O problema do método para a linguagem em seu dizer original e a conseqüente emancipação heideggeriana através da poética
Autor: Marco Antonio Rocha Rodrigues

Resumo
O presente artigo apresenta o itinerário traçado pelo filósofo alemão Martin Heidegger referente a seu processo de emancipação frente à fenomenologia eidética de Edmund Husserl, além de demonstrar a fundação de sua própria fenomenologia, porém de caráter hermenêutico. Sendo o ser o problema principal do filósofo, entendido ontologicamente, passa a ser necessário compreender o dizer da linguagem em seu sentido originário, isto é, como logos e physis. Para tanto, foi necessário aludir esta iniciativa aos métodos que permeiam a contemporaneidade, tais como a teoria crítica e a filosofia analítica, devido à incipiência perante a possibilidade do dizer original, uma vez que permanecem na esfera ôntica, ou seja, prezando assim os entes a partir de categorias do entendimento de tendência lógica e/ou dialética. Sendo assim, Heidegger assevera a importância da linguagem poética como saída da univocidade como objetivação, para então engendrar a linguagem original no horizonte do ser.

Palavras-chave: Fenomenologia. Hermenêutica. Linguagem. Método. Poesia.


Abstract

This article presents the roadmap provided by the German philosopher Martin Heidegger referring to the process of emancipation eidetic front of the phenomenology of Edmund Husserl, in addition to demonstrating the foundation of his own phenomenology, but of character hermeneutic. Since being the fundamental problem of the philosopher, understood ontologically, becomes necessary to understand the saying of language in its original sense, ie as logos and Physis. For both, this initiative has been allude to the methods that permeate the contemporary, such as analytical philosophy and critical theory, which are facing the possibility of incipient say original, since ontic remain in the area, namely the values and loved categories trend of understanding of logic and / or dialectic. Thus, Heidegger states the importance of poetic language as univocal as ex-objectification, then generate the original language to be on the horizon.

Key-words: Phenomenology. Language. Hermeneutics. Sein. Poetry.


O problema do método para a linguagem em seu dizer original e a consequente emancipação heideggeriana através da poética

