judaica, estruturada do ponto de vista econômico e social, bem como intelectualizada, o que contribuiu para o desenvolvimento da capacidade intelectual de Vygotsky.

Até os 15 anos, Vygotsky estudava apenas em casa por meio de tutores. Formando-se em 1913, depois ingressou na Universidade de Moscou onde cursou Direito de 1914 a 1917. Além disso, frequentou os cursos de história e filosofia em outra universidade. Nessa mesma época, aprofundou seus estudos em literatura, psicologia e história. Após alguns anos, Vygotsky estudou medicina, parte em Moscou e parte em Kharkov, onde seu principal objetivo era compreender melhor o funcionamento psicológico do homem.

Vygotsky foi pesquisador e professor nas áreas de pedagogia, psicologia, filosofia, literatura, deficiência física e mental e atuou em várias instituições de ensino e pesquisa. É autor dos livros: Pensamento e Linguagem, A Formação Social da Mente, Linguagem Desenvolvimento e Aprendizagem, etc. Apesar da sua morte aos 37 anos, suas obras não foram esquecidas, pelo contrário, elas multiplicaram-se e desenvolveram-se através de seus colaboradores, como por exemplo, Alexander Romanovich Luria e Alexei Nikolaievich Leontiev.

APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO

A relação entre desenvolvimento e aprendizado nos indivíduos é o mais obscuro de todos os problemas básicos necessários à aplicação de teorias do desenvolvimento aos processos educacionais, uma vez que pesquisas concretas sobre o problema incorporam postulados, premissas e soluções exóticas, teoricamente vagas, não avaliados criticamente. Essa relação pode ser reduzida a três grandes posições teóricas.

Na primeira posição teórica enfatiza-se que os processos de desenvolvimento são independentes do aprendizado. O aprendizado é considerado um processo puramente externo que não está envolvido ativamente no desenvolvimento. Ele simplesmente se utilizaria dos avanços do desenvolvimento ao invés de fornecer um impulso para modificar o seu curso. Em sobre o desenvolvimento do ato de pensar, tem-se admitido que processos como dedução, compreensão, o domínio das formas lógicas do pensamento e o domínio da lógica abstrata ocorrem por si mesmos, sem qualquer influência do aprendizado.

A segunda posição teórica é a que postula que a aprendizagem é desenvolvimento. O desenvolvimento é visto como o domínio dos reflexos condicionados, não importando se o que se considera é o ler, o escrever ou a aritmética, isto é, o processo de aprendizado está completo e inseparavelmente misturado com o processo de desenvolvimento. James reduziu o processo de aprendizado à formação de hábitos e identificou o processo de aprendizado com o desenvolvimento.

A terceira posição teórica se baseia em dois processos inerentemente diferentes, embora relacionados, um influencia o outro – de um lado a maturação, que depende diretamente do desenvolvimento do sistema nervoso; do outro, o aprendizado que é, em si mesmo, também um processo de desenvolvimento.

Para Vygotsky, as relações entre aprendizado e desenvolvimento tem uma forte ligação entre o indivíduo e o ambiente sócio- cultural. Segundo ele, a escola tem um papel essencial para o aperfeiçoamento da aprendizagem na criança. É nela que a criança mais se apropria dos bens culturais produzidos pela humanidade. É importante destacar o que Oliveira nos diz sobre o assunto:

[...] a escola tem o papel de fazer a criança avançar em sua compreensão do mundo a partir de seu desenvolvimento já consolidado e tendo como meta etapas posteriores, ainda não alcançadas. [...] O professor tem o papel explícito de interferir na zona de desenvolvimento proximal dos alunos, provocando avanços que não ocorreriam espontaneamente. O único bom ensino, afirma Vygotsky, é aquele que se adianta ao desenvolvimento. [...] A intervenção de outras pessoas – que, no caso específico da escola, são o professor e as demais crianças – é fundamental para a promoção do desenvolvimento do indivíduo. (OLIVEIRA, 1991, p. 62).

