O PRINCÍPIO DE OCCAM


CASSIANO, J. M.
Graduando do Curso de Filosofia ? PUC- Campinas
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RESUMO.

A partir de textos de Guilherme de Occam e seus comentadores, este artigo empenha-se em revelar a estrutura e o sistema do pensamento do filósofo expresso no conceito conhecido como "navalha de Occam". O texto apoia-se em importantes conceitos concebidos pelo autor e busca, além de expressá-los da forma mais adequada possível, articulá-los de modo a sustentar (ao menos alguma) validade no raciocínio de Occam. Trata-se de discurso dentro do campo do conhecimento, expondo e ao mesmo tempo explorando as os caminhos que se prolongarão na história da Filosofia.
Palavra-Chave: Conhecimento, Contingência, Reserva da Razão, Existência.

ABSTRACT.


From texts of William of Occam and his commentators, this article strives to reveal the structure and system of the philosopher's thought expressed in the concept known as Occam's razor. "The text draws on important concepts designed by author and search, and express them the best way possible, combine them in order to sustain (at least some) validity in the reasoning of Occam. It is discourse within the field of knowledge, and exposing the same time exploring the ways that will continue in the history of philosophy.
Keyword: Knowledge, Contingency, Reserve of Reason, Existence.


INTRODUÇÃO.

Este trabalho refere-se ao filósofo medieval e frade franciscano Guilherme de Occam. Considerado entre muitos historiadores da filosofia como o ultimo filósofo medieval, contudo ele apresenta de um modo geral aspectos de um pensador moderno. Seu pensamento polêmico (para sua época) não pôde ser ignorado, devido à solidez e o poder inovador que será acolhido pela filosofia moderna e reverberará pelas novas ciências. O método de pesquisa volta-se para a análise das estruturas e sistematizações com que o filósofo concebe seu pensamento. A partir de textos de comentadores e de fragmentos das obras do próprio autor, cria-se um texto voltado para a investigação das condições pelas quais foi o filósofo Guilherme de Occam capaz de explorar o nominalismo e a questão dos universais, expressa nos termos: "Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem" ? não se multiplica os entes se não for necessário; também entendida como "para um problema que haja duas soluções, a mais simples é a melhor".

Biografia.
As dificuldades já começam pelo próprio filósofo em si: ao se falar de Guilherme de Ockham, Guilherme de Occam e Willian de Ockam (seu nome conhecido no idioma inglês), entende-se uma referência a um mesmo sujeito. Conhecido como "doutor invencível", "iniciador venerável", "príncipe dos nominalistas" entre outros títulos, e embora haja uma divergência entre a datação precisa de sua vida e obra, pode-se, de certo, afirmar que ele nasceu em Ockcam (Occam), uma pequena aldeia de Surrey, cidade que se situava próxima a Londres, aproximadamente no ano de 1280. Ainda jovem integrou a Ordem Franciscana e seguiu para Londres como educador. Mais tarde, partiu para a Universidade de Oxford onde cumpriu seus estudos universitários, obtendo o título de Baccalaureus Sententiarum ao comentar a obra de Pedro Lombardo (1100?-1160?) Sententiarum Libri em 1318. Num curto período, escreveu importantes obras: Lectura Libri Setentiarum, Expositio Aureos, Expositio Super Physicam, Ordinatio e os Quodliberas.
No ano de 1324, Occam transferiu-se para o convento franciscano de Avignon, sob a acusação de heresias. O Papa João XXII (1249-1334) instaurou uma comissão para analisar os supostos pontos heréticos nas obras de Occam, durante três anos. Foi justamente nesse período que Occam concluiu suas principais obras: Summa Totius Logicae e o Tractatus de Sacramentis.
Acentuado o atrito de Occam no interior da Ordem franciscana, que passa a sofrer duras sanções do papado na questão do voto de pobreza e pela gravidade de sua situação, o pensador viu-se obrigado a fugir para a cidade de Pisa, onde refugiou-se junto ao Imperador Ludovico, o Bávaro (1282-1347/50), adversário do papado. Seguiu sob a tutela do Imperador até Munique, onde morreu vítima de uma epidemia de cólera, possivelmente entre os anos de 1347-1350.