A pretensão deste artigo jamais poderia ser menor que a monstruosidade que emana dessa tarefa tão abissal. Sopesar as raízes fenomenológicas do pensamento heideggeriano como se fosse um porto seguro, para em seguida viajar sobre o fluxo de sua resvaladiça seiva até as folhagens mais altas, sem o perigo de se precipitar na inusitada clareira serena de sua pretensa ontologia fundamental, representa uma prodigiosa e paradoxal aventura filosófica.
É necessário objetar que a pergunta pelo ser constitui o cerne do pensamento de Martin Heidegger. Tal empresa, certamente, conduziu suas inquirições a logradouros onde se escondem as nuanças que permeiam o inaudito, soterrado pela metafísica tradicional. Entrementes, foi necessário ao pensador re-presentar a própria metafísica em seu sentido originário, cujo fundamento aspira recuperar o ente sobre a perspectiva do ser, isto é, sua dimensão ontológica. Portanto, mediante a tal consideração, o pensar em seu sentido originário seria um auscultar a ressonância a partir da fissura que se abre no horizonte do ser a partir do Dasein. Estes esforços são inicialmente ensejados em Ser e Tempo e reverberam muito além.
Assim sendo, considerando o supracitado, o presente artigo adentrará num mérito específico, a linguagem originária. Destarte, é extremamente necessário para esta investida formularmos a seguinte questão: no tocante ao problema da linguagem, que seria o dizer original? Esta pergunta não poderá trair sua própria qualidade de tornar possível a própria questão. Não se trata de encontrar uma resposta, não é propriamente o fundamento da linguagem que se encontra em evidência, mas, simplesmente, o que nos importa aqui é o seu dizer, que na concepção original fatalmente nos remete ao sentido de Heráclito, quando nos revela, aforismaticamente, que "não encontraria a caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos, tão profundo o logos que possui" (HERÁCLITO, 1991, p. 71). Ora, longe se encontra a possibilidade de uma medida para o dizer, o que significa afirmar que a questão permanece em abertura. Contudo, Heidegger não chega a tal concepção pela mera desconfiança de uma linguagem como certitude ou veritas, mais precisamente: como conformidade, a partir da formula "veritas est adeaquatio intellectus ad rem" (HEIDEGGER, 1999, p. 156). Com efeito, será necessário demonstrar o sustentáculo da posição de Heidegger a respeito da linguagem. Tal sustentáculo, indubitavelmente, deve ser aqui compreendido como uma metáfora, jamais de outra forma.
Para isso, inicialmente, é preciso ressaltar que a pedra de toque do dizer original da linguagem almejada pelo filósofo coincide diretamente com o problema do método. Sim, o método, e não poderia ser diferente, uma vez que tal acepção se arvorou no discurso da tradição, isto é, em seu dizer, adentrando assim a contemporaneidade.
Ernildo Stein, em sua obra A Questão do Método na Filosofia, nos apresenta as orientações filosóficas que conduzem o discurso sobre o método na modernidade, tais como: o modelo lógico-analítico, a teoria crítica e a fenomenologia. É necessário asseverar que não podemos incluir, categoricamente, o pensamento heideggeriano em quaisquer destas orientações, que não é o mesmo de excetuá-lo do diálogo com as mesmas. Ora, não se trata apenas de separar o joio do trigo e o ouro do cascalho. Isso figuraria apenas um ato de perversidade e grande ironia. O fundamental é compreender as ressalvas que o pensador efetiva em relação ao método com o intuído de engendrar o dizer original no auscultar do logos.
No tocante à orientação lógico-analítica, seu intuito voraz corresponde à tentativa de garantir "uma linguagem unívoca que promete ser a garantia de máxima clareza e perfeita comunicação, além de assegurar o melhor entendimento com o máximo de economia" (STEIN, 1973, p. 15). Tal maneira pueril de pensar, senão dogmática no fim das contas, utilizando-se das prerrogativas dos métodos científicos, poderia no máximo conseguir em seu bojo o discurso da "univocidade" como objetivação, a antiga e pretensiosa fantasmagoria ansiosa por forçada universalidade, um nostálgico gesto ao "imperativo categórico" do bom e velho Kant. Sobre o terreno desta acepção, ao invés do cultivo arbóreo do fluxo do devir, instaura-se um cemitério de metáforas mortas e enterradas pelo coveiro mais sibilante: o discurso metonímico. E esta forma de prosseguir, por mais incrível e sedutora que pareça ser, viceja as "desejabilidades mais ingênuas e convincentes (? mas algo que convence não é por isso verdade: é, simplesmente, convincente. Observação para asnos)" (NIETZSCHE, 2008, p. 34), como muito bem nos lembra Nietzsche. Outrossim, no que se refere ao dizer original, nada de originário realmente se diz, mas apenas se reproduz os modelos que se tornam os métodos de adequação e aplicação enrijecidos pelas malhas da univocidade objetivada, o que extrai em seu crivo o que há de inexaurível no sentido da linguagem.