Vale ressaltar que; “[...] Processos já consolidados, por um lado, não necessitam da ação externa para serem desencadeados; processos ainda nem iniciados, por outro lado, não se beneficiam dessa ação externa [...]”. OLIVEIRA (1991, P.61).  Portanto, é importante trabalhar com atividades que se adequem a idade de um determinado grupo escolar, pois, o processo de ensino deve beneficiar os alunos que ainda não aprenderam certa atividade, mas, que já desencadearam o processo de desenvolvimento para aprendê-la.

É na zona de desenvolvimento proximal, que a interferência dos outros indivíduos é mais transformadora. É neste momento que a escola torna-se essencial nesse processo de ensino- aprendizado, tomando como ponto de partida, o nível de desenvolvimento real da criança, estabelecendo sempre novos objetivos a serem alcançados, de acordo com a faixa etária das crianças e seu nível de desenvolvimento. Pimenta (1997, p.9) afirma que:

A educação escolar, por sua vez, está assentada fundamentalmente no trabalho dos professores e alunos. A finalidade deste, é contribuir com o processo de humanização de ambos pelo trabalho coletivo e interdisciplinar destes com o conhecimento, numa perspectiva de inserção social critica e transformadora.

É importante sabermos que para que exista uma intervenção eficaz por parte do professor; não basta saber o conteúdo, ou ter uma formação inicial. Os saberes da docência devem estar interligados nesse processo de ensino-aprendizagem.

Os saberes que vêm da experiência permitem que se tenha uma noção do “ser professor” através de um conhecimento acumulado desde a experiência como aluno. É importante também, o conhecimento/ saberes científicos por parte do professor; este deve a partir do entendimento desses saberes científicos, trabalhar as informações que se tem, analisando-as, contextualizando-as e classificando-as para que estas possam tornar-se verdadeiros conhecimentos. Porém, não basta haver a produção do conhecimento, é preciso produzir condições para a produção deste. Além disso, os saberes pedagógicos são indispensáveis para um bom processo educativo. Estes têm a ver com “ter didática”, pois, a experiência e os conhecimentos específicos não bastam. Os saberes pedagógicos e didáticos são fundamentais. (PIMENTA, 1997, p. 7).

ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL

Zona de desenvolvimento proximal (ZDP) é a distância entre o nível de desenvolvimento real, onde a criança é capaz de realizar determinadas atividades sem o auxílio de outras pessoas, ou seja, de forma independente e o nível de desenvolvimento potencial, que se caracteriza pela capacidade de realizar atividades com a ajuda de um parceiro mais experiente. É relevante citar Oliveira quando ela nos diz que,

É a partir da postulação da existência desses dois níveis de desenvolvimento - real e potencial – que Vygotsky define a zona de desenvolvimento proximal como “a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (OLIVEIRA, 1991, p.60).

Para Vygotsky (1991), são as aprendizagens que ocorrem na zona de desenvolvimento proximal que irão permitir que a criança se desenvolva cada vez mais à medida em que vai alcançando um novo nível de desenvolvimento. É justamente nela que a aprendizagem vai ocorrer. A função de um educador escolar, por exemplo, seria, portanto, a de propiciar esta aprendizagem, servindo de mediador entre a criança e o mundo.

A possibilidade de alterar e interferir no desenvolvimento de uma pessoa através de outra é bem destacada na teoria de Vygotsky. Oliveira (1991, p.59) aponta que, não é qualquer pessoa que pode se beneficiar da ajuda do outro, pois até mesmo para receber essa ajuda como benefício, é necessário certo nível de desenvolvimento.

LINGUAGEM E PENSAMENTO

 

Vygotsky descreve em suas obras que a linguagem é um instrumento complexo que viabiliza a comunicação e permite vivermos em sociedade, essa, possui duas funções básicas. A principal função é a de intercâmbio social, segundo ele, essa é a primeira linguagem que surge, ela tem a função de permitir a comunicação entre os homens. O desenvolvimento dela é impulsionado pela necessidade de comunicação. A outra função descrita é a de pensamento generalizante, que tornará a linguagem um instrumento de pensamento, facilitando, portanto, a comunicação social.