Contextualização histórico-cultural.
A concepção do pensamento medieval no período da baixa Idade Media (sec. XI ao sec. XIV), revela as grandes transformações decorrente de uma crise, que tem por seu principal agente a decadência do sistema feudal. Entre as principais causas dessa decadência pode-se destacar, a expansão territorial ocasionada pelas Cruzadas (1096-1270), a revitalização do comercio e da técnica e a supremacia do poder universal da Santa Igreja sobre o poder temporal da sociedade.
Uma manifestação desse poder universal é a escolástica, a filosofia e a teologia que eram ensinadas nas escolas medievais que dominou o ensino secular nas universidades: o Trivium (gramática, retórica e dialética) e o Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e musica), que formavam as sete artes liberais, a introdução do latim vulgar e a leitura da Bíblia, e o estudo dos textos litúrgicos e seu aprofundamento nas Sagradas Escrituras. Nota-se, a partir dessa perspectiva que a teologia cristã subjuga a filosofia clássica, de certa forma ajustando-a as suas medidas, mesmo sob o risco de deformá-las. Contudo, dentro do contexto filosófico, a prolixa disputa entre o papado e o império revela um melhor recorte do período denominado como a Baixa Idade Média.
Já no século XII o legado do Papa Gregório VII (1025-1085) se concluiu ao impor a concepção teocrática inserida numa política católica. No próximo século corrente, com papado de Inocêncio III (1161-1216), cumpre-se o ideal de "domínio cristão do mundo" a partir do poder econômico-político do magistério da Igreja. A instauração do santo oficio da inquisição marca o ápice desse domínio.
O século XIV (no qual situa-se Guilherme de Occam), sobretudo no papado de Bonifácio VIII (1235-1303), ocorre uma mudança na linha de atuação da Igreja, mesmo devido às exigências culturais e históricas (já citadas acima), que buscam por uma conjunção do resgate da obra carismática da igreja e uma aspiração escatológica junto às instituições eclesiásticas favorecidas, ou isentas, do santo ofício, numa forma de "calar o pensamento" que nascia na criação do Estado novo. Nesse sentido, o cativeiro de Avignon (1309-1377) imposto pelo Rei da França, Felipe IV, o Belo, (1268-1314) sobre Bonifácio VIII, e em progressão o Imperador Ludovico (o mesmo que acolhe Guilherme de Occam em sua corte) coroa-se na ausência do báculo papal.
As revoltas e revoluções produzidas pela emergência de um novo Estado que buscava libertar-se das imposições da teocracia cristã frente às questões materiais, num sentido de autonomia do homem quanto as suas necessidades "mundanas", mas sem por isso abdicar da fé crista da salvação apocalíptica. Surge, junto a essa passagem de transformação da sociedade medieval em sociedade renascentista, uma necessidade de repensar o mundo.
Occam e seu tempo.
Occam não tratou apenas de comentar as filosofias clássicas e a teologia cristã, e já se antecipando as tendências de uma nova concepção, que será encontrada na era renascentista e moderna, produziu polêmicas obras de teor político-religioso: Opus Nonaginta dierum e Compendium Errorum Papae Johannis XXII, nas quais defende com rigor o voto de pobreza da ordem franciscana frente a uma postura conciliadora do papado ? período marcado pelas grandes pestes e epidemias que assolavam a Europa (1348).
Atento as questões e transformações de seu tempo, ninguém melhor do Occam demonstrou a fragilidade das mediações entre a teologia cristã e os elementos aristotélicos e agostinianos da filosofia. Ciente da subordinação da filosofia pela teologia, Occam tece críticas aos complexos sistemas metafísicos e gnosiológicos construídos por S. Tomás de Aquino (1225-1274), S. Boaventura (1221-1274) e Duns Scotus (1265-1308). Nesse sentido, o que Occam opera é a separação da teologia cristã e da filosofia medieval, concebendo-as como campos do saber diferentes e assimétricos. Pela impossibilidade de demonstração das verdades da fé por qualquer forma de intervenção racional, Occam recorre ao estudo das propriedades lógicas e as faculdades racionais para libertar a razão do dogma católico: "o âmbito das verdades reveladas é radicalmente subtraído ao reino do conhecimento racional" (REALE, 1990, p. 615).
Empenhado em várias vertentes do conhecimento, a partir da independência da fé e da razão, aplicada na autonomia proposta pelo filósofo dos campos teológicos e filosóficos, isto é, o poder temporal e espiritual da teologia representada na Igreja Romana e a laicização do conhecimento por meio da lógica e do empirismo, Occam surge como um legítimo cientista e de suas teorias, sobretudo físicas, discursa sobre o indivíduo e sua existência, a cognição intelectual e sua metodologia, e o futuro da Igreja e da Ciência acarretado pela superação da fé católica sobre a razão humana.

