O PRINCÍPIO DA VERDADE REAL E SUA FEIÇÃO AUTORITÁRIA

 

João Victor de Queiroz Sousa[1]

 

1. Da brevíssima distinção entre regras e princípios.

 

Antes, propriamente, de se discutir o significado do Princípio da Verdade Real, cumpre tecer brevíssima distinção entre regras e princípios, na tentativa de fornecer uma melhor compreensão sobre o tema em apreço.

O legislador, ainda que existisse enquanto ente abstrato, voltado exclusivamente a produzir atos normativos, não teria condições de disciplinar toda a realidade. Sempre restaria um algo a mais, não plenamente subsumível à disciplina legal.

De outro lado, por vezes se faz necessário fugir à frieza das disposições normativas, reservando o legislador ao aplicador da lei a possibilidade de ajustar o conteúdo de uma previsão legal à realidade fática.

É, justamente, em reconhecendo tal circunstância, que se concebe a diferença entre as chamadas normas-regra e normas-princípio, estas últimas que, embora despidas da densidade normativa peculiar às primeiras, constituem espécies de mandados de otimização da ordem jurídica, voltadas a reputar preservável não uma conduta em específico, mas, antes, um valor encerrado por uma série de condutas.

Dissertando sobre o assunto, assim explica MENDES et al. (2009, p. 55), com esteio na doutrina de Karl Larenz:

 

É que, diferentemente das regras de direito, os princípios jurídicos não se apresentam como imperativos categóricos, mandatos definitivos nem ordenações de vigência diretamente emanados do legislador, antes apenas enunciam motivos para que o seu aplicador se decida neste ou naquele sentido. Noutras palavras, enquanto em relação às regras e sob determinada concepção de justiça, de resto integrada na consciência jurídica geral, o legislador desde logo e com exclusividade define os respectivos suposto e disposição, isto é, cada hipótese de incidência e a respectiva consequência jurídica, já no que se refere aos princípios jurídicos [...] esse mesmo legislador se abstém de fazer isso, ou pelo menos de fazê-lo sozinho e por inteiro, preferindo compartilhar a tarefa com aqueles que irão aplicar esses standards normativos, porque sabe de antemão que é somente em face de situações concretas que eles logram atualizar-se e operar como verdadeiros mandatos de otimização.

 

 

 

2. Conceituação doutrinária.

 

O Princípio da Verdade Real, de aceitação quase unânime na doutrina pátria, pode ser conceituado como o instrumento justificador de uma maior liberdade de atuação das autoridades estatais, justamente em nome da relevância máxima dos bens tutelados pelo Direito Penal.

É dizer: já que a proteção jurídica outorgada pela seara criminal trata dos institutos ímpares da coletividade, inclusive impondo as sanções mais severas ao seu transgressor, admite-se que, em buscando exercer a pretensão punitiva em desfavor deste, goze o Estado-Juiz de maior margem de atuação para a busca da verdade.

Dissertando sobre referido princípio, entende AVENA (2009, p. 32):

 

Significa que, no processo penal, o juiz possui o dever de apurar os fatos com o intuito de descobrir como estes efetivamente ocorreram, de forma a permitir que o jus puniendi seja exercido em relação àquele que praticou ou concorreu para a infração penal e somente contra essa pessoa.

[...] Isto ocorre porque, na esfera penal, a investigação dos fatos trilha caminho bem diverso daquele seguindo na esfera civil, em que, vigorando o princípio da verdade formal, deve contentar-se o juiz com o resultado das manifestações formuladas pelas partes, circunscrevendo-se aos fatos por elas debatidos e às provas que tenham produzido.

 

Em breve distinção sobre o que seriam as verdades formal e material no campo processual cível e penal, aduzem GRINOVER et al (2010, p. 71):

 

No processo penal, sempre predominou o sistema da livre investigação de provas. Mesmo quando, no processo civil, se confiava exclusivamente no interesse das partes para o descobrimento da verdade, tal critério não poderia ser seguido nos casos em que o interesse público limitasse ou excluísse a autonomia privada. Isso porque, enquanto no processo civil em princípio o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal (ou seja, aquilo que resulta ser verdadeiro em face das provas carreadas as autos), no processo penal o juiz deve atender à averiguação e ao descobrimento da verdade real (ou verdade material), como fundamento da sentença.