Segundo Oliveira (1991), existe na criança pequena antes de o pensamento e a linguagem se associarem, uma fase pré-verbal no desenvolvimento do pensamento e uma pré- intelectual no desenvolvimento da linguagem. A criança pré- verbal, possui uma inteligência prática onde mesmo sem o domínio da linguagem ela poderá agir no ambiente. Para conseguir resolver problemas práticos, nessa fase, ela utiliza instrumentos e meios indiretos para alcançar seus objetivos.

De forma semelhante ao chimpanzé, a criança pré-verbal exibe essa espécie de inteligência prática, que permite a ação no ambiente sem a mediação da linguagem. Nessa fase de seu desenvolvimento, a criança embora não domine a linguagem enquanto sistema simbólico, já utiliza manifestações verbais. (OLIVEIRA, 1991, p. 46).

Para o teórico, pensamento e linguagem têm origens diferentes. No início da vida humana o pensamento não é verbal e a fala não é intelectual. Sendo assim, o choro, o balbucio, o riso, não tem relação com o desenvolvimento do pensamento, essas manifestações possuem uma função de alívio emocional, além de servirem como meio de contato social com as pessoas.

Por volta dos dois anos de idade, o pensamento e a linguagem se cruzam e neste momento surge uma nova forma de funcionamento psicológico, onde a fala torna-se intelectual e o pensamento torna-se verbal. Este último será mediado pelo significado dado pela linguagem.

 A inserção da criança em um ambiente que possua membros mais maduros culturalmente permite que ela desenvolva o pensamento verbal. Para Vygotsky, o surgimento dessas novas características não torna inexistente a linguagem sem pensamento e nem o pensamento sem linguagem.

Oliveira (1991) descreve que em um determinado momento do desenvolvimento filogenético, o pensamento torna-se verbal e a linguagem passa a ser racional. No momento em surgem o pensamento verbal e a linguagem como sistema de signos, torna-se crucial o desenvolvimento da espécie, onde o biológico transforma-se no sócio histórico.

De acordo com os estudos de Vygotsky a linguagem é primeiramente utilizada com a função de comunicar, ou seja, a criança utiliza a fala socializada para manter um contato social. Com o desenvolvimento, sua capacidade de utilizar a linguagem como um instrumento de pensamento é evidenciada.

O avanço da fala socializada para a fala interna é uma transição da função de comunicação que ela possui para uma função intelectual. Nesse momento surge a fala egocêntrica. Esta fala é caracterizada por uma conversa em voz baixa que a criança emite para si mesmo. “O declínio da vocalização egocêntrica é sinal de que a criança progressivamente abstrai o som, adquirindo capacidade de “pensar as palavras”, sem precisar dizê-las”. (RIBEIRO, 2005 apud RABELLO; PASSOS 2014).

[...] A fala egocêntrica acompanha a atividade da criança, começando a ter uma função pessoal, ligada às necessidades de pensamento. É utilizada como apoio ao planejamento de sequências a serem seguidas, como auxiliar na solução de problemas. Para Vygotsky o surgimento da fala egocêntrica, com essa função claramente associada ao pensamento, indica que a trajetória da criança vai, de fato, dos processos socializados para os processos internos. (OLIVEIRA, 1991, p. 52).

A linguagem que antes se caracterizava apenas pela função de comunicar, agora é utilizada pela criança como instrumento de pensamento. Portanto, a linguagem passa a se interligar com o intelecto e os pensamentos passam a ser oralizados. 

A IMPORTÂNCIA DO BRINQUEDO NO DESENVOLVIMENTO CULTURAL DA CRIANÇA

A palavra brinquedo está relacionada à diversão, distração, faz de conta. Sua importância em todas as fases da vida é inegável, mas na infância é indispensável e fundamental para a aprendizagem e desenvolvimento das crianças. Na brincadeira elas expressam suas emoções, instigam a criatividade e recriam um mundo como querem, onde as regras estão submissas a elas.