1. TEORIA DO CONHECIMENTO IMEDIATO.

O ponto inicial para o entendimento do princípio de Occam é a concepção feita pelo filósofo acerca de sua teoria do conhecimento imediato. Soando dissonante do coro da filosofia escolástica e da teologia medieval, Occam desdobrará um preciso discurso, a partir da distinção cognitiva, sobre o próprio conceito de scentia . Occam descreve a como um ato de qualidade pelo qual se conhece a verdade contingente ? e neste sentido, Occam parece referir-se a uma realidade objetiva e individual ? sendo este mesmo conhecimento evidente em si e imediato. Contudo, Occam não descarta a possibilidade de haver um "pseudo-conhecimento"; para tanto ele salienta a diferença entre modos cognitivos a qual tem acesso o indivíduo.

Conhecimento intuitivo.
Occam distingue dois gêneros de conhecimento: o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstrativo. Occam concebe o emprego do conhecimento intuitivo como um juízo apto a reconhecer a verdade contingente, ou seja, real e concreta, e afirmá-la existente quando existe para o intelecto e negá-la como inexistente quando não existe para o intelecto. O conhecimento intuitivo fundamenta o conhecimento experimental, e por conseqüência todos os outros modos de inferências. A instauração de tal sentença é será "a pedra angular da catedral empírica".
As diferenças encontradas pelo filósofo se estabelecem no ato do intelecto de evidenciar a realidade. Nesse sentido o intelecto atua de duas formas: uma apreensiva e a outra judicativa.
? O ato apreensivo diz respeito aos termos (incomplexos ou complexos), pelos quais pode-se conceber na mente toda a evidência dos fatos contingentes.
? O ato judicativo diz respeito ao uso do juízo para autorizar a validade de uma evidência contingente expressa através de termos incomplexos.
A operação intelectual entre o ato apreensivo e o ato judicativo só pode ser realizada mediante os termos disponíveis no intelecto, de modo que o ato judicativo retoma o ato apreensivo, que por seu turno retoma o termo. Esses podem ser de natureza incomplexa ou complexa.
O primeiro é incomplexo, no qual o termo (palavra) é justificado pelo objeto (coisa) que ele justifica. Assim, ocorre uma correspondência imediata do objeto do conhecimento e o conhecimento do objeto.
O segundo é complexo, pela qual o encadeamento de termos incomplexos formam proposições complexas, inferindo que somente a evidência dos termos justificam a evidência da proposição. Portanto, a correspondência entre a verdade de uma proposição é mediada pela evidência da validade de seus termos correspondentes.
O conhecimento intuitivo justifica a operação intelectual exercida pelo ato apreensivo e o ato judicativo, portanto imediato a cognição da mente no referencial das contingências.
Já sobre a outra forma de conhecimento Occam elabora uma concepção capaz de formar conceitos abstrativos.

2. A DUPLICIDADE DOS TERMOS.

Conhecimento abstrativo.
Assim como o conhecimento intuitivo dispõe de duas operações que o capacitam a evidenciar a contingência, a saber o ato apreensivo e o ato judicativo do intelecto, Occam também elabora para o conhecimento abstrativo uma dupla forma de operações das contingências dadas ao intelecto. Esse conhecimento pode tanto constituir uma pluralidade abstraídos de muitos objetos singulares, quanto abstrair da não-existência contingente ou atribuir existência intelectual na ausência de categorias contingentes.
Desse modo o conhecimento abstrativo, por um lado forma um conceito universal a partir da experiência de muitos singulares abstraídos da realidade, e por outro lado habilita a concepção desse conceito universal mesmo na ausência de evidências dadas ao intelecto.
Com isso pretende o filósofo demonstrar que não há sequer um rastro de pluralidade nos objetos que permita ao intelecto humano a conceituação de categorias universais, pois para ambas as formas do conhecimento o objeto permanece idêntico. Portanto, esses dois tipos de conhecimento são essencialmente diferentes entre si e não sobre o objeto, já que o conhecimento intuitivo tem como função evidenciar e julgar as verdades contingentes, enquanto o conhecimento abstrativo independe de tais evidências para formular necessidades universais. Conquanto o conhecimento intuitivo se mostra imediato a contingência e idêntica a ela no sentido de evidenciar sua existência, o conhecimento abstrativo remete aos termos lógicos que constituem o conceito universal.
O duplo sentido do termo refere-se a suas duas acepções assumidas: a representação (similitudo) e a naturalidade (naturaliter).
A representação dos termos no conhecimento abstrativo, remetido ao conhecimento intuitivo, por sua vez desdobrado nas proposições complexas à medida que os próprios termos incomplexos são apreendidos e validados, revela a possibilidade de um objeto ser ou não ser representado sem que nada lhe seja acrescido ou retirado a sua realidade de contingência. Nesse sentido, o termo é semelhante ao objeto representado e expressa em si essa semelhança, o que Occam apresenta como similitudo, de tal modo que uma semelhança é uma mediação desprovida de realidade própria, incapaz de conferir evidências as contingências particulares. Portanto, os termos não são manifestações da realidade, mas apenas significações representativas, que uma vez complexos (encadeado em proposições), através da semelhança se tornam significações.
A naturalidade dos termos, uma vez que representa "verdadeiramente" a semelhança do termo, é justificada a naturalidade desse termo. A naturalidade do termo é tal que não há como um termo natural represente de modo semelhante um objeto sem que não seja naturalmente adequado ao termo designado ? o que Occam apresenta como naturaliter. Assim, a naturalidade do termo revela o sentido e a origem "real" do termo, pelo fato do termo sempre retomar a sua significação representativa. "A realidade própria do termo é, pois, qualificada de "natural", dado que o uso em que consiste é absolutamente tributário de uma realidade e de um conhecimento não-simbólico" (CHATÊLET, 1972, p. 169).
Essas duas acepções dos termos designam a proposição, ou seja, termos complexos, apontando para os sentidos que atendem ao termo incomplexo, isto é, suas qualificações representativas e naturais, uma linguagem semântica ou conotativa.