Sobre a orientação da teoria crítica, devemos ter bastante cautela e nos demorar um pouco, o que não tornará necessário fazermos futuras referências ao método lógico-analítico, este último a partir daqui sucumbe frente às investigações mais profundas, e que isso não seja entendido como vilipêndio, ele possui lugar e importância. Contudo, o caráter desta acepção ? teoria crítica ? corresponde à inclinação especulativo-dialética, o que considera o pensamento e o objeto do pensar como coincidentes em movimento. Esta empresa é fortemente influenciada pela filosofia hegeliana, onde o modelo triático (tese, antítese, síntese) fundamenta a especulação que não pode se desenvolver a não ser na simultaneidade do movimento dialético. Tal posicionamento defendido por Hegel o aproxima de Heidegger apenas no que se refere à saída poética da univocidade do discurso científico. Hegel reconhece divinamente que a natureza semântica da poesia garante a flexibilidade da própria dinâmica do movimento dialético, evitando o discurso unilateral da linguagem técnica da ciência, que o pensador diferencia abissalmente da filosofia. Mas esta aproximação não resulta em casamento, o caso de amor é fugaz. A desavença da relação se dá devido ao movimento dialético necessitar da oposição para se valer de sua formula que conjuga o "em-si" e o "para-si" que caracteriza a própria dinâmica circular do espírito absoluto que necessita da negação positiva.
Em contrapartida, o par relacional presente no pensamento heideggeriano não caracteriza uma oposição no sentido da contradição, isto é, trata-se de um constante anelo entre o desvelamento e o velamento, num vir-a-ser do jogo que, assim como em Hegel, se caracteriza como dinâmica, apesar de distinto. Porém, tal concepção garantirá o afastamento heideggeriano do método especulativo-dialético e da questão da subjetividade.
Na preleção O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento, Heidegger recorre a Parmênides no seguinte poema: "tu, porém, deves aprender tudo: tanto o coração inconcusso do desvelamento em sua esfericidade perfeita como a opinião dos mortais a que falta a confiança no desvelamento" (HEIDEGGER, 1999, p. 104). É-nos chamado a atenção para o sentido do termo grego ή (alétheia) entendido a partir do par velamento-desvelamento, isto é, a palavra poética seria a autêntica vicissitude em que o homem "caminha em busca do lugar em que pode permanecer em travessia" (HEIDEGGER, 2008, p. 31), ou seja, aquilo que desvela o dizer e que conduz o olhar sobre o caminho ao mesmo tempo o vela, libertando pela lembrança a atitude poética da limitação da previsibilidade e da univocidade do discurso científico que mantêm o mundo no âmbito do calculável, da linguagem técnica, meramente ôntica. Tal esfericidade, como assevera Heidegger, é "pura circularidade do círculo, na qual, em cada ponto, começo e fim coincidem" (HEIDEGGER, 1999, p. 104). Esta lógica garante o inexaurível concernente à linguagem entendida como um auscultar do desvelamento que, como coincidência entre começo e fim, revela sua diferença em relação à oposição progressiva do momento dialético.
A ressalva que deve ser proferida é a seguinte: Hegel se decide antes de desenvolver os primeiros passos de seu caminhar, enquanto que Heidegger perscruta o auscultar ao longo do caminho que não se encontra decidido. Isso representa que o método entendido para filosofia não é um protótipo a priori para a tarefa do pensar. O método deve ser compreendido apenas como um caminho, e não o caminho, algo semelhante ao vôo de uma ave de rapina, que com seus rasantes rasga os ventos e toca a superfície da terra e volta cortar os ventos, aqui e alhures, do ocaso a aurora, e, no âmbito livre dos ventos, nenhum rastro é deixado, e a decisão pela direção se desenvolve ao vôo que, ao vislumbrar o horizonte, deleita-se da infinitude do ser. É por isso que Heidegger se decide pela especulação-hermenêutica, que tem sua origem no deus grego Hermes que, assim como um pássaro, também rasga os ventos para levar suas mensagens a homens e deuses. Neste sentido, é que a filosofia é erótica, e não foi Platão infeliz com sua concepção de daimon.