De acordo com Melo e Valle (2005, apud ROLIM; GUERRA; TASSIGNY, 2008), através do brinquedo e da sua ludicidade a criança passa a expressar sua realidade, ordenando e desordenando, construindo e descontruindo um mundo que seja significante para elas e que corresponda às necessidades intrínsecas para o seu desenvolvimento global. Os brinquedos as levam para novos espaços de compreensão que as encorajam a crescer e aprender.

Vygotsky afirma que crianças muito pequenas querem satisfazer suas necessidades imediatamente e este intervalo entre desejo e satisfação é extremamente curto. Na idade pré-escolar surgem desejos que não são possíveis serem realizados imediatamente e então ele afirma;

Acredito que, se as necessidades não realizáveis imediatamente não se desenvolvessem durante os anos escolares, não existiriam brinquedos, uma vez que eles parecem ser inventados justamente quando as crianças começam a experimentar tendências irrealizáveis. (VYGOTSKY, 1991, p. 62).

Quando esses desejos das crianças em idade pré-escolar surgem e não podem realizar-se imediatamente, a criança é envolvida em um mundo ilusório e imaginário, onde esses desejos tornam-se realizáveis, esse mundo é o brinquedo. Nesse momento a imaginação é um processo psicológico novo para a criança. Ela não está presente em crianças muito pequenas e surgirá a partir da ação. Com isso, é possível afirmar que o brinquedo cria uma situação imaginária. Vejamos;

[...] Esta não é uma ideia nova [...] situações imaginárias no brinquedo [...] sempre foram vistas como um tipo de brincadeira. A situação imaginária não era considerada como uma característica definidora do brinquedo em geral, mas era tratada como um atributo de subcategorias específicas do brinquedo. (VYGOTSKY, 1991, p. 63).

Para Oliveira (1995, p. 65), a brincadeira quando comparada com a situação escolar, parece pouco estruturada e sem uma função clara que demonstre explicitamente a promoção de processos de desenvolvimento. Mas é importante sabermos que o brinquedo também cria uma zona de desenvolvimento.

Quando Vygotsky fala do brinquedo ele está se referindo mais especificamente à brincadeira de “faz-de-conta”, como brincar de escolinha, brincar de casinha, brincar de cavalo com um cabo de vassoura. Assim, a imaginação entra em cena. Em uma situação imaginária, a criança é instigada a agir em um mundo de imaginações, onde a brincadeira será determinada pelo seu significado, e não pelo elemento concreto e real que esta representa. Com isso, aprenderá, portanto, a separar objeto e significado. (OLIVEIRA, 1991, p.66).

Além do uso da imaginação, a brincadeira também é regida por regras, e são essas regras que farão com que as crianças passem a agir de forma mais avançada do que a sua idade permitiria na realidade. “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)" (WINNICOTT, 1971, p.80).

Segundo Vygotsky (1998), não devemos definir o brinquedo como uma atividade que dá prazer à criança, pois existem outras atividades que dão ainda mais prazer a elas do que a brincadeira. Além disso, a brincadeira só é prazerosa quando o resultado é favorável à criança.

O autor também deixa claro que não devemos ignorar as necessidades das crianças e os incentivos que são importantes para motivá-las a agir. Sem isso, não somos capazes de compreender o desenvolvimento delas, que se dá com o avanço de um estágio para o outro que também necessitará de mais motivação e incentivo para avançar cada vez mais.

Ele também destaca que as crianças satisfazem certas necessidades no brinquedo, mas essas necessidades são amadurecidas em pouco tempo. Na medida em que essas necessidades vão mudando, é importante que nós possamos compreendê-las para entendermos o brinquedo como uma forma de atividade.

A PRÉ-HISTÓRIA DA LINGUAGEM ESCRITA NA CRIANÇA

Vygotsky fez uma importante crítica às escolas a respeito do processo de ensino da linguagem escrita. Segundo ele, ensina- se aos alunos a desenhar letras e construir palavras com elas, mas a verdadeira linguagem escrita não é ensinada.