3. TEORIA DA SUPOSIÇÃO.

Se os termos designam os sentidos contidos a partir do encadeamento proposicional de si mesmo, a teoria da suposição distingue dentro desse encadeamento os próprios termos incomplexos de tal modo que a própria suposição só adquire propriedade enquanto tais termos encontrarem-se dispostos (ordenados logicamente) em proposições. Por consequente, as significações dentro de uma cadeia proposicional não encontram propósitos senão em função da suposição, uma linguagem sintática ou denotativa.
Occam define, a fim de esclarecimento entre os termos, o que ele denomina de termos categorimáticos e de termos sinategorimáticos.
Termos categorimáticos: são termos que tem um significado preciso e definitivo, atuando como componentes lógicos, de tal modo que significam exatamente o que representam. Apreendem a "semelhança" e a "naturalidade" representada pelo termo incomplexo.
Termos sincategorimáticos: são termos que expressam as semelhanças entre os contingentes através de relações com a finalidade de diferenciar os termos categorimáticos entre si. Expressa a "significação" do termo em função de sua "posição" assumida como termo complexo.
Continuando, Occam dá à sua teoria da suposição várias significações, aqui somente citadas: suposição pessoal, suposição simples e suposição material.
Pode-se dizer que desse modo, a suposição é dada no ato de representar algo primeiramente no lugar de algum objeto secundariamente, sendo que o termo representa na proposição algum objeto supondo, a partir de sua disposição, a existência desse objeto representado.
O filósofo também define o termo como um produto puramente intelectual, que é somente "real" enquanto expressa uma relação de semelhança "natural" que só adquire sentido quando encadeado em proposição em função de suas propriedades assumidas. Portanto, o termo não passa de um nome atribuído pelo conhecimento abstrativo para a constituição de categorias universais retiradas de uma pluralidade de abstrações singulares.
É possível notar que Occam opera um raciocínio lógico aplicado a suas duas formas de conhecimento, duas operações idênticas quanto aos objetos, entretanto, que se distinguem na forma funcional pela qual incidem sobre o mesmo objeto.
Se por um lado o conhecimento intuitivo segue a seqüência que retoma do ato judicativo para o ato apreensivo e desse para o termo incomplexo contingente e evidente, por outro lado o conhecimento o abstrativo segue a seqüência que retoma da proposição significativa para a suposição decompositora e desse para os termos complexos de onde finalmente pode-se atingir os termos incomplexos.
Uma vez que o termo não tem acesso ao conhecimento intuitivo por não ser experimentável, mas intervém para supor, através de um conhecimento abstrativo, portanto não-evidente, busca um vestígio em reserva conservado de um conhecimento intuitivo, ou seja, imediato. Occam mantém sua teoria sempre apoiada no princípio imprescindível da contingência material, o que ao mesmo tempo separa a realidade da lógica, e atribui a esta última sua autonomia para construir por si só seu conhecimento.