 

Ainda salientando a importância da precisa identificação do julgador quanto aos fatos que se lhe colocam sob análise, destaca MARQUES (1997, p. 69):

 

Em toda a pretensão fundada em norma penal, há a qualificação, como lide, de um conflito entre o interesse punitivo do Estado-Administração e o direito de liberdade de quem é apontado como infrator da lei penal. [...] Solucionando com exatidão o litígio penal, o juiz aplica, com justiça, o Direito objetivo; e, para isto, imprescindível se torna um perfeito conhecimento, pelo magistrado, dos fatos que devam ser enquadrados nas normas penais, para atuar os seus poderes jurisdicionais em harmonia com a vontade concreta da lei.

 

Há, por certo, um ponto de identificação entre os entendimentos acima expostos. Todos consentem com uma investigação, pelo próprio juiz criminal, da realidade fática por trás das alegações e provas trazidas pelas partes.

Admitir tal investigação parece indiscutivelmente salutar, já que é função precípua do julgador, por óbvio, definir se uma dada alegação ou um específico documento servem a esclarecer a ocorrência de um fato tal como se pretendeu demonstrar. Tolher o magistrado de uma tal possibilidade de investigação se mostra impensável, mormente porque a certeza da cognição do juiz – ou, pelo menos, de seu convencimento, de seu sentimento declarado[2] – passa necessariamente pela liberdade de analisar a prova produzida pela parte.

Neste sentido, até se compreende a distinção, no que toca ao descobrimento da verdade, entre as esferas cível e criminal, inclusive porque nesta, estando em análise o jus libertatis do réu, exige-se, de fato, um maior rigor na apreciação das provas, no azo de bem demonstrar a necessidade de aplicação da sanção punitiva.

Eis o porquê, então, segundo OLIVEIRA (2010, p. 347), de não bastar à inflição de uma pena a mera confissão do acusado ou a simples ausência de impugnação dos fatos expostos na denúncia, tal como se verifica com o processo civil (artigos 302 e 350, do Código de Processo Civil). Num caso como noutro, imprescindível se faz a plena comprovação da responsabilidade criminal do denunciado. Tudo em nome do valor ‘certeza’, inerente à própria atividade jurisdicional.

 

3. Da relevância do valor certeza no Processo Penal.

 

Dos entendimentos colacionados no tópico anterior, verifica-se que o chamado Princípio da Verdade Real busca, ao menos em tese, preservar o valor certeza na seara penal, direcionando a pretensão punitiva do Estado ao efetivo agressor do bem jurídico e evitando o indesejado apenamento daquele cuja participação delituosa não tenha sido exaustivamente demonstrada[3].

Perceba-se, aqui, a diversidade no grau de convicção que norteia uma ou outra consequência jurídica: enquanto à condenação penal somente importa a certeza, ou seja, o esgotamento na comprovação da prática de um delito; à absolvição importam tanto a probabilidade positiva ou negativa de tal prática, bem como a dúvida acerca da mesma.

Esta a conclusão de ZILLI (2003, p. 116), logo após bem esclarecer a diferença entre tais graus de convencimento do indivíduo quanto ao conhecimento da realidade:

 

Nesse sentido, tanto a certeza quanto a probabilidade poderiam ser qualificadas de positivas ou negativas, tendo em vista o estado subjetivo do agente cognoscente diante do fato que está sendo averiguado. Dessa forma, enquanto a certeza e a probabilidade positivas confirmam o fato ou tendem a confirmá-lo, as negativas, por sua vez, se não o confirmam, tendem a rechaçá-lo. Intermediando ambos os polos, situar-se-ia a dúvida como um estado neutro de valoração.

Dessa forma, no processo penal, enquanto a sentença condenatória exige uma certeza positiva quanto aos termos da imputação, a absolutória requer uma certeza negativa, uma probabilidade positiva, uma probabilidade negativa ou simplesmente uma dúvida.

 

Vê-se, então, que, tamanha a relevância do valor certeza no Processo Penal, que nem mesmo a extremada probabilidade positiva quanto à prática de uma infração autorizaria a condenação de um indivíduo. Em outro sentir: ainda que o magistrado acredite estar bem próximo da identificação do autor de uma prática delituosa, não poderia o julgador condená-lo, pois ausente seu pleno convencimento para tanto.

Em que pese a dificuldade de verificação concreta de tal proceder por parte do magistrado, ressai indispensável a afirmação de que somente a certeza exaustiva, peremptória, autoriza a prolação de um julgado condenatório.