O autor afirma ainda, que, apesar de existirem muitos métodos para o ensino da leitura e da escrita, há uma grande necessidade de que seja desenvolvido um procedimento científico de ensino, que seja efetivo para o processo de ensinar e aprender. “Ao invés de se fundamentar nas necessidades naturalmente desenvolvidas das crianças, e na sua própria atividade, a escrita lhes é imposta de fora, vindo das mãos dos professores”. (VYGOTSKY, 1991, P. 70).

O que podemos constatar é que, a escrita vem se tornando apenas uma habilidade técnica, que é aprendida não por necessidade, mas por imposição de pessoas mais desenvolvidas culturalmente. Assim sendo, esta se torna apenas uma escrita mecânica, que exige grandes habilidades motoras.

“Apesar dos avanços significativos dos estudos sobre o processo de alfabetização, observa-se, em alguns casos, que a prática da escola parece distanciada da funcionalidade da escrita no contexto da sociedade, limitando-se aos usos mecânicos e descontextualizados”. (BRITO, 2007).

Gestos e Signos Visuais

Os gestos são a escrita no ar, além de ser o signo visual que contém a futura escrita da criança.

Ao realizar experimentos para estudar o ato de desenhar, foi constatado o uso da dramatização pelas crianças, quando elas deveriam mostrar apenas desenhos, por exemplo, “uma criança tem que desenhar o ato de correr começa por demonstrar o movimento com os dedos, encarando os traços e pontos resultantes no papel como uma representação do correr”. (VYGOTSKY, 1991, p.72).

Os adultos tendem a ver os desenhos e rabiscos das crianças mais como gestos do que como desenhos verdadeiramente.

É Importante destacar que, essa fase é marcada pela “indicação”, ou seja, ao desenhar algo mais complexo, com o lápis, a criança irá indicar o que significa o desenho feito.

O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo

Para as crianças, um determinado objeto pode tornar-se outro não importando a similaridade. Elas conseguem de forma simbólica, transformar objetos quaisquer em brinquedos. É importante sabermos que,

Toda atividade representativa simbólica é plena desses gestos indicativos: por exemplo, para a criança, um cabo de vassoura transforma-se num cavalo de pau porque ele pode ser colocado entre as pernas, podendo a criança empregar um gesto que comunica o fato de, neste exemplo, o cabo de vassoura designa um cavalo. (VYGOTSKY, 1991, P.72).

Sendo assim, esse simbolismo dos brinquedos nas crianças pode ser considerado um sistema complexo de fala, pois, através dos gestos elas conseguem comunicar e indicar os significados dos objetos que foram usados na brincadeira.

Para Vygotsky (1991), o aprendizado da língua escrita é um processo em que os símbolos de primeira ordem (que depende dos gestos explicativos da criança), tornam-se símbolos de segunda ordem (que não depende dos gestos explicativos), ou seja, as crianças descobrem que a língua falada pode ser representada por signos abstratos e simbólicos. Estes, mais tarde se tornarão símbolos de primeira ordem de novo em um nível superior do processo psicológico.

O autor diz que, H.hetzer ao estudar a importância da representação simbólica dos objetos no aprendizado da escrita (entre crianças de três e seis anos de idade), constatou que essa representação simbólica do brinquedo, é uma forma particular de linguagem em um estágio precoce, que levará diretamente à linguagem escrita. É importante sabermos diante estudos que,

“Uma criança de três anos de idade é capaz de compreender a função representativa de uma construção com brinquedos, enquanto que uma criança de quatro anos de idade dá nome às suas criações antes mesmo de começar a construí-las”. (VYGOTSKY, 1991, p. 74).

Ao desenhar, a criança com três anos de idade ainda não é consciente do significado simbólico do seu desenho, o que só será dominado por todas as crianças, por volta dos sete anos de idade.

Em uma historinha, ao utilizar vários objetos onde, cada um deles representa, por exemplo, pessoas, lugares e animais, Vygotsky e seus colaboradores concluíram que, crianças com três anos de idade podem ler com facilidade essa notação simbólica. Já as crianças de quatro ou cinco anos conseguiam ler notações mais complexas.

Por tanto, a brincadeira de faz de conta pode ser considerada, uma das grandes contribuições para o desenvolvimento da linguagem escrita, que é um simbolismo de segunda ordem.