4. EXISTÊNCIA DO INDIVÍDUO E DO UNIVERSAL.

Para Occam, a contingência é a evidência real e verdadeira da existência, de tal modo que é a única fonte de conhecimento, uma vez que o objeto é evidente tanto na realidade quanto no intelecto. Prosseguindo por este discurso Occam concebe o próprio "mundo sensível" como um "mundo contingente", ou seja, uma realidade de indivíduos e objetos que não expressam nenhuma relação necessária, permanecendo sempre independentes entre si. Portanto, a realidade é conceituada como uma "massa de singularidades" por assim dizer, de modo que cada um desses "singulares" é completo em si e por si. Essa natureza ou naturalidade do indivíduo implica sua própria essência tomada completamente em sua realidade contingente, limitada por sua própria totalidade. Occam, ao que parece, não distingue a essência da existência, como o fazem os escolásticos, sendo que a essência de um indivíduo é a sua própria existência contingente.
Uma vez admitido que o ato cognitivo do intelecto apreende e julga o que é evidente de um dado objeto (conhecimento intuitivo), e que por meio de uma relação de semelhança entre o objeto dado (similitudo) e o ato representativo (naturaliter) ocorre a operação de encadeamento de termos existentes ou não (teoria da proposição) expresso pela significação adquirida por cada termo dentro da disposição de tal proposição (teoria da suposição) como um contato que media o objeto contingente e operação intelectual (conhecimento abstrativo). Todo esse desenvolvimento só é possível a partir contingência.
Occam é bastante claro acerca dessa questão da individualização contingente, afirmando-a como a única fonte para o conhecimento. Sem a experiência da evidência individual, não há de modo algum possibilidade de que o intelecto sustente a existência de tal conhecimento.
Occam instaura o método empírico como a única forma de conhecimento "real", sustentando que de uma forma o indivíduo contingente possa ser corrompido. Segue-se:
O conhecimento intuitivo incide sobre o indivíduo contingente sempre como evidente e existente. Da experiência desse vários indivíduos contingentes ou "singulares" o conhecimento abstrativo pode incidir sob duas formas:
Abstraindo a partir da experiência uma multiplicidade de contingente que se relacionam apenas por conexões lógicas constituídas pelos termos.
Criando a partir destas conexões uma relação de necessidade não justificada, pelo fato do indivíduo contingente exprimir-se totalmente enquanto é.
Dito isso, para o filósofo, somente o indivíduo existe enquanto tal.
Essas duas conseqüências decorrentes do pensamento abstrativo caminham para a formulação das categorias universais, bases nas quais se sustentam os grandes sistemas filosófico-teológicos da Idade Média (agostiniano e tomista), objeto da crítica reflexiva de Occam.
A lógica escolástica, sobretudo a tomista, somente opera seus imponentes sistemas filosóficos apoiados nas concepções aristotélicas, ainda que de forma adaptada para uma teologia cristã, na qual sem as admissões das categorias universais existentes por si não há implicação funcional. Occam, sob o aspecto em questão, não reprime seu impulso ao constatar a fragilidade (para não dizer fracasso) desse conceito, uma vez que não pode por qualquer meio acrescer ou descontar algo da realidade contingente.
Ocorre nesta questão primeiramente um conflito metodológico:
Os tomistas e agostinianos seguem uma forma de raciocínio dedutivo, enquanto Occam conduz sua argumentação na forma de raciocínio indutivo. Ocorre, portanto, uma mudança de concepção do ato intelectual sobre a própria ação de conhecimento, onde a escolástica medieval é, nesse aspecto pelo menos, determinista, sendo que Occam se apresenta numa linha probabilística.
Adotado aqui como objeto de estudo, de certa forma, o silogismo aristotélico, embora coerente, não pode exprimir validade sobre os conceitos (termos) que discursa.
Observa-se que invariavelmente um dos termos adotado necessita ser universal (conseqüentemente a premissa maior), porém por não ser uma realidade contingente evidente ao intelecto, apenas uma especulação composta por nomes, pertence ao intelecto e não a realidade.
Não parece ocorrer que Occam seja contrário a forma de raciocínio dedutivo, no entanto pode-se afirmar que somente dos casos particulares, as "singularidades" podem ser deduzidas, ao passo que as particularidades induzem a uma afirmação ou negação que tem origem na experiência.