De outro lado, o escólio acima retratado permite uma releitura sobre o que se deva entender por dúvida benéfica ao réu. De fato, não só a dúvida, em sentido estrito, resolve-se em favor do acusado, como, de resto, idêntica consequência há de resultar quando inexistir certeza positiva, tomada no sentido cá exposto.

É, então, justamente maximizando a relevância de tal certeza positiva, que se busca legitimar o maior campo de atuação oficiosa do juiz criminal, embora, por vezes, acabe por ser-lhe reconhecida uma atuação quase sufocadora dos interesses parciais.

 

4. Da problemática relacionada à Verdade Real: origem, feição e utilização inquisitórias.

 

A problemática relacionada ao Princípio da Verdade Real surge quando se o utiliza para permitir não apenas que o julgador aprecie a realidade fática por trás do quanto alegado pelas partes, concedendo-lhe, indevidamente, atuar para além do quanto produzido pelos polos da ação penal.

Em outro dizer: o risco da aclamação inconteste de citado princípio reside na possibilidade de o juiz assumir uma feição ativa – ou mais ativa que o desejado, digamos – na relação processual, cuidando ele próprio de buscar a prova, deslocando o fiel da balança, quase sempre, para o polo acusatório.

De fato, numa análise amostral da doutrina processual penal brasileira, observam-se não poucas passagens em que, a pretexto de conceituar o Princípio da Verdade Real, acaba-se por chancelar ideologicamente esta maior intervenção probatória do juiz na lide criminal, praticamente mesclando nosso modelo acusatório com a sistemática inquisitória já superada.

Dissertando sobre tal diferença, indicam GRINOVER et al (2010, p. 64):

 

Tanto no processo penal como no civil a experiência mostra que o juiz que instaura o processo por iniciativa própria acaba ligado psicologicamente à pretensão, colocando-se em posição propensa a julgar favoravelmente a ela. Trata-se do denominado processo inquisitivo, o qual se mostrou sumamente inconveniente pela constante ausência de imparcialidade do juiz. [...] No processo inquisitivo, onde as funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfeixadas em um único órgão, é o juiz que inicia de ofício o processo, que recolhe as provas e que, a final, profere a decisão.

[...]

O processo acusatório – que prevaleceu em Roma e em Atenas – é um processo penal de partes, em que acusador e acusado se encontram em pé de igualdade; é, ainda, um processo de ação, com as garantias da imparcialidade do juiz, do contraditório e da publicidade.

 

Daí, verifica-se que uma das diferenças marcantes entre os sistemas acusatório e inquisitivo reside na maior margem de atuação, sobretudo instrutória, do indivíduo chamado a solucionar a lide. Isto é, enquanto o modelo acusatório prevê a relação processual tripartite – julgador, acusação e defesa –; o modelo inquisitivo traria uma relação dual – julgador, também incumbido de função acusatória, e defesa.

Não é objetivo deste trabalho, saliente-se, privar o juiz de investigar a prova, nem mesmo de o impedir, na formação de seu convencimento, de adotar postura ativa oficiosa.

Busca-se, isto sim, despertar especial atenção quanto ao uso indevido do Princípio da Verdade Real, o qual serve por vezes como uma ‘carta branca’ para o magistrado suprir a função acusatória reservada ao polo ativo da ação penal.

Não assim, em que pese a autoridade de seu escólio, eis a lição de MIRABETE (1998, p. 44):

 

Com ele [princípio da verdade real] se excluem os limites artificiais da forma ou da iniciativa das partes. [...] Decorre desse princípio o dever do juiz de dar seguimento à relação processual quando da inércia da parte e mesmo de determinar, ex officio, provas necessárias à instrução do processo, a fim de que possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos fatos objetos da ação penal.

 

Ora, o entendimento supra é taxativo ao consentir que, de ofício, produza o juiz criminal prova, a fim de perseguir a verdade dos fatos que motivaram o exercício do direito de ação penal.

Ainda afinado com dito entendimento, elevando ao máximo grau a imprescindibilidade de o julgador bem conhecer os fatos sob sua análise, assim lecionam TÁVORA et al (2013, p. 60):

 

O processo penal não se conforma com ilações fictícias ou afastadas da realidade. O magistrado pauta o seu trabalho na reconstrução da verdade dos fatos, superando eventual desídia das partes na colheita probatória, como forma de exarar um provimento jurisdicional mais próximo possível do ideal de justiça.