O desenvolvimento do simbolismo no desenho

O autor destaca que K.Buhler identificou que o desenho tem início quando a linguagem alcança grande progresso e já é habitual na criança. Além disso, o trabalho de Buhler foi importante para que pudéssemos perceber os chamados “desenhos de raios- X”. Por exemplo, uma criança pode desenhar uma pessoa vestida e ao mesmo tempo desenhar o umbigo, as pernas, um objeto no bolso.

Sully mostrou que as crianças ao fazerem um desenho não se preocupam com a similaridade e fazem apenas desenhos superficiais. Porém, ao ver que uma criança desenhou uma pessoa como sendo apenas uma bola (para representar a cabeça) com dois traços (para representar as pernas), ela constatou que as crianças pareciam identificar mais os objetos do que conseguiam desenhar.

Nessa idade, o desenho das crianças é uma linguagem gráfica, que surge através da linguagem verbal. Assim sendo, esses esquemas dos primeiros desenhos infantis possuem apenas, aspectos essenciais do objeto.

Portanto, Esses fatos podem ser interpretados como um estágio preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita.

O desenvolvimento subsequente dos desenhos nas crianças, entretanto, não tem explicação em si mesmo e tampouco é puramente mecânico. Há um momento crítico na passagem dos simples rabiscos para o uso de grafias como sinais que representam ou significam algo. [...] Sully ilustra essa descoberta usando o exemplo de uma criança que por acaso, desenhou uma linha espiral, sem qualquer intenção e, de repente, notando uma certa similaridade, exclamou alegremente: “Fumaça, fumaça!”. [...] mesmo sendo a criança capaz de perceber a similaridade no desenho, ela o encara como o objeto em si mesmo, similar a ou do mesmo tipo de um objeto, e não como sua representação ou símbolo. (VYGOTSKY, 1991, p. 75).

Em outro experimento feito pelos teóricos, ao pedir que as crianças em idade escolar escrevessem determinadas frases, eles perceberam que cada palavra era representada por um desenho individual. Conclui-se então que, o desenho acompanha a frase e que a linguagem falada permeia o desenho das crianças. Esse processo é decisivo para o desenvolvimento da escrita e do desenho da criança.

O simbolismo na escrita

Dentro desse projeto de pesquisa no qual todos esses teóricos estavam atuando, Lúria ficou responsável por observar o simbolismo na escrita.

Mais um experimento foi realizado por esse grupo de pesquisadores; dessa vez pediram que as crianças representassem em uma folha uma maneira que as fizessem lembrar-se de todas as frases citadas por eles. Sem saber ler, as crianças ficaram perplexas, mas fizeram o que foi solicitado.

De forma geral as crianças entre três e quatro anos de idade, ao tentar lembrar-se das frases, nem olhavam para o papel. Porém, em alguns casos, as crianças conseguiam lembrar através de seus rabiscos, todas as frases, sem errar nem mesmo a ordem, pareciam que estavam realmente lendo aquilo que viam.

Estes rabiscos, pela primeira vez tornavam-se símbolos mnemotécnicos. Nesse momento, o grupo acredita que esse estágio mnemotécnico era o primeiro precursor da futura escrita. Em uma fase seguinte, as crianças substituíam esses traços e rabiscos em figuras e desenhos, por signos. É nesse momento, geralmente na escola, que a criança se dá conta de que, além de desenhar os objetos, também pode desenhar a fala.

No entanto, uma coisa é certa – o desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá, conforme já foi descrito, pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras. [...] Na verdade, o segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural. (VYGOTSKY, 1991, p. 77).

Implicações práticas

Após descrever a pré-história da linguagem escrita, Vygostky e seus colaboradores chegaram a três importantes conclusões. A primeira é que, o ensino da escrita deve ser realizado na pré-escola, pois as crianças mais novas já são capazes de descobrir a função simbólica da escrita. “Com base nas suas observações, poder-se-ia concluir que o desenvolvimento entre três e seis anos, envolve não só o domínio de signos arbitrários como, também, o progresso na atenção e na memória”. (VYGOTSKY, 1991, p. 78).