5. ECONOMIA DA RAZÃO.

O modo pelo qual Occam esclarece esta relação esta fundamentada no que é comumente ficou conhecido como princípio da parcimônia, que aqui refere-se de modo idêntico à economia da razão.
A economia da razão desenvolvida por Occam assegura à individualidade contingente a sua própria existência. Ele não insere o indivíduo dentro de uma esfera universal, visto que esta ação implica uma adição de um indivíduo fora da esfera contingente, isto é, uma contradição, pois o universal não participa de nenhuma realidade fora do intelecto. Uma vez que um indivíduo contingente não expressa nenhuma relação com outro indivíduo contingente, portanto essencial em si mesmo, não é permitido que qualquer outra atribuição lhe seja feita, em dois sentidos:
Se é dado que de um mesmo indivíduo possa ser inferido duas contingência evidentes, e disso resultasse uma evidência material, logo há de se tratar de indivíduos distintos; portanto particulares e passiveis de cognição intuitiva.
Se é dado que de um indivíduo contingente possa ser deduzido que há uma evidência não captada pelo conhecimento intuitivo, mas implícita por algo exterior ao indivíduo, logo tal conhecimento oculto ao meu intelecto permanece obsoleto a existência particular desse indivíduo contingente.
Nestes dois casos o filósofo explora a contraposição que se encontram as categorias universais:
? No primeiro caso Occam repudia a concepção de forma, matéria e substância aristotélica, enxergando aí não mais do que "um excesso ao corpo", por assim dizer, ou seja, o indivíduo contingente só pode ser tal e qual.
? No segundo caso o filósofo rejeita qualquer tipo de necessidade que explique por uma forma mediada o conhecimento evidente de um indivíduo, criticando a escolástica medieval e a teologia cristã, que se apropriam do discurso filosófico para afastarem-se da realidade contingente.
O filósofo aponta que no intelecto há uma "reserva" da experiência de um objeto contingente que é logicamente independente entre si na realidade, mas podem ser passíveis de necessidades no intelecto. É somente através desta "reserva" que se exprime um conseqüente depois de ocorrido um antecedente; dito ainda de outra forma, toda causa é primária e suficiente como condição do efeito segundo e necessário.
Enfim, para Occam não há necessidade alguma além da contingência, pois esta é evidente por si só. De todo modo o universal não passa de um nome, pois nada que seja universal é passível conter ou transmitir uma experiência, daí decorre a corrente nominalista atribuída a Occam.

6. METAFÍSICA, TEOLOGIA E FILOSOFIA.

A questão entre a fé católica e a razão filosófica é o grande centro de disputa que norteia quase que todos os esforços da epistemologia medieval, mesmo em dois períodos distintos: o período agostiniano e a busca pela unificação cristã em uma única doutrina capaz de integrar as várias vertentes filosóficas e teológicas existentes na época; e o período tomista e a conciliação do homem natural e o homem divino já quando a doutrina católica se apresenta soberana e homogênea o suficiente para elaborar uma nova concepção de fé.
Em ambos os períodos analisados a fé cristã é superior e iminente a razão humana, pois está contida na universalidade temporal que se estende a eternidade. A tentativa de conciliar a razão humana e a fé cristã por provas suficientemente explicáveis por meio do intelecto encontra seu limite com o pensamento de Guilherme de Occam.
Sendo Occam um religioso, a questão da contingência e do universal também é abordada na perspectiva de uma concepção teológica, pois se o primeiro conflito foi metodológico, o segundo é dado no campo da metafísica. Dentro do desenvolvimento de seu método, Occam prossegue a separação e distinção do particular com o universal, que na metafísica soa como uma libertação da experimentação das contingências particulares contra a transcendência intelectual para os universais.
A especulação metafísica não encontra nenhum abrigo nas elucidações lógicas, de modo que as doutrinas da teologia cristã são independentes das disciplinas lógicas. A concepção do homem que participa de uma experiência divina pela pura vontade da criação de Deus opera, como se faz ver por toda a escolástica medieval, em favor de um elo entre o pecado carnal, limitado (temporalmente) e deficiente (intelectualmente), e a emanação divina eterna (sem limite de tempo) e infinita (sem limite de espaço). Desta concepção metafísica que busca explicar o elo da universalidade divina e da particularidade humana interpondo entre essas duas naturezas distintas uma série de entidades mediadoras ao conhecimento que possa ser feito acerca do objeto dado a esse conhecimento, Occam expõe a ausência objetiva que contribua de qualquer forma para a manutenção desse vínculo divino (teológico) e humano (filosófico) dentro de uma explicação racional.
A construção precisa e aguda que Occam opera através dos termos lógicos não mais permite que seja atribuído ao conhecimento intelectual o direito de transcender os limites da experiência para sustentar os dogmas de fé. Nesse sentido a teologia cristã não deve mais se apropriar das investigações filosóficas, sobretudo no campo da lógica, pois não qualquer compatibilidade entre a revelação divina e a experiência humana.