 

Quer dizer: o Princípio da Verdade Real, segundo os autores últimos, serviria para que o magistrado, em nome de um conceito de justiça deveras impreciso, superasse, inclusive, a desídia das partes da relação processual-penal, no que diz com a reconstituição dos fatos constantes da denúncia. Aqui, talvez coubesse falar do juiz ‘justiceiro’, ideia que se ousa dizer nem um pouco atrativa, mesmo do ponto de vista teórico.

De fato, os ensinamentos ora colacionados parecem traduzir a noção de que, uma vez instaurada a ação penal por iniciativa do polo acusatório, abre-se ao julgador o pleno poder-dever de investigação da realidade, ainda que insuficiente seja a atuação do Parquet, quando se tratar de ação penal de iniciativa pública, por exemplo.

Ousa-se discordar destes posicionamentos.

Primeiramente, porque falar em modelo acusatório de processo não significa adotar, em termos meramente formais, uma separação das funções acusatória e de julgamento no curso da ação penal. Significa, sim, diferenciar substancialmente tais funções: à primeira incumbe reunir elementos de convicção, formular e ratificar sua pretensão punitiva em juízo; a segunda, por sua vez, está imbuída do dever de legitimar a aplicação ou não da sanção, só parcamente assumindo feição ativa.

Em efeito, não há como dizer acusatório um processo penal em que o polo incumbido de julgar possa, uma vez iniciada a ação, instruí-la quase indiscriminadamente, mesmo para superar a deficiência das demais partes processuais, sempre em nome da busca da verdade.

A bem pensar, essa perseguição desenfreada da verdade, empreendida pelo magistrado, relembra de modo bastante deletério o sistema inquisitório, praticamente reafirmando a imagem do juiz que, a todo custo, busca concretizar exclusivamente seu ideal de justiça.

Não à toa, aliás, esclarece POLANSKY (1929, p. 376, apud MARQUES, 1997, p. 70), que “‘o processo inquisitório foi historicamente o gerador do princípio de verdade material’, pois a ‘teoria formal da prova que limitou o poder discricionário do juiz’, no referido processo, ‘não lhe é inerente e foi historicamente estabelecida para servir de contrapeso a esse poder’”.

Verifica-se, então, não ser exagerado traçar um paralelo entre o Princípio da Verdade Real e o modelo inquisitório de processo, sobretudo por ter sido aquele um dos pilares de sustentação deste.

Mais delicado, ainda, é observar que citado princípio – supostamente autorizador da iniciativa probatória oficiosa do julgador – encontra previsão expressa no Código de Processo Penal (art. 156), cuja natureza autoritária é sempre importante destacar. Segundo ZILLI (2003, p. 173):

 

O Código de Processo Penal de 1941 surge, pois, em meio a este contexto, marcado por uma crescente centralização política e pelo triunfo dos ideais autoritários. Como produto jurídico do Estado Novo, objetivou conferir ‘maior eficiência e energia [à] ação repressiva do Estado contra os que delinquem’, justamente porque as leis até então vigentes asseguravam ‘aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna[va], necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um estímulo à expansão da criminalidade’.

 

De maneira mais taxativa, assevera OLIVEIRA (2010, p. 346):

 

O nosso atual modelo, cujo perfil se consolidou somente a partir da vigência da ordem constitucional instaurada em 1988, aproxima-se muito mais de um sistema de feição acusatória que de prevalência inquisitorial.

Não era este, porém, o perfil traçado pelo Código de Processo Penal de 1941, em que se permitia a iniciativa acusatória ao próprio juiz, além de se reservar a este amplos poderes probatórios, inclusive como atividade substitutiva da atuação do Ministério Público, [...].

 

Frente às considerações acima expostas, a feição inquisitória do princípio cá em debate, acolhido na redação originária do artigo 156 supramencionado, parece inegável. Não assim, a supervalorização daquilo que se entende por verdade, a ser buscada pelo próprio juiz, mostra-se idônea a promover uma mescla entre as noções de acusação e de julgamento.

É que, segundo POLANSKY (1929, p. 373, apud MARQUES, 1997, p. 70), seriam “psicologicamente incompatíveis ‘a função do julgamento objetivo com a função da perseguição criminal’”.

Ora, se o que se coloca ao julgador é o encargo de, sem apelos subjetivos, decidir quanto à existência ou não de elementos caracterizadores do delito; mostra-se arriscado poder esse mesmo julgador, ainda que em nome da ultima ratio, investigar a realidade fática de modo oficioso.