A organização do ensino deve ser feita de tal maneira que as crianças sintam necessidade de aprender a leitura e a escrita.

A segunda conclusão é que, a escrita não deve se desenvolver como hábito de mãos e dedos, ou seja, de forma mecânica, ela deve ter significado para as crianças, ao mesmo tempo estas devem perceber a importância dela.

A terceira conclusão nos diz que, essa necessidade da escrita deve ser ensinada naturalmente. O autor relata que Montessori mostrou que os aspectos motores da escrita podem ser acoplados com os brinquedos infantis e que a escrita pode ser cultivada, ao invés de ser imposta. Assim, a escrita passa a ser um treinamento natural no seu desenvolvimento e não um treinamento imposto de fora para dentro. Ainda de acordo com os estudos de Montessori, a pesquisadora acredita que as crianças poderiam aprender a ler e escrever, assim como aprendem a falar. Ela ressalta que, no seu brinquedo, a criança deve sentir a necessidade de aprender a ler e escrever, mas a escrita também deve ser compreendida pelas crianças de forma interior e fazer com que ela seja antes de tudo um desenvolvimento organizado, mais do que um aprendizado.

Os educadores devem organizar todas essas ações e todo o complexo processo de transição de um tipo de linguagem escrita para outro. Devem acompanhar esse processo através de seus momentos críticos, até o ponto da descoberta de que se pode desenhar não somente objetos, mas também a fala. Se quiséssemos resumir todas as demandas práticas e expressá-las de uma forma unificada, poderíamos dizer que o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas a escrita de letras. (VYGOTSKY, 1991, p. 79).

CONCLUSÃO

Após a análise dos textos nos quais nos fundamentamos para fazer este estudo, podemos concluir que a escola é indispensável no processo de aquisição da linguagem escrita pela criança.  A partir dos estudos de Vygotsky, a maneira como a escola entende a linguagem escrita produzirá estratégias através das quais podem levar as crianças a se apropriarem desse bem cultural e, desse modo, contribuir para a superação do problema da alfabetização que ainda hoje se mostra presente nas sociedades e nas escolas, em particular.

É fundamental e indispensável pensarmos na formação de professores que se encarregarão dessa difícil tarefa. Eles precisam compreender que a aquisição da linguagem escrita pela criança é muito mais do que simples ação estratégica perceptivo-motora. A linguagem escrita na criança é o culminar de uma capacidade cognitiva complexa que permitirá um avanço altamente significativo na sua relação com o mundo e com os outros. Por tanto, se faz necessário que os professores se apropriem de conhecimento das mais diversas áreas de conhecimento que colocam a linguagem como um objeto de estudo prioritário para o entendimento das funções psicológicas superiores. Devem saber também, que a base para a aprendizagem da escrita é o momento preparatório para o avanço e conquista dessa. Os profissionais devem saber estimular de maneira correta todos esses processos, sabendo que, cada nova aprendizagem tem o momento certo de acontecer. Para que os profissionais da educação possam deixar de impor a aprendizagem da linguagem escrita, é necessária antes de tudo, a preparação dos mesmos, pois, o ensino da escrita mecanizada é muito comum na pré-escola.

O ensino deve ser organizado de maneira que as crianças possam sentir a necessidade de aprender a ler e escrever, ao mesmo tempo devem perceber que existe ali um significado importante para tal aprendizagem. Nos anos iniciais a escrita deve ser cultivada no interior das crianças como algo necessário para a vida delas. Como vimos no texto, isso pode ser feito principalmente através dos brinquedos, assim, a escrita torna-se um treinamento natural.

A partir de uma análise e de uma reflexão sobre a prática, é possível que as situações problemáticas e os conflitos dentro de sala de aula sejam resolvidos com mais eficácia do que se houvesse apenas o uso da racionalidade técnica, quem em alguns casos torna-se impossível resolver tais situações apenas com a aplicação dela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

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PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: saberes da docência e identidade do professor. Nuances, São Paulo, v. , p.5-14, set. 1997.