7. EXISTÊNCIA DE DEUS.

Occam expressa bem a incapacidade dos sistemas filosófico-teológicos de se sustentarem diante das exigências lógicas, as quais eles mesmos apelam. O filósofo não nega a existência de Deus, mas sim toda a forma de conhecimento de Deus; seja este pelo conhecimento intuitivo, o que resultaria na evidência contingente de Deus, ou pelo conhecimento abstrativo, o que abriria margem para uma significação de Deus.
Esta argumentação de Occam se elucida de modo conciso e preciso a partir das insistências da escolástica medieval em atribuir a Deus todas as causas eficientes. Devido ao favorecimento do laço imposto entre a infinitude universal e a contingência particular, todo e qualquer processo que vislumbre encontrar uma causa eficiente emanada de Deus revela a própria impossibilidade da existência universal, pois em nenhum momento Deus se apresenta como um indivíduo contingente (uma aporia da origem primária).
Occam, por seu turno, explora as causas conservantes, que se adéqua plenamente a "reserva" da razão, conquanto que durante todo o tempo que o objeto se mantém real é conservado como tal. Como Occam só admite a experiência evidente, tudo quanto às causas eficientes produzem deve existir na particularidade contingente do indivíduo e nele ser conservado enquanto tal, implicando uma necessidade que viola a "reserva" da razão. Esse princípio de "reserva" revela que "a certeza de sua existência está ligada a sua existência em ato no mundo, que necessita a cada instante ser mantida no ser" (REALE, 1990, p. 626). Dito de outra forma, o conceito universal tomado como existência no indivíduo, ou acabaria com a particularidade e desse modo seria impossível qualquer distinção operada pelo intelecto, tornando-o obsoleto, ou o próprio conceito de universal se transformariam em uma particularidade, visto que seria necessário que existisse ao mesmo tempo em cada indivíduo.
Visto as complicações persistentes que brotam da tentativa de se provar a existência de Deus por qualquer viés do conhecimento e compará-lo as verdades das revelações bíblicas, não cabe à razão humana argumentar nessa questão, pois não há qualquer vestígio em "reserva" que autorize tanto o intelecto de aplicar o conhecimento imediato quanto à capacidade cognitiva de adequar os dogmas de fé a realidade contingente.
Portanto, após operar uma separação entre a teologia cristã e a filosofia medieval, extraindo dessa incisão a fragilidade de uma metafísica do indivíduo, Occam aponta o local para qual cada um dos campos deve seguir.
A teologia sustentada pelos dogmas da fé cristã deve fundamentar-se exclusivamente pela aceitação espiritual, voltando-se para a ação prática e ética.
A filosofia tem como objeto de estudo somente o mundo real dado como objeto de seu conhecimento, livre das especulações desnecessárias que se interpõe na formulação desse conhecimento.

8. A NAVALHA DE OCCAM.

"Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem" ? não se multiplica os entes se não for necessário.
Este é o cânon que permite a operação de separação entre a filosofia e a teologia, como também marca o fim da escolástica medieval e a nova ciência moderna.
Como foi exposto ao longo do discurso, Occam cria uma crítica consistente e elaborada, ao mesmo tempo incômoda, na qual opera a separação entre a teologia e a filosofia, cabendo a teologia, nesse sentido, tornar-se negativa e limitada, isto é, apenas afirmando aquilo que Deus não é.
Ainda por esta trilha, há uma rejeição de Occam tanto às provas preparadas por S. Tomás de Aquino para existência de Deus quanto à formulação do ser analógico, se estendo também ao ser unívoco de D. Scotus. Nenhum desses conceitos metafísicos tem autoridade, senão falaciosa, para discursar e sustentar o que afirma. Occam aponta o tempo todo para as qualidades contingentes dos indivíduos apenas acessíveis ao intelecto pelo conhecimento experimental. Assim, qual explicação metafísica que suponha uma causa eficiente, ou mesmo conservante, a partir do princípio de toda causa produz efeito, viola a economia da razão, visto que, utilizando-se de termos mediadores, implicará que essa causa eficiente conserva mais de um efeito.
Occam ainda progride ao analisar que as acepções gnosiológicas acerca do conhecimento que transcende a contingência evidente, apelando para uma distinção dentro do ato cognitivo, como faz S. Tomás de Aquino (intellectus e ratio), se mostram igualmente supérfluas, pois criam categorias universais (species) que novamente violam a economia da razão. Para Occam, se o indivíduo contingente é essencial em sua totalidade, o ato cognitivo que realiza o intelecto também o é.
Ao decorrer do discurso desta análise, a expressão "navalha de Occam", surge para demonstrar num só instrumento, o conceito que o filósofo empregar para operar a separação dos excessos, sobretudo metafísicos, do campo do conhecimento. Tal como utilizando-se de um instrumento incisivo, Occam expõe o resultado de sua operação, que assume duas conseqüências aptas de observação:
A primeira conseqüência atinge as categorias universais, que não passam de nomes, e somente possuem alguma semelhança com a realidade conquanto dentro de um encadeamento lógico assuma uma significação decorrente de uma "reserva" no intelecto. Este primeiro ponto, a economia da razão é bastante precisa ao considerar que ou a realidade contingente é essencial em si e, portanto evidente no que expressa, ou toda a realidade sendo universal, mas nem dependente entre si (o que contradiz a economia da razão) e nem nominalista ("existente" apenas ao intelecto), seria admitido por definição um contingente particular.
A segunda conseqüência é a admissão de que nada que seja contingente se passa por supérfluo ao intelecto (como mostra toda a análise desenvolvida). Portanto, somente deve-se admitir o indivíduo contingente, pois é dotado de evidência experimental, o que prova que toda a ação de conhecimento somente é ação cognitiva enquanto empírica.
Ao fim da análise sobre este conceito, o qual foi proposto desde o início deste trabalho, mostra-se fecundo todo o esforço do filósofo na construção de uma nova metodologia altamente rigorosa e comprometida com a realidade factual. A nova concepção trazida pelo pensamento de Occam ? que aqui trata-se apenas deste conceito, contudo fundamental para o desenvolvimento de sua obra, é um passo decisivo na formação de uma nova perspectiva adotada pela ciência (scentia) de expressar o mundo.
É justamente nesse sentido que o cânon "não se multiplica os entes se não for necessário" pode ser traduzido para a atualidade como "de um problema que apresenta duas soluções, a mais simples é a melhor".