Chegando a este ponto, retomemos a observação feita inicialmente sobre o que representaria uma afirmação apressada: a definição do método em Heidegger dentre as orientações filosóficas apresentadas. É inegável que o fator determinante para o desenvolvimento da filosofia heideggeriana, como a conhecemos, foi o contato com a fenomenologia de Husserl. Mas, então por que não classificá-la como tal? É justamente isso que é relevante. Entrementes, é preciso dizer que Heidegger emancipa-se em relação à fenomenologia husserliana. A utilização do termo "emancipação" possui aqui caráter fundamental. A modernidade inclina-se no afã de promover rupturas, a fim de instaurar o novo, como forma de se distinguir da tradição, porém aqui não se trata disso. O que é significativo ao ensejo heideggeriano, referente à fenomenologia, é o seu caráter de "retorno às coisas mesmas", isto é, considerar a realidade assim como a mesma se revela. Neste sentido, homem e objeto fazem parte do mesmo fenômeno, e não se encontrariam em oposição e nem segregados. Heidegger não discorda completamente de tal posição. Contudo, tal consideração poderia trazer o problema da conformidade perante o phainomenonfenômeno), isto é, impor um caráter de permanência.
No § 7 de Ser e Tempo nos é dado o conceito de que vem do verbo grego que significa também "mostrar-se". Porém, Heidegger nos alerta que "aparecer" é o modo ser, que é aquilo que é dos entes, mas tal aparecer pode ser compreendido, também, como uma forma de "revelar-se". Uma re-velação, por sua vez, seria um modo de aparecer, mas não a definitiva forma, melhor dizendo, tal aparecer seria seu modo de "insinuação" e não de "permanência", que de alguma forma sempre se arrola como aquilo que é sendo, um primado do ser. Não sendo assim considerada, a fenomenologia de Husserl não se afastaria do aspecto ôntico, ou seja, estaria então esmerada aos entes e sua determinação objetiva em dada manifestação meramente descritiva do fenômeno. Tais configurações, certamente, é que levou Heidegger a emancipar-se em relação à fenomenologia de Husserl e instituir sua própria "fenomenologia", porém com um caráter hermenêutico.
A questão originária da filosofia, segundo Heidegger, é o ser. O que significa conjecturar que a filosofia husserliana ainda estaria atada a condição da subjetividade que desenvolveu, juntamente à técnica moderna, o esquecimento-do-ser (Seinsvergessenheit). O pensador da floresta negra, certamente, aponta o desvanecimento da epopéia da razão especulativa, ao se referir aos pensadores originários, dizendo: "Parmênides e Heráclito ainda não eram 'filósofos'. Por que não? Porque eram os maiores pensadores" (HEIDEGGER, 1999, p. 32). Esta assertiva implica num retorno à causa originária do pensamento que vislumbra a totalidade, o que não pode ser diferente ao se asseverar a respeito da questão da linguagem. A questão da verdade, então, não se elucida no "res cogitas" cartesiano, tampouco numa intuição intelectual que se nutre de um "espírito absoluto" como acontece em Hegel, e muito menos ainda se encontra no que subjaz ao "retorno às coisas mesmas" husserliano quanto fenômeno que se mantém acorrentado aos entes. Destarte, em Heidegger, a verdade almejar retorna ao ser.
No início da preleção Que é metafísica?, Heidegger nos diz o seguinte: "A pergunta nos dá esperanças de que falará sobre a metafísica" (HEIDEGGER, 1999, p. 51). Não significa aqui qualquer ventura o termo "esperança", isto é, a metafísica compreende a própria totalidade, mas compreendê-la não é o mesmo que nela se findar. O que é suscitado representa o ser que não é, de forma alguma, a própria totalidade dos entes, não é representacional, mas também não poderá ser aludido ao nada. Porém, na mesma preleção, é o nada que é acometido ao pensamento. O homem acossado pelo nada é o Dasein (Ser-aí) suspenso. Nesta suspensão, lugar da angústia, apresentam-se as vicissitudes no horizonte do ser, isto é, ilumina-se a clareira. A clareira brilha em si mesmo, luz que conduz o olhar a toda parte e a parte alguma, é o logradouro onde se abre a vereda que é o próprio caminhar que dinamicamente revela a linguagem original, que é o que se deixa dizer, seu traçado nebuloso, autêntico, sua forma de bailarina poética, que dança arregaçando (desvelando) e contendo (velando) o vestido ao longo do caminho, em travessia, no horizonte do ser que sopra o devir.


REFERÊNCIAS

Os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

Os Pensadores. Heidegger (Conferências e Escritos Filosóficos). Editora Nova Cultural: 1999. (Sobre a Essência da Verdade), p. 156.

HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008.

___________________. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Rio de janeiro, Contraponto, 2008.

STEIN, Ernildo. A Questão do Método na Filosofia. São Paulo, Duas Cidades, 1973.