E isso, tanto pela incompatibilidade psicológica acima exposta; como, sobretudo, pela noção de que, inevitavelmente, sempre intenta o ser humano legitimar a própria atuação. Em melhor dizer: o juiz que, eventualmente, buscar a prova procurará a todo custo demonstrar a justeza de seu proceder, comprometendo, assim, sua imparcialidade.

No ponto, recorde-se, novamente, MARQUES (op. cit., p. 70), que, lembrando ensinamento de PIMENTA BUENO, estatui não dever o juiz “‘ser senão juiz, árbitro imparcial, e não parte’, porque, do contrário, criará em seu espírito ‘as primeiras suspeitas’, e, por ‘amor próprio de sua previdência’, ele ‘julgará antes de ser tempo de julgar’”.

Descrevendo, então, o contexto em que se deu a aplicação do Princípio da Verdade Real no Código de Processo Penal de 1941, urge destacar a crítica de OLIVEIRA (op. cit., p. 346), de logo pedindo vênia pela integralidade da transcrição:

 

O chamado princípio da verdade real rendeu (e ainda rende) inúmeros frutos aos aplicadores do Código de Processo Penal, geralmente sob o argumento da relevância dos interesses tratados no processo penal. [...]

Não iremos muito longe. A busca da verdade real, em tempos ainda recentes, comandou a instalação de práticas probatórias as mais diversas, ainda que sem previsão legal, autorizadas que estariam pela nobreza de seus propósitos: a verdade.

Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal.

O aludido princípio, batizado como da verdade real, tinha a incumbência de legitimar eventuais desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada ao juiz em nosso processo penal. A expressão, como que portadora de efeitos mágicos, autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou da acusação).

 

Percebe-se, então, que não apenas a origem e a natureza de referido princípio se ligam ao modelo inquisitório, como mesmo a utilização da expressão Verdade Real já prestou deferência a dito modelo processual.

De fato, ao se erigir como principal finalidade do processo penal a investigação estrita da verdade, resta-se por dar suporte ideológico, mesmo que indiretamente, a uma maior interferência do magistrado na esfera individual do acusado, por vezes sacrificando comezinhas prerrogativas cidadãs, como a ampla defesa e a presunção de inocência. Fere-se de morte, ainda, a paridade de armas no processo.

Poder-se-ia, então, objetar que, ao se falar em busca da verdade real, trata-se de uma verdade imparcial e que, portanto, cuidaria de igualmente prejudicar ou beneficiar o acusado, consoante a situação concreta.

É dizer: reservar ao magistrado a prerrogativa de ex officio investigar a verdade de maneira plena seria medida útil tanto à condenação quanto à absolvição, a depender do grau de convencimento do julgador num ou noutro sentido.

Em termos teóricos, tal posicionamento até se mostra interessante, vez que, pelo menos em tese, quão maior a identidade entre a realidade fática e a sua reprodução nos autos, maior será a qualidade da prestação jurisdicional.

Em termos práticos, todavia, assegurar tamanho poder de investigação ao juiz figura questionável, sobretudo quando a realidade pretoriana mostra que, não raro, basta um simples juízo de probabilidade positiva para se proferir uma condenação.

Mas a delicada questão da busca da verdade pelo julgador comporta, ainda, outras breves digressões.

A plena reconstrução dos fatos que ensejaram o exercício da pretensão punitiva do Estado pode representar uma medida impossível de ser concretizada, sendo preferível compreender que “a revitalização no seio do processo, dentro do fórum, numa sala de audiência, daquilo que ocorreu muitas vezes anos atrás é, em verdade, a materialização formal daquilo que se imagina ter acontecido” (TÁVORA et al, 2013, p. 61).

Eis, aliás, a razão de parcela da doutrina nacional hoje abordar não mais uma verdade real, mas uma verdade processual, assim entendida aquela que é demonstrada no curso do processo, em deferência às garantias individuais e, finalmente, sem abrir espaço, necessariamente, a uma busca elucubrada da realidade fática.

Segundo conclui ZILLI (2003, p. 114):

 

Portanto, sem jamais se olvidar do esforço que deve permear todo o processo penal de ‘reconstrução retrospectiva de um evento real, [...]’, deve-se ter a consciência de que o que se descobre é ‘uma verdade obtida por vias formalizadas’, ou seja, uma verdade processual. E este relativismo inerente à chamada verdade processual não impede, repita-se, que se estabeleça, como meta, a descoberta da verdade.

 

Harmonizando, por sua vez, as expressões verdade material e verdade processual, informam GRINOVER et al (2001, p. 132):

 

Por isso é que o termo “verdade material” há de ser tomado em seu sentido correto: de um lado, no sentido da verdade subtraída à influência que as partes, por seu comportamento processual, queiram exercer sobre ela; de outro lado, no sentido de uma verdade que, não sendo “absoluta” ou “ontológica”, há de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo preço: uma verdade processualmente válida.

 

Ademais, há de se entender que os fatos objetos da ação penal dizem sempre respeito a uma realidade já transcorrida, existente tão só no imaginário de quem os busca reproduzir. Daí, mais uma vez, o equívoco de se perseguir ferrenhamente uma verdade real.

No ponto, novamente esclarece OLIVEIRA (op. cit., p. 347):

 

[...]. Não só é inteiramente inadequado falar-se em verdade real, pois que esta diz respeito à realidade do já ocorrido, da realidade histórica, como pode revelar uma aproximação muito pouco recomendável com um passado que deixou marcas indeléveis no processo penal antigo, particularmente no sistema inquisitório da Idade Média, quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real) legitimou inúmeras técnicas de obtenção da confissão do acusado e de intimidação da defesa.

 

Vê-se, por ora, que a realidade passível de ser buscada pelo juiz é aquela relativizada, cuja demonstração nos autos atende aos imperativos da ordem jurídica, sem ignorar, por óbvio, a intenção de ao menos se aproximar da verdade possível dos fatos.

Com efeito, não existisse sequer tal intenção, e descaberia falar numa jurisdição que busca a pacificação com justiça (GRINOVER et al., 2010, p. 31).

Arrematando, pois, deve-se por ter indiscutível a relevância do Princípio da Verdade Real, no que toca à distinção entre as searas cível e criminal, abrangentes de pretensões absolutamente diferenciadas, quanto aos meios e quanto aos fins correspondentes.

De se destacar, porém, a imprescindibilidade de uma visão crítica de citado princípio, não apenas para rigorismo acadêmico, mas, sobretudo, para a compreensão da intangibilidade de uma verdade plena no curso do processo penal.

Assim, embora se admita uma ampliada margem de atuação ao juiz criminal, pela relevância dos bens tutelados – entre os quais há de se enxergar também a liberdade do acusado; impende afirmar não ser ilimitada tal margem, bem como zelar para não dogmatizar a noção de verdade, autorizando sua busca desenfreada.

Afinal, se o que se almeja é um processo penal justo e isonômico, reprimindo aquele indivíduo merecedor da sanção criminal, imprescindível se faz munir o magistrado de bastantes controlados poderes instrutórios, em nome da verdade processual, zelando, perenemente, para que tais poderes não se convertam em acusatórios.

Daí, então, reputar-se admissível que o juiz detenha alguma iniciativa processual, desde que esta se circunscreva à regulação/ investigação das atividades das partes, sendo delicado admiti-la enquanto atuação supletiva, sobretudo do polo acusatório na ação penal.

Importante, pois, transcrever a acertada lição de ZILLI (2003, p. 117), quando aduz:

 

É importante notar que este “poder” de apuramento fático não será exercido de maneira preponderante e sufocadora de qualquer atuação das partes processuais. Se assim o fosse, representaria verdadeira atividade quando, na realidade, está inserido  no poder jurisdicional como elemento que lhe é inerente. [...]

Este apuramento fático é, portanto, concretizado por intermédio de iniciativas que, longe de exprimirem comportamentos reiterados, indicam atuação esporádica.

 

 

REFERÊNCIAS

 

  1. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional – 4ª Edição, Revista e Atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009.
  1. AVENA, Norberto. Processo Penal - Versão Universitária - 1ª Ed. São Paulo: Editora Método, 2009.
  2. GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos Araujo; DINAMARCO, Cândido Rangel.  Teoria Geral do Processo – 23ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2010.
  3. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal – 7ª Edição, revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
  4. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I. Campinas: Editora Bookseller, 1997.
  5. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal - 15ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.
  6. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal – 1ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
  7. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 8ª Edição. São Paulo: Atlas, 1998.
  8. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Antonni Rodrigues C. de. Curso de Direito Processual Penal - 8ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.


[1] Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC.

[2] LOPES JR. (2007, p. 540-550) apud TÁVORA et al (2013, p. 62).

[3] Essa a lição de ZILLI (2003, p. 112), ao dissertar sobre o que denomina Princípio Publicístico.