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é sem esforço que se concebe o entendimento dessa teoria explorada, sendo que se remete sempre aos mesmos conceitos propositalmente a fim de tecer com maior fidelidade a urdidura dessa trama. Quanto ao título do trabalho optei por nomeá-lo "Princípio de Occam", por pensar que assim exprimo melhor, na medida do possível, toda a sua significação. A escassez de referências, comparações com outros pensadores e exemplificações não são propriamente o objetivo deste texto, pois tem como escopo revelar a estruturação e sistematização do pensamento do filósofo através do qual ele formula e sustenta uma teoria que expressa os novos rumos e desafios das ciências, da filosofia e da política em sua época. Deve-se compreender a necessidade de uma segunda jornada na qual haja o encontro de outros autores nas comparações e significâncias do pensamento de Occam na posterioridade. É bom salientar que este texto não esgota o pensamento de Guilherme de Occam, e temas como teologia e política aqui não são abordados.
A influência do pensamento de Occam marca a filosofia moderna: duas correntes brotam nesse período, a saber, o racionalismo (continental) e o empirismo (britânico), encontram dentro do pensamento de Occam modelos e métodos de argumentação, sobretudo na teoria do conhecimento. A partir da análise do conhecimento proposta por Occam, o racionalismo segue pelo caminho do conhecimento abstrativo; enquanto o empirismo segue a linha do conhecimento intuitivo. O desdobramento das teorias de Occam, sobretudo a navalha de Occam, nas outras áreas do conhecimento se mostra evidente até os dias atuais. A economia e o capitalismo renascentista bebem de sua fonte, as novas ciências (física, química e biologia) adotam o seu método experimental, e na filosofia penso que a importância de seu pensamento atinge seu ápice com o positivismo do séc. XVIII. Por fim julgo de extrema importância à contribuição de Guilherme de Occam para o desenvolvimento da filosofia da linguagem e da lógica simbólica como somente sendo possíveis a partir de suas descobertas. Na linguagem a exposição precisa da linguagem semântica e da linguagem sintática; na lógica simbólica a substituição do silogismo aristotélico apoiado no conceito de premissas universais pela forma de raciocínio de variáveis enunciativas, baseada nas particularidades das premissas independentes.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.


Texto Base.
CHÂTELET, Francois. História da Filosofia. Vol. IV. Rio de Janeiro: Zahar, 1974..
REALE, Giovanni. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 3° ed. São Paulo: Paulus, 1990.
KENNY, Anthony. Uma nova historia da Filosofia Ocidental. Filosofia Medieval Vol. II. Trad. Edson Bini. São Paulo: Loyola 2008. ISBN: 978-85-15-03533-5

Texto de Apoio.
COLEÇÃO. Os Pensadores. Vol. VIII. São Paulo. Editora: Abril Cultural. 